Sobre a minha menopausa já aqui falei várias vezes. Não sei ao certo que idade teria. Cinquenta e picos, por aí. O período foi ficando incerto. Às tantas já nem me lembrava bem. Creio que calhou quando andava a fazer uma pós graduação num período em que também andava cheia de trabalho, quando veio o diagnóstico do meu sogro com o que se lhe seguiu, muito stress à mistura. Mas também pode não ter tido nada a ver com isso, pode ter tido apenas a ver com o relógio biológico. Foi-se. Naturalmente.
Um descanso.
Uma vizinha, por causa disso, do espaçamento que até nos leva a esquecer e a desvalorizar, engravidou. Pensava que a loja estava fechada, distraiu-se. Veio uma bebé quando os filhos eram crescidos, adolescentes, tal como os meus. Poucos meses depois, andava ela de bebé ao colo, a barriga mantinha-se estranhamente grande. Escondeu enquanto pôde. Uma vez disse-me: 'Até tenho vergonha... Que me tenha distraído uma vez, enfim, é estúpido mas acontece... Mas uma segunda vez...? Logo a seguir...? Não há explicação. Tenho vergonha...' Fartei-me de rir, mas percebi-a.
Depois dos partos, a menstruação desaparece por algum tempo.
Ainda me lembro de quando nasceu a minha filha, era ela bebé de colo, eu a amamentar, e, um dia, vi sangue. Fiquei assustada. Contei ao meu marido a minha preocupação. Pensei que estava doente, gravemente doente, com alguma hemorragia. O meu marido é que se lembrou: 'Não será a menstruação?'. Já nem me lembrava de tal coisa. Depois dos nove meses da gravidez, creio que já ia em seis ou sete meses depois do parto, e nada. Tinha-se-me varrido. Claro que era! Que burra, credo.
Às tantas também poderia ter engravidado nessa altura. Imagine-se, então, isso numa altura em que a pessoa pensa que já está na menopausa...
Também já contei que a menopausa se me deu uma meia dúzia de afrontamentos foi muito. De todas as vezes, que me lembre, foi ao fim da semana quando ao fim do dia íamos para a nossa casa no campo. Davam-me uns calores brutais, tinha que abrir a janela, quase pôr a cabeça de fora. Aquilo durava uns segundos, não mais que isso, mas, enquanto durava, era uma onda de calor avassaladora que avançava dentro de mim. Parecia que ia pegar fogo. Depois passava. Assim como vinha, assim ia.
Mas teve outro efeito: aumentei de volume. Antes vestia o 38, depois passei para o 40, depois para o 42, agora, frequentemente, já o 44. Olho para o que vestia antes e espanto-me: tão fininha, tão estreitinha. Como é que eu cabia ali? Agora há ondulação a la Rubens a bombordo, a estibordo, you name it.
Mas parece que os danos não se ficam pelo volume. Parece que no cérebro a coisa pode fiar mais fino. O que a neurocientista Lisa Mosconi explica ajuda-nos a perceber muitas coisas e a evitar outras. Menos mal: parece que, uma vez mais, a dieta mediterrânica opera milagres. Isso e uma vida activa, tranquila... e, claro, dormir bem (e, neste particular, pela parte que me toca, reconheço: tenho que me esforçar por ir para a cama mais cedo)
Convido-vos a ver o vídeo abaixo pois é muito interessante. Não interessa apenas a mulheres na menopausa mas a quem um dia lá há-de chegar bem como a todos os homens que lidam com mulheres. E, desta vez, milagre, milagre... está legendado.
[E aqui abro um parêntesis para elucidar os Leitores que às vezes se queixam que escolho versões não legendadas. Muitas vezes não é isso, muitas vezes tem que ser o próprio a ir às definições (a rodinha dentada que aparece em baixo, à direita, no vídeo) e escolher a opção das legendas e a língua]
How menopause affects the brain | Lisa Mosconi
Muitos dos sintomas da menopausa - ondas de calor, suores noturnos, insónia, lapsos de memória, depressão e ansiedade - começam no cérebro. Como exatamente a menopausa afeta a saúde cognitiva? Compartilhando descobertas inovadoras da sua pesquisa, a neurocientista Lisa Mosconi revela como a diminuição dos níveis hormonais afeta o envelhecimento do cérebro - e compartilha mudanças simples no estilo de vida que você pode fazer para apoiar a saúde do cérebro ao longo da vida.
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Pinturas de Rubens ao som da banda sonora da 2ª temporada do White Lotus
Poema de batista_oliveira, Leitor amigo de há muito tempo e a quem muito agradeço a generosa amabilidade de me oferecer o livro 'trazias no teu corpo a volúpia dos sentidos' da editora Poesia Impossível
A pintura com que ousei ilustrar o poema é Tigre-pantera, da autoria de Júlio Pomar
Uma coisa extraordinária nesta casa é que todos os móveis, candeeiros, quadros, espelhos, tapetes -- tudo o que estava na outra casa -- chegaram aqui e, como que por magia, encontraram o seu sítio. Aliás, parece que ainda estão melhor aqui do que estavam na outra casa. Quase parecem feitos ou escolhidos por medida.
Se há uma parede em que, entre o interruptor e um ressalto, mede um metro e sete centímetros, agora acolhe uma estante com portinhas de vidro feita à medida para o hall do piso de cima da outra casa e que tem de comprimento um metro e três centímetros. Não podia estar mais ajustada, mais perfeitamente inserida.
O pequeno móvel de madeira, uma pequena estante também com portinhas de vidro, em cima do qual está a televisão cabe, na justa medida, entre o aquecedor de parede e um outro ressalto na parede.
A pequena cómoda de barriga, em pau santo, com tampo de mármore, em tempos comprada para um outro fim, está agora aqui ao lado deste sofá, lindinha, movelzinho de apoio, com gavetinhas onde guardo as coisas de costura, velas e outras coisinhas.
E estou apenas a olhar à minha volta. Mas isto acontece em toda a casa.
