(A filha, Mónica) vem todos os dias à casa do Gólgota ver se está tudo em ordem, agora que só cá vive a escritora, sempre acomponhada por uma senhora que toma conta dela e a segue como uma sombra. "Nunca a sua presença foi tão forte na casa. Sentimos a sua força, a sua intensidade, só que agora já não interfere. Só há o silêncio. Às vezes é muito desconcertante.", diz. Como um enigma.
Confere que a mãe acabou de almoçar e bebeu uma taça de champanhe. Faz questão de beber uma taça ao almoço e outra ao jantar, um hábito que adquiriu desde de que estabilizou depois do AVC, naquele acto de voluntarismo que espantou a neta. A filha interpreta esta vontade de champanhe a acompanhar cada refeição como a celebração de mais um dia.
Das imagens mais fortes que guarda de Agustina é dela na sala, a escrever com uma prancha em cima dos joelhos, papel e caneta na mão. Mónica entrou de repente na sala, a mãe interrompeu-se e deu-lhe atenção, depois regressou ao texto, numa expressão que a filha estranhou, "como em transe". Como se tivesse passado por um mundo diferente.
[Excerto do artigo "Agustina íntima" de Ana Soromenho, no Expresso deste sábado que comprei de propósito para ler este artigo. As fotografias obtive-as eu na net, ou seja, não integram o artigo]
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Já agora permitam que partilhe um vídeo que estive agora ver:
Agustina, no Porto, à conversa com Manoel de Oliveira
E, uma vez mais, o documentário "Agustina Bessa-Luís - Nasci Adulta e Morrerei Criança"
Ema senta-se à janela e, se alguém entrasse nessa altura, pensaria que é uma mulher serena. Imóvel, ela olha o rio que corre lá em baixo; o tempo parece ter uma outra dimensão para esta mulher cujo olhar voa transportando inacessíveis sonhos; de vez em quando, fecha os olhos e quem a observasse com mais atenção perceberia um leve altear do peito; quase respira fundo, quase denuncia uma leve inquietação.
Depois Ema retoma a leitura, passa as mãos pelas folhas do livro -- e há sensualidade na forma lenta como as suas mãos afagam o papel, tal como há quando olha vagarosamente o rio ou quando as narinas quase imperceptivelmente procuram os cheiros das árvores ou do corpo amado. E assim, nessa dança, ocupa o seu tempo: o olhar a levantar-se do livro e a dirigir-se ao rio, de novo ao livro. De vez em quando, encosta a cabeça, absorta, o olhar perdido.
Depois levanta-se, apoia-se no peitoril da janela. O cabelo solto, a blusa descaindo, deixando um dos ombros levemente à vista. O calor pesa-lhe. Afasta levemente o cabelo das costas, puxa-o para um dos lados.
Carlos assoma à porta, sorri-lhe; Ema devolve-lhe o sorriso. Traz-lhe um copo de sumo gelado, um toque de gin, e beija-a no rosto. Ema sorri, olha-o e é amor que há no seu olhar. Carlos beija-a no pescoço, do lado em que o cabelo foi desviado. Ema fecha os olhos, deixa-se beijar. Depois toca-lhe o cabelo, uma carícia suave, e aproxima o seu corpo do corpo de Carlos, oferece-se. Beijam-se enquanto a aragem faz esvoaçar ao de leve os cortinados.
Mais tarde, Ema diz que vai passear junto às margens do rio. Carlos pensa que é quase noite, que a aragem está a esfriar, que são perigosos os recantos que se escondem junto às águas mas não diz nada. Há muito que aprendeu que Ema precisa de se evadir e que jamais a poderia ter se a prendesse ou vigiasse.