Esta casa tem vários recantos, é recortada como sempre gostei de casas, permitindo criar, dentro de si, para cada zona, lugarzinhos com identidade própria. E, apesar desta topografia irregular, tudo encontrou aqui o seu lugar certo, quase como se estivessem destinados a esta casa. É difícil explicar isto mas é verdade.
O meu louceiro alto, comprado há muitos anos na Conceição Vaz Costa, ainda ela estava na Rua da Escola Politécnica, cabe milimetricamente na parede do recanto da sala de jantar. E o louceiro baixo, comprido, que tinha sido comprado à medida da outra sala de jantar, chegou aqui e ajustou-se entre duas janelas, devidamente descontado o espaço para os cortinados. Mas isto aconteceu com tudo. Como peças de um puzzle, tudo se foi encaixando.
Na altura, na fase de andarmos a ver casas, quando viemos vê-la, estava ainda mobilada. E a decoração, embora um pouco mais pesada do que a que normalmente me agrada, foi-me simpática. Deixava espaço livre, tinha cor, aproveitava a luz.
Quando decidimos comprá-la, andávamos nós numa azáfama com as mudanças, um verdadeiro pesadelo. Não acabava. Deitámos muita coisa fora, demos muita coisa, em especial roupa, mas tivemos que preparar infinitos sacos e caixotes. Nessa altura, estava sem tempo e pedi à minha filha que descarregasse as fotografias do site da agência antes que a casa, por ter sido comprada, saísse do ar. Receava que não soubesse bem como usar os meus móveis para aproveitá-los ao máximo e ver se não tinha que comprar muita coisa, e, para isso, julgava eu, talvez me ajudasse ver como os antigos proprietários tinham aproveitado os espaços.
Não foi preciso. Nem mais me lembrei disso.
Mas hoje lembrei-me de ver essas fotos. Lembro-me de, ao ver a casa ao vivo, ter pensado que, tendo a casa uma arquitectura tão peculiar requerendo uma decoração tão 'à medida', iria ter alguma dificuldade em aproveitar as minhas coisas. E, no entanto, agora, comparando-as, parece-me que as minhas coisas nasceram aqui.
E penso muitas vezes que, se eu tivesse querido conceber uma casa para mim, não sairia tão bem como esta. É como se esta casa tivesse sido feita para mim. É como se, tal como aconteceu inheaven, a casa tivesse esperado por mim, me tivesse escolhido.
Hoje, ao fim da tarde, deu-me uma daquelas minhas vontades de mudança: mudar as coisas de sítio, fazer rearrumações, redecorar. No entanto, parece-me tudo tão exactamente bem colocado que não vejo nada em que mexer. Nem os quadros. Nem os bibelots que a minha filha escolheu de entre os existentes e colocou de uma maneira tão cirúrgica que não dá para mexer.
Percorri a casa, divisão por divisão, feliz por este milagre. Está aqui tudo e está tudo tão harmonioso, tão aconchegante, leve e alegre que não quero alterar nada. Se mexer, estrago.
(Só não sei como vou conformar-me por não ter como andar com as coisas às voltas...)
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Mas deixem que vos mostre duas casas muito bonitas -- uma na cidade, outra no campo -- em que a arquitectura e a decoração e o espaço envolvente e a luz se conjugam de forma harmoniosa e feliz. Foram ambas adaptadas de forma muito orgânica pela arquitecta e dona, Barbara Weiss.
Architect Barbara Weiss Takes Us On A Tour Of Her Upside-Down House, A Converted Pub In Westminster
Designing a home in central London comes with its fair share of challenges and considerations. See how architect Barbara Weiss has ingenuously overcome them, forging private spaces, a rooftop garden and soaring open plan living from an old pub.
Architect Barbara Weiss Invites Us To Her Inside-Out House, A Transformed Cottage In Wiltshire
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Pintura de Van Gog e peças em vidro de Murano na companhia de Jakub Józef Orliński que interpreta Sento In Seno de Vivaldi enquanto Kwinten Guilliams dança
Entrei numa loja com a minha mãe, ela para ver de um 'casaquinho', eu para provar uma camisola quente e confortável. Afinal a camisola de que gostei ficava demasiado larga e ela não gostou de nenhum casaco. Enquanto isso, o meu marido foi andando com a fera. Quando saímos da loja não os vimos. Lembrei-me de ir a uma sapataria que costuma ter sapatos confortáveis de trazer por casa. Afinal estava fechada. Continuei sem saber deles. Liguei ao meu marido. Disse-me que estava no largo e que tinha encontrado um primo meu (disse o nome).
Fui com a minha mãe à procura deles. Estavam longe. Apenas os identifiquei porque vi, à distância, um grupo com um cão cabeludo. Lá estavam: o meu primo, a mulher que é metade dele, e a filha, a miúda mais nova. Já não os via há algum tempo. Ele na mesma. Altíssimo, magro, sempre com aquele seu ar levemente sonhador, sempre zen, pouco falador. Ela, muito mais nova que ele, super enérgica, super jovial, faladora, alegre. Os dois miúdos mais velhos tinham ficado em casa. O cão também. A menina, pequenina, igual à tia, irmã do pai (minha prima, portanto). Igual, igual. Olhei a menina e pareceu-me estar a ver a minha prima quando tinha a idade dela, era eu recém casada nessa altura. Nunca vi coisa assim. Como se fossem gémeas com uns quantos anos de diferença.
A mulher do meu primo contou-nos que o pai morreu há cerca de três meses e ficou triste ao falar disso. Ficámos admirados, não sabíamos que estivesse doente. Não estava. Foi no verão.
Os pais do meu primo, dois tios muito queridos de quem aqui já falei, não chegaram a conhecer esta menina que nasceu quando os irmãos já eram crescidos. O meu tio também não chegou a conhecer a menina mais nova da minha outra prima. Morreu quando ela soube que estava grávida, nem nos quis dizer isso no velório ou no enterro, só disse depois. Percebi-a muito bem. A minha tia ainda conheceu essa menina mas por pouco tempo. Estava muito mal, mas apesar disso, ainda foi para casa da filha para a ajudar pois tinha a casa cheia de crianças.
Lembrei-me do casamento do meu filho, em que ainda estavam todos vivos. O meu pai tinha tido o AVC e andava com alguma dificuldade (mas andava) e foi esse meu tio, irmão da minha mãe, que o ajudou discretamente pois o meu pai sentia-se diminuído e não gostava de ser visto assim. Esse meu tio era forte, uma força da natureza, ajudava muito. E a mulher, muito divertida, poderia ter sido uma comediante, era descomplicada e ajudava muito a minha mãe e ajudava todos, levando tudo para a brincadeira.
Afinal, poucos meses depois, viemos a saber que o meu tio, apesar de todos pensarmos que respirava saúde, estava com um cancro. Tratou-se, ficou melhor, aparentemente bem. Mas poucos meses volvidos, foi a minha tia que soube que também estava com um cancro, e neste caso avançado. Foi operada, fez tratamentos. O meu tio foi-se completamente abaixo pelo que estava a acontecer à mulher. Eram amicíssimos, inseparáveis. Pouco depois, morreu. E ela também se foi, pouco depois.
A morte deles foi um abalo muito grande para todos nós. Pensávamos que eram saudáveis, fortes, felizes, uma ajuda para todos, eternos. E, no entanto, foi um instante enquanto desapareceram.
O meu pai também já cá não está. Hoje, ao saber da morte do pai dela, não muito mais velho que eu, lembrei-me dele e da mulher no casamento deste meu primo. Um casal bem disposto que não sei como terá reagido ao casamento da sua menina com um homem quase com idade para ser seu pai. Casou tarde, esse meu primo, depois de uma vida algo aventureira e quando se pensava que haveria de ter namoradas, uma aqui, outra ali, em países para os quais viajava e de onde elas vinham para visitá-lo, mas que, se calhar, nunca se sentiria tentado a 'assentar'. Afinal foi esta miúda, simpática, alegre e desempoeirada, que o levou à certa. Com semblante triste, falou da mãe, agora sozinha, abalada pela morte prematura do marido.
A vida é assim, incerta, por vezes efémera, por vezes traiçoeira, tantas vezes injusta.
Mas a verdade é que, apesar do desgosto que sentimos quando se vão os que nos são queridos, a verdade é que a vida continua, regenera-se sem eles.
Temos que é que aproveitá-la bem enquanto dura tal como temos que aproveitar a companhia dos que amamos enquanto cá estão. Não sabemos nunca o que vai acontecer no dia seguinte pelo que levar uma vida incompleta à espera de poder vivê-la mais tarde pode vir a revelar-se uma aposta furada. Não sei se as pessoas que têm fé ou que praticam os preceitos de alguma religião se sentem mais acomodados perante a incerteza da vida mas eu que sou agnóstica tenho para mim que a vida é finita e milagrosa e que devemos agarrar cada instante como se tivéssemos sido abençoados em recebê-lo. E devemos estar na vida de coração aberto, generosos, bondosos, compreensivos, tolerantes. Nada disto é sinónimo de sermos bonzinhos, caridosos, passivos, beatolas, panhonhas, maria-vai-com-as-outras. A vida é boa se dermos o peito às balas e soubermos erguer bem alto as bandeiras das nossas convicções.
E não digo mais nada porque a partir daqui já seria eu a deitar-me a filosofar, coisa para a qual notoriamente sou desprovida de competências.
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Posso apenas acrescentar que penso que o meu marido hoje percebeu que teria muito a ganhar se passasse a usar óculos na rua.
Já no carro, contou que ia a passear com a sua fera quando ouviu, ao longe, chamar o seu nome. Olhou, não reconheceu ninguém, admitiu que não seria com ele. Mas o chamamento continuou, 'Aqui!'. Então, olhou nessa direcção. De longe, pareceu-lhe que era a cunhada de quem ontem aqui falei. De facto não diferem muito, excepto que a minha cunhada deve ter uns vinte anos a mais que a mulher do meu primo. E, quando, de longe, viu o homem ao seu lado, pensou, atónito, que o irmão estava muito diferente. Devo dizer que o meu primo tem à vontade trinta centímetros a mais de altura que o meu cunhado e que, a nível de peso, é capaz de ter menos uns trinta quilos. De cara então não há comparação possível. Portanto, face a esta inexplicável confusão, acredito que talvez o meu marido admita que teria muito a ganhar se passasse a usar óculos na rua.
Bem. Se não tenho mais a dizer posso, no entanto, recomendar uma entrevista muito interessante. Muito interessante, mesmo. Posso ser suspeita porque gosto muito do Nick Cave mas não quero saber: ele é um homem carismático, com uma densidade artística que me prende. Além disso, a sua vida tem tido momentos de fractura e dor que dão corpo a algumas das suas criações artísticas mais tocantes e intensas.
Lamento que não esteja legendada mas, ainda assim, até como se de um repositório de agrados o blog se tratasse, incluo-a aqui.
Nick Cave on faith, grief, and music: The Newsnight Interview
The artist talks about the death of one of his fifteen-year-old twin sons, Arthur, seven years ago, and how he has addressed loss and grief through music, particularly his hugely lauded album Ghosteen.
He talks about his new book, Faith Hope and Carnage, which is distilled from a series of telephone conversations during lockdown between Cave and journalist Sean O'Hagan, in which the musician talks about questions of belief, faith, grief, love and his music.
In a rare TV interview, Kirsty Wark also hears about his project, The Red Hand Files, in which he solicits questions online and then responds to the ones which pique his interest with advice and musings which are often tender, and sometimes funny.
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As pinturas são de Manuel Cargaleiro
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Desejo-vos uma boa semana a começar já por esta segunda-feira
Não é por mais nada, é mesmo só por hábito. Da mesma maneira que não me acostumo a tratar por tu a maior parte das pessoas nem me sinto confortável quando pessoas com quem não tenho grande confiança me tratam por tu, também não me dá jeito usar palavrões na minha conversação corrente. Nem sequer me dá jeito usar palavras como gajo. Posso dizer 'aquele fulano' mas não consigo dizer 'aquele gajo'. Não me soa bem dito por mim. O meu marido, sim, vernaculiza a torto e a direito mas, que querem?, não me contagia.
Palavrão posso dizer às vezes, mas em privado. Melhor: em privadíssimo. Mas, ainda assim apenas alguns dos mais banais, commodities por assim dizer. Não consigo introduzir os mais pesados, os mais cabeludos. Por exemplo, há uma palavra que não consigo mesmo dizer. Arranhar-me-ia por dentro. No pun intended. Ou, daí, talvez sim, quem sabe.
No entanto, não fico chocada quando converso com alguém que os diz com a maior descontração.
Ainda me lembro de uma vez, quando a minha cunhada -- lisboeta de gema, das melhores zonas de Lisboa mas com língua de peixeira do Bolhão -- estava a lanchar em casa da minha mãe e se sai com um trepidante 'c---s ma f...m' que deixou a minha mãe de boca aberta e olhos arregalados, aflita não fosse algum miúdo ouvir. Ou não fosse o meu pai ouvir e ficar chocado. É ainda mais célebre o episódio de quando deu à luz o meu primeiro sobrinho, tal como nos meus partos sem epidural e, tal como com os meus, tirado a ferros, em vez de lhe dar para gemer ou para ganir, quiçá até mesmo para gritar, desatou a vociferar, com quanta voz tinha, palavrão do piorio, um atrás do outro, levando a que as enfermeiras do piso lá tenham ido pedir decoro que ninguém mais conseguia suportar tamanho desfiar de obscenidades.
Ou aquela minha colega de faculdade e depois de escola, quando ambas éramos professoras, que, quando íamos no autocarro para dar aulas, falava muito alto, ainda por cima com um divertidíssimo sotaque alentejano cerrado. Toda ela era grande: alta, forte, gargalhada franca e ruidosa, voz altissonante. E era descarada, destravada, divertida. Passava a maior parte dos dias (e das noites) numa residência universitária masculina. A família convencida que ela vivia no apartamento alugado e ela na maior farra com a rapaziada. Divertia-se especialmente quando a mulher de um certo estudante ligava para falar com ele e era ela que atendia, deixando a pobre esposa em pulgas. Uma vez, no autocarro, o autocarro cheio, ia muito indignada com colegas nossas muito beatas, muito virgens, que ficavam muito chocadas quando ela falava de sexo oral. Eu fazia-lhe sinal para ela falar mais baixo pois haveria de dar estrilho duas professoras irem com conversas daquelas. Mas queria lá ela saber disso, falava à vontade onde quer que estivesse. E então sai-se com esta, bem sonora, que acho que já aqui contei (and pardon my french): 'Todas muito santas... Nunca ninguém faz bro..es... Mas a verdade é que eles aparecem feitos.'. O que me ri. E nem olhei em redor para não ver a cara das pessoas. O que vale é que saímos na paragem seguinte.
E se por vezes o humor parece precisar de um palavrão para apimentar a prosa, a verdade é que, se no lugar dele, aparecer uma palavra imprevista ainda mais graça tem.
Ariano Suassuna conta algumas histórias bem divertidas em que parece que vai sair uma e, afinal, sai coisa melhor.
Para uma carangueja como eu, maternal desde que nasci e provavelmente até morrer -- e que, se as circunstâncias não tivessem atrapalhado a minha natureza, em vez de dois filhos teria tido uma dúzia deles --, o instinto protector, alimentador e cuidador está sempre presente. Ter uma cria nos braços ou à minha guarda e sentir que está segura porque está comigo e porque darei a vida por ela se for preciso é daquelas coisas que deve estar inscrita no meu ADN.
Talvez por isso, percebo bem as fêmeas que agarram protectora e carinhosamente as suas crias, numa quase fusão de pele e sentidos, prontas a alimentar e dar de si o que for necessário para o saudável desenvolvimento dos seus filhos.
O vídeo abaixo, muito curtinho, comove-me. A reacção daquela mãe é tão intensa, tão feliz, tão tocante...
Mãe chimpanzé vê bebê pela 1ª vez depois de parto delicado
O zoológico do Condado de Sedgwick, no Estado de Kansas, nos Estados Unidos, foi palco de uma cena muito bonita: o momento em que uma chimpanzé conhece pela primeira vez o filho recém-nascido.
A primata gestante, conhecida como Mahale, precisou ser submetida a uma cesárea depois que os veterinários detectaram que o bebê não estava respirando bem. O procedimento foi um sucesso, mas o pequeno chimpanzé precisou ficar em observação no hospital por algum tempo.
Quando ele finalmente foi liberado, o grande reencontro aconteceu. Mahale não reconheceu o filho de cara, mas sua reação na sequência foi emocionante. As profissionais de saúde que acompanharam o caso contam que todos choraram e ficaram bem orgulhosos da mais nova mamãe.
O zoológico divulgou que Mahale e o bebê passam bem.
Felizmente estou a chegar ao fim desta semana que começou carregada de moleza vacinal para acabar atolada em chatice profissional. E, ainda que não perguntem, adianto que disse vacinal pois está na moda usar palavras assim. Por exemplo, em vez de dizer que está a decorrer um concurso há quem se esmere e diga que está a decorrer o processo concursal. Há gente que mal lhe atiram uma parvoíce qualquer dita com cagança vai logo atrás a ladrar a ver se abocanha. E, passado um bocado, é vê-los a papaguear a mesma palermice. Agora, para armar ao pingarelho, é tudo a acabar em al: processo vacinal, processo concursal. Não há pachorra. Dá vontade de dizer: e se fossem pastar para o milheiral?
Pelo meio tive de tudo e, para animar o meu estado disposicional (lá está, a acabar em al), tive o telemóvel a chamar-me, de madrugada, para atender chatos e inconvenientes e tive reuniões a arrancar a horas impróprias para gente civilizada. Eu sei que há gente madrugadora e que, nem por isso, se considera menos civilizada. Seja. Que sei eu? Sei, no máximo, que é uma civilização na qual não encaixo. Um dia bom para mim seria dia em que pudesse acordar, devagarinho, entre as dez e as onze da manhã e pudesse deitar-me por volta das duas ou três da manhã sem me sentir culpada. Mas não. Há quem se ache um exemplo de virtudes por se levantar às sete ou menos. Não sei que virtude há nisso.
Mas isto para dizer que foi toda a santa semana nisto e que, para mal dos meus pecados, nem por isso consegui fechar os olhos a seguir ao almoço ou desligar do maçadal enquanto ainda havendo luz do dia.
É certo que a semana que vai entrar tem um bombom a meio, um feriadinho que vem a calhar que nem ginjas. Infelizmente já tenho os dias (os úteis) fornicados, alguns a começarem outra vez à hora a que o galinhal abre o olho.
É a vida, bebé, dir-me-ão os cruéis que aí, desse lado, suspiram de impaciência com os meus padecimentos.
Claro que o meu estado de espírito se tem fortemente ressentido e, portanto, entre dois problemas, disparei um mail que certamente doeu a quem o recebeu. Teve que ser. E sorte ser por mail, senão seria mesmo na base da faca ao peito. Depois, passado um bocado, ao rever mentalmente o que tinha escrito, concordei comigo, palavras acertadas, linda, mas, num recanto de mim, reconheci que, se não é TPM, é mas é que estou a precisar de férias. Quando preciso de descansar fico como os bebés que precisam de descansar: ninguém atina com eles.
Com isto tudo, claro que não vi televisão nem sei de nada do que se passou no planeta; nem quero saber.
Aliás, corrijo. Vi, sim, vi o Master Chef Australia, um dos meus programas de televisão favoritos. Quando acaba fico sempre triste. Podia ficar o dia inteiro a ver aquela gente a fazer arte com géneros alimentares. E agora, se me derem licença, vou ali mas é enfiar as mãos na arca do tesouro do youtube, vou ver que preciosidades tem para me mostrar.
Eu acho que o YouTube é uma daquelas bichas que nos desvendam a alma, que nos fazem rir, que nos contam histórias, que fofocam e exageram e armam dramas e tudo sempre na maior amizade. Best friends forever. O meu grande amigo, a quem o meu marido, nas costas dele, trata por 'a tua amiga' e a quem a minha filha, também nas costas dele, trata por Lady, é assim. Não há temas tabu com ele. Com ele posso falar do estado do meu cabelo, dos sapatos que me apertam, da blusa que desfavorece a outra, dos gafanhotos que o outro deita quando fala, do pão que é o Brad Pitt. Rimo-nos que é um gosto. Uma vez estava todo desgostoso porque a mulher lhe tinha ligado em lágrimas a dizer que a empregada tinha partido um jarrão chinês que tinha na entrada. Coisa com metro e meio de altura, carérrimo. Imaginei horrores. Uma vez mostrou-me uma fotografia de um sofá novo. De susto. A mulher, uma bonequinha pequenina e fofa, toda beta, toda tia, tem um gosto que faz favor. Mas sobre isso não comentei. Não quis lançar desconfiança sobre o precioso décor da sua linda maison. E até pode ser que aquele luxo asiático seja bonito para chuchu e que eu é que não alcance coisa assim, completamente fora da minha lógica.
Mas isto para dizer que o YouTube acertou outra vez. Nada melhor para animar a minha disposição do que o Milton Cunha a abrir as portas de casa para mostrar os seus pertences.
🎭 Milton Cunha mostra sua casa colorida, cheia de personalidade e decoração afetiva | Pode Entrar
O cenógrafo e carnavalesco Milton Cunha abre as portas do seu apartamento, no Rio de Janeiro, onde mora com Eduardo, seu marido, para mostrar a sala, a cozinha, o escritório e a varanda. Como ele mesmo define o local “é uma casa coloridíssima, praticamente uma alegoria!”. A sala é decorada com várias esculturas e quadros de vários lugares do mundo, desde arte popular do Piauí até Macau, na China, passando por um quadro propositalmente torto do pintor Carybé. Ali também ficam relíquias herdadas do mestre carnavalesco Joãozinho 30. A cozinha também bastante colorida e decorada com plantas é onde Milton prepara risoto, sua especialidade. O passeio termina na varanda com cobertura de sapê e vista para o verde, lugar onde o casal recebe os amigos para confraternizações
Quando me levanto costumo ir abrir as janelas que o meu marido ainda não abriu. Gosto especialmente de abrir a do quarto dos rapazes e a do quarto das meninas. Dão ambas para o jardim de trás de que, embora não tenha flores, gosto mais. O relvado estava cheio de laranjas. As laranjeiras estão carregadas e, com a chuva (e o bicho da laranjeira, segundo fui aqui informada no outro dia), caem que se fartam. Uma pena.
Está tudo verdinho, verdinho que é um gosto.
No corredor lateral, onde já conseguimos puxar a glicínia de lado a lado -- fazendo um telheiro que, na primavera, espero que se encha de cachos floridos em delicado lilás -- há agora no chão, caídas, inúmeras folhinhas douradas. Estão ensopadas ou a nadar, tanto choveu. Pensei: até parece que é outono. E enquanto andava, quase de noite, pus-me a tentar perceber a quantas andamos. Não foi difícil lá chegar: estamos mesmo no outono. Mas hoje o dia mais me pareceu inverno, sombrio, sombrio. Ainda bem que tem chovido e era bom que assim continuasse. Mas custa-me muito que fique de noite tão cedo. E custa-me que às quatro e tal já tenha que acender a luz para poder trabalhar.
E custa-me que o tempo passe tão depressa. Daqui a nada estamos em dezembro, daqui a nada estamos mesmo no inverno, daqui a nada estamos a entrar no natal e, pouco depois, estamos a desaguar no próximo ano. O tempo num corre-corre que não tem parança.
E eu penso nisto e só me ocorre que, se ao menos conseguisse dormir até que o sono se extinguisse, era tudo tão melhor. Ainda hoje estava a dormir descansadamente quando me toca o telemóvel. Era daquelas chamadas que tinha mesmo que atender. Já aqui contei: não há pior para mim. Passar do sono profundo a uma conversa normal no espaço de um segundo é daquelas coisas que me deixa indisposta. Os neurónios têm que se pôr em formatura quando deveriam era estar a espreguiçar-se na maior lentura.
E daí em diante foi sempre a abrir, com telefonemas sobrepostos. Vários sobre o mesmo tema: uma má notícia que nos deixou desiludidos, preocupados. Vários telefonemas tinham por propósito perguntar-me se já tinha sabido. E o dia acabou da mesma maneira: telefonemas com o rescaldo da má notícia da manhã. E um outro com alguém cuja voz e estado de espírito me traz preocupada.
O meu marido quis ir caminhar para a beira da praia. De noite, uma humidade densa, permanentemente a chuviscar... mesmo bom para andar a passear (e, por favor, pressintam a ironia com que o digo). Mas ele quis e eu alinhei. Contudo, estive sempre ao telefone. Quase uma tortura. Mas não deixo que transpareça por respeito por quem me liga.
E, no fundo, apesar de tudo e bem vistas as coisas, o dia foi bom: os meus meninos que têm estado tão atrapalhados, uma gripe das danadas ou uma das so called viroses, não sei, estão melhores, a menina crescida que toma conta deles parece que escapou, a outra menina grande que já vai na terceira covid do ano também está quase fina e lá em casa parece que mais ninguém foi contagiado e, last but not least, o menino grande que estava fora regressou são e salvo. E, portanto, de que me queixo? De nada. Tenho é que me dar por feliz e sentir-me agradecida. E estou.
E ainda mais uma coisa: encontrámo-nos à hora de almoço com uma pessoa que é pro em cães da raça do nosso. Gostou muito dele, achou-o obediente, bem comportado, sem pingo de agressividade. Vim de lá toda contente. Isto, apesar de, pelo meio, ter tido que atender duas chamadas do arco da velha.
Agora, cansada, a escrever enquanto tento libertar a cabeça das preocupações diárias, fiz zapping e apareceu-me uma das mais sinistras figuras do comentário luso, aquele tal major-general que frequenta os meios pró-Putin e que não é capaz de condenar a actuação criminosa do psicopata com loucas aspirações imperialistas e que, perante o drama pelo qual os corajosos ucranianos estão a passar, retorce o raciocínio para disfarçar a ausência de compaixão pelo sofrimento que as televisões mostram. Tive que fugir imediatamente daquele canal. O mal, seja sob que forma se manifeste, faz mal à saúde de quem está por perto. E ter a cara e as palavras desta criatura sinistra aqui na minha sala é como ter veneno a escorrer-me em cima. Que horror.
Vou à procura de jardins. Se fosse de dia e se tivesse tempo, ia para a Gulbenkian ou para o Jardim Botânico ou, até, para a Estufa Fria.
Creio que já contei que, quando adquirimos aquela terra pedregosa cheia de mato ressequido que tinha uma casa escura, com móveis escuros, a que agora chamo heaven, comecei a frequentar viveiros para escolher árvores e arbustos em miniatura. Ia sobretudo aos viveiros da Câmara de Lisboa, nos Olivais, e aos do Ministério da Agricultura ali na Azambuja (nunca me lembro se é Chamusca ou Azambuja, confundo os nomes e agora não me apetece ir ao google procurar). As jardineiras e jardineiros já me conheciam, conversávamos sempre um bocado. Eles de botas de borracha, aventais, e eu, chegando de carro, de salto alto. Ora ia à abertura, o mais cedo possível, ora ia à hora de almoço. Ou seja, sempre na continuação de um dia de trabalho. Mas o que eu adorava andar por ali a perguntar pelas manhas e maus hábitos de cada espécie, a escolher cada rebento, a avaliar como ficariam quando crescessem. Mil vezes pensei que seria feliz se fosse jardineira.
Se há vídeos ou filmes completos que gosto de ver são os que envolvem jardins ou jardinagem. O vídeo que abaixo partilho é uma maravilha. Vejam, por favor. Respirem devagarinho e sintam a beleza deste jardim.
Touring Paolo Pejrone’s Enchanting Italian Gardens | Visitors’ Book
The World of Interiors presents Visitors’ Book with Paolo Pejrone. A master of his craft as a landscape designer, Paolo Pejrone welcomes us into his secluded gardens nestled in the hills of Piedmont, Italy.
As we tour Paolo’s botanical paradise, we develop a deep understanding of his Arcadian retreat: “As time passed, year after year, it has become a sort of nursery in which I have experimented with many plants”. Watch the full episode of Visitors’ Book as we explore Paolo Pejrone’s captivating gardens, guided by pendulous evergreen and expertly defined jewel-toned passages.
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A fotografias são da autoria de Katarzyna Załużna e vêm na companhia de Loreena McKennitt que interpreta Huron Carol
Gosto de graffiti, gosto de política, gosto do 'bom gosto' ao serviço da inteligência, gosto da inteligência ao serviços das causas que considero justas e nobres, gosto de coragem e, em especial, quando vem vestida com beleza e afecto, gosto de arte ao dispor de todos, em especial dos que não podem frequentar inacessíveis galerias, gosto da lucidez que sabe escolher a oportunidade, gosto de mensagens certeiras, gosto de mistério.
E, tal como ele e creio que como todas as pessoas civilizadas, estou ao lado do povo ucraniano na defesa do seu direito a escolher o seu destino, na defesa da liberdade, na defesa da paz em liberdade. E estou também ao seu lado na condenação, sem meias palavras, do narcisista assassino, do tresloucado psicopata, que resolveu negar a existência de um país e dos seus habitantes.
O vídeo 'oficial' dos graffitis de Banksy na Ucrânia só pode ser visto no Youtube e convido-vos a clicar aqui --> Ukraine <-- para o verem tal como Banksy quer que se veja.
Acho-o tocante.
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Mas, entretanto, já foram feitos outros vídeos partilháveis que mostram a beleza, a ironia, a acutilância dos seus trabalhos no meio das ruínas ucranianas. Como este, por exemplo:
Banksy showcases new mural in war-damaged Ukrainian town
World-renowed graffiti artist Banksy unveiled a work in the Ukrainian town of Borodyanka, which had been occupied by Russia until April and heavily damaged by fighting in the early days of Moscow's invasion.
Banksy posted a photo of the mural - a girl gymnast performing a handstand on a small pile of concrete rubble - on Instagram late on Friday. The work was painted onto the wall of a building destroyed by shelling.
At least one other piece of new graffiti in Banksy's signature style, although not posted by the mercurial artist on social media, was spotted in Borodyanka, portraying a man being flipped in judo by a much smaller child.
The symbolism of that piece was an allusion to the biblical story of David and Goliath, the unlikely triumph of the underdog, as well as a nod to Russian President Vladimir Putin's much-publicised love of the Japanese martial art.
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Entretanto, aproveito para contar mais uma de Banksy. Em Londres, numa montra da Guess, bem na Regent Street, foi usado um trabalho de Banksy sem qualquer autorização do seu autor ou respeito pelos direitos de autor. Claro que Banksy não achou piada. E, sabem como ele é, não foi de modas: incitou a malta que costuma dedicar-se ao gamanço nas lojas a irem àquela e fanarem uma peça de roupa -- a ver se os da Guess aprendem a respeitar os criadores.
Acho que não há grandes novidades tirando as desgraças de sempre e dessas, tão tenebrosas me parecem, não consigo falar.
O meu dia foi de trabalho e teve aquelas agruras habituais. Na fase em que estamos, uma fase complexa no futuro da empresa, parece que o pior de algumas pessoas se sobrepõe a tudo o resto. Quando se fala em atitudes tóxicas isso não é uma força de expressão, é mesmo uma realidade. Infelizmente, os episódios de stress ou irritação sobrepõem-se aos de motivação e isso desgasta. Mas é uma fase. Logo passa.
Por tudo isto, prefiro falar de momentos de paz e serenidade.
O tempo cinzento, chuvoso, tristonho. Às quatro e tal estava escuro, às cinco e tal estava de noite. Às seis e tal fui andar lá para fora, estava noite cerrada. Tive que ligar a lanterna do telemóvel. Mas andar no campo, entre árvores, com tão fraca iluminação não é coisa fácil. Não se vê nada, nada, nada. Pensei que se um javali ou uma raposa saíssem da gruta ou de alguma toca eu cairia para o lado de susto.
Apesar de tudo, gosto. E chuviscava. Via as gotas a percorrerem os fracos raios de luz do telemóvel. Bonito. Podia ficar ali parada a respirar o ar molhado, a sentir os odores e os mistérios da noite.
A fera tinha ido comigo e, de vez em quando, ouvia-o por perto mas, de noite e ele escuro como é, quase não o consegui ver. A certa altura, chamei por ele. Nada. De repente, ouvi um barulho e um monte de pelo passou a rasar por mim. Estremeci. Era ele numa corrida. Mas não o vi.
Passado um bocado, ouvi o meu marido lá em cima, ao longe, a chamar por mim. Fui na direcção dele. Achava que eu andar por ali às escuras não era boa ideia. Acendeu as luzes todas à volta da casa e que eu andasse por ali. Dei umas três ou quatro voltas e desisti. Não tinha graça.
À hora de almoço tinha feito um pequeno passeio para fotografar cogumelos. É um fenómeno. Não sei a que ritmo se multiplicam aquelas células mas o facto é que, num abrir e fechar de olhos, aparecem e agigantam-se. Belíssimos. Claro que nem todos são de tipo giga. Há os que são delicados, quase como bailarinas, quase comoventes.
Há outros que parecem umas bolinhas brancas, quase pétalas, outros umas ondinhas quase em rendilhado, folhinhos subtis que embelezam os ramos que se fingiam de mortos. Quanto mistério nestas indecifráveis formas de vida.
Outros são carnudos, quase animais saídos da terra, outros parecem algas, são lustrosos, quase parecendo vindos do fundo do mar.
Os mais exóticos são uns em campânula brilhante em amarelo exuberante. Mas hoje vi uns que parecem vidros de Murano, de uma delicadeza translúcida. Serão que são deuses? Ou serão simples anjos? São inexplicáveis, etéreos. Fiquei com vontade de me deixar ficar a olhar para tanta beleza, tão efémera beleza.
E os campos estão verdes, verdes. Muito musgo, macio, veludo, veludo, e muitas ervinhas, muitos líquenes. É bom estar entre o verde da natureza. Fotografo o que posso. O tempo não é muito. E há a chuva. Fiquei com os pés molhados, o cabelo molhado. Mas soube-me tão bem.
Por vezes ocorre-me que se, por uma qualquer fatalidade, eu perdesse o que tenho ou soubesse que, em breve, estaria de partida, talvez me sentisse feliz na mesma, agradecida na mesma. Todos os momentos abençoados que tenho vivido estão inscritos no meu adn de uma forma indelével e são carga suficiente na bateria onde armazeno os meus momentos de felicidade.
E já nem me refiro aos momentos vividos junto àqueles a quem amo e que trago sempre no meu coração. Refiro-me a estas coisas simples como ver como estão grandes e bonitas as arvorezinhas que plantei tão pequeninas, como é especial o círculo de pedras que imaginei e concretizei (tantas vezes carregando ou empurrando pesos que anos mais tarde mostraram o desgaste que provocaram em algumas das articulações que mais se esforçaram), como se tornou tão fértil a terra antes tão árida, como devem ser felizes os pássaros que aqui habitam.
Estava a andar e a pensar como estão bonitos os verdes campos deste meu paraíso. Depois apareceram-me as palavras em inglês e dei por mim a sorrir. The green fields of heaven. Quem conhece o mundo dos negócios e dos investimentos saberá bem o que são os greenfields projects. E na verdade foi isso que, há uns anos, foi esta nossa aventura. Tudo à nossa disposição para daqui fazermos o que quiséssemos.
Imaginei caminhos, imaginei escadinhas de pedra, imaginei o lugar para os cedros, o lugar para os pinheiros, lá em baixo dois eucaliptos, os elegantes ciprestes pelos quais me apaixonei a ladearem os caminhos, a pimenteira toda leveza, as azinheiras que já cá estavam sob a forma de rústicos e informes arbustos e que fomos desbastando até se transformarem nas majestosas árvores de hoje.
Tudo se foi concretizando até que ganhou vida própria. O que agora vejo quando por aqui caminho é, tantas vezes, novo para mim. Devem ter sido sementinhas que voaram de longe e que esta terra acolheu. Tal como os gatinhos, os esquilos ou os pássaros ou os bichos cujas grandes pegadas encontramos e que aqui se acolhem, assim as flores, os cogumelos, os arbustos felizes que por aqui vão construindo a sua vida.
Estou mais normal. O dia não foi coisa mole e não tive outro remédio senão deixar-me de frioleiras e arrebitar. Não é que esteja famosa mas, pelo menos, não estou tão dorida nem tão caída de sono como estive no fim de semana. Devem ser os tais dois dias.
Não tenho muito a contar pois o muito que teria -- e oh se teria, que a natureza humana, por vezes (e em algumas pessoas), é pérfida, hipócrita, sórdida até -- não pode ser aqui exposto. E, para sorte dos que comigo lidam, não tenho nada a ver com o reformado e ressabiado Costa pelo que não deve ser esperado que, daqui por uns anos, um jornalista shopinha de massa me pseudo-entreviste para eu me desbroncar e ficcionar como se não houvesse amanhã. Portanto, sobre o que hoje se passou, ficamos assim.
Prefiro contar que no domingo, a muito custo, fomos passear com a minha mãe. Muito lentamente mas lá andámos, doridos, ensonados, espapaçados. Às tantas, vimos que havia, na baixa, uma feirinha com aquelas barraquinhas, umas com artesanato local, outras com bolinhos, pãezinhos, mel, esse tipo de coisas.
Eu e a minha mãe fomos de uma a outra, espreitando aquelas peças feitas, por vezes, com uma grande ingenuidade, outras com muito carinho, outras com uma grande falta de bom gosto. Mas como isto do gosto é subjectivo, está tudo certo.
Uma vez que gosto muito de presépios (sou uma pagã com gostos um bocado fofinhos), parei numa barraquinha que os tinha muito simples, minimalistas, feitos com conchinhas e pedrinhas. Estive a ver. Perguntei o preço de um. Não era caro mas não comprei, agradeci, fui ver as outras barraquinhas. A minha mãe achou caro. Eu disse que não: 'Se daqui tirarem o sustento, quantos presepiozinhos terão que vender para se sustentarem?'. A minha mãe disse que não, que deveria ser hobby de um casal de reformados. Eu não tinha reparado nas pessoas que lá estavam, não fazia ideia se tinham idade para estarem reformados ou se eram jovens hippies.
Depois de ter visto tudo -- o meu marido, que se tinha afastado, já a telefonar-me para me despachar --, resolvi voltar lá para buscar um little presépio. Estavam algumas pessoas à frente, tive que esperar para me aproximar. Depois fiquei a ver qual o mais simples e bonito.
Nisto, a senhora que estava a vender, uma senhora de alguma idade, grisalha, óculos, vira-se para mim e pergunta: 'Desculpe, é a (....)inha?'. O meu nome, no diminutivo. Olhei para ela. Não reconheci. Esforcei-me. Retorci a memória. Zero. Pensei: Terá sido minha professora...?Mas de quê, quando? Intrigada, hesitante mas quase à laia de confirmação: 'O meu nome é (...)' e disse o meu nome sem diminutivo. Ela sorriu, um sorriso largo: 'Ah bem me parecia... Sou a Pilarcita!'.
Ia-me caindo tudo. A Pilarcita! A Pilarcita? Mas como...? Não faço ideia da cara que fiz nem sei bem o que disse. A minha mãe agarrou logo na conversa, riu-se, disse que há séculos não a via, falou na mãe dela. Sei que a olhei atentamente tentando reconhecer a menina um ou dois anos mais nova que eu de uma rua antes da nossa. Era a miúda mais pequena, a que queria brincar com as mais crescidas. Maria del Pilar. Tratávamo-la por Pilarcita. Muito bem comportadinha, uma boa menina. Quando fui para o liceu ganhei novas amigas, deixei de andar a brincar na rua com as vizinhas. Creio que não a vi desde essa altura.
Enquanto olhava para ela, sentia-me absurda (como é que a Pilarcita poderia ter sido minha professora? Imaginar-me-ia eu como muito mais nova que ela? E ela reconheceu-me e tratou-me como me tratava quando tínhamos seis, sete, oito, nove anos... e eu sem ser capaz de reconhecê-la ou sequer encontrar parecenças...). Ouvia a minha mãe a falar e, enquanto isso, eu, olhando-a o que via era uma mulher que podia ser uma daquelas colegas da minha mãe e não uma amiga minha de infância...
[E, involuntariamente, pensava: Estou desfasada da realidade em relação a mim...? Mas to-tal-men-te? Tão to-tal-men-te assim...? Cega? Ceguinha de todo...? Os outros olham para mim e o que vêem é também uma mulher 'de idade', tão velha como a Pilarcita...? Será...?]
Falei-lhe dos presépios, que eram bonitos. Contou que o marido já estava reformado e tinha começado a entreter-se com as conchinhas e as pedrinhas e que ela, apesar de ainda trabalhar, gostava de ajudá-lo. Acho que não fui capaz de dizer mais nada pois estava em estado de estupor catatónico com o que tinha acontecido. A minha mãe continuou a fazer conversa enquanto paguei e enquanto ela embalava o presepiozinho.
No fim, a minha mãe disse-me que eu pouco tinha falado. Pudera... Estava sem acreditar que aquela mulher 'de idade' era a Pilarcita. E, para dizer a verdade, ainda não estou completamente em mim. Ele há coisas do caraças.
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Os vídeos abaixo não virão a propósito mas acho-lhes graça. Ariano Suassuna faz-me imenso lembrar uma pessoa com quem trabalhei há uns anos. Já, algumas vezes, aqui, falei dele. Foi das pessoas com quem mais aprendi, a todos os títulos. Gostava também de contar histórias e divertia-se imenso ao contá-las e ao ver como os outros se divertiam a ouvi-lo. Tinha uma história de vida fascinante, algo aventureira. Eu adorava ouvi-lo. Ria-me de gosto com ele. E ele a rir-se era como o Ariano.