Ema sai, os cabelos voam à sua volta, pensa que deveria ter trazido um casaco mas não volta atrás. Quando se aproxima das margens, começa a correr, e um cão corre a seu lado. Ema corre como se tivesse dezoito anos. Ou oito anos. Sorri. Lembra-se como corria ladeira abaixo quando ia da casa da avó para a escola, íngreme a descida, o corpo sem freio, quase a voar. Alguns cabelos brancos, algumas rugas, ela sabe-o bem, mas os anos não lhe tiram a necessidade de sentir o vento na cara nem o gosto da liberdade.
Depois, quando o sol já se pôs, Ema desliza pelos labirintos feitos de canas e murmúrios, desce até às pedras, à areia, descalça-se, deixa que a água molhe os pés. O cão segue-a inquieto, gane, tem medo. Mas Ema não escuta lamentos, não quer saber de prudências. Um outro vulto se move por perto, Ema não tem medo, sabe que o entardecer junto ao rio atrai os seres livres, os espíritos insubmissos.
Quem passe por perto nada verá. Talvez ouça apenas vozes, risos. Depois uma música, talvez flauta, e, a seguir, em voz baixa, uma toada, uma voz de homem que diz poesia.
Quando já anoitece, Ema retoma o caminho para casa, o cão mais descansado ao seu lado. Ema sorri. Depois pára, põe a mão sobre o coração. Ao retomar o caminho limpa os olhos mas o rosto está tranquilo.
Quando entra em casa, Carlos diz-lhe que está frio, que deveria ter mais cuidado. E diz-lhe que Pedro está na sala, à sua espera.
Ema sorri e corre a abraçá-lo. 'Pedro! A esta hora...? Não pensei. Que bom... Vieste.'. Pedro fica sempre levemente embaraçado com a exuberância da alegria de Ema quando o vê. Ela abraça-o com um afecto efusivo enquanto ele mantém a contenção. Carlos pergunta se ele quer ficar para jantar. Ema interrompe 'Claro que sim!'
Ema corre para a cozinha, rapidamente prepara uma refeição. Ao jantar, conversam os três animadamente, amigos, e todos os temas são abordados com bonomia. De vez em quando, Ema provoca Pedro, goza com a sua falta de jeito para arranjar uma mulher, diz-lhe 'Tanta inteligência, tanto brilhantismo, tanta citação, tanta conversa, e depois, na prática, zero...'. Pedro disfarça algum incómodo, Carlos repreende-a com o olhar. Ema ri.
Depois de jantar, Carlos vai dar uma volta pelos limites da propriedade, fechar portões e portadas. Ema e Pedro continuam a conversar e há uma cumplicidade entre eles, e falam de livros, de todos os livros que leram, dos que gostavam de ler, da paixão pela leitura que é mais do que paixão, que é vício, e do que pensam dos tempos que correm, e relembram histórias do passado, e falam do campo, e dos filhos, do que os filhos fazem, do que os filhos gostavam de fazer, e os olhos de ambos brilham quando falam dos filhos, e conversam, e conversam com vontade que o tempo não acabe para poderem continuar a conversar para sempre.
Ema enternece-se porque Pedro, nessas alturas, ele perde o olhar fechado e sombrio que tantas vezes tem e olha-a como se sentisse que nunca nenhuma outra mulher o compreendeu e aceitou desta maneira. Mas Ema sabe que ele sabe que o que sente não é correspondido, sabe que Ema ama Carlos, que Ema ama a sua liberdade.
E Pedro pensa que Ema não suspeita sequer do que ele sente nem do efeito que a sua feminilidade e sorriso exercem nele. E, por tudo isso, Pedro pensa que um dia deixará de aparecer porque não suporta viver uma paixão não correspondida. Mas, ao mesmo tempo, sabe que voltará sempre. Voltará para ouvir a voz de Ema, ver o sorriso de Ema, espreitar o decote de Ema, sentir o perfume que se desprende do cabelo de Ema, sentir o calor do rosto de Ema quando o beija e abraça para o cumprimentar. Voltará pensando que um dia deixará de voltar.
Carlos regressa quando Pedro se está a despedir.
Depois Ema espreita pela janela. O rio escuro lá em baixo parece imóvel. Ema aspira o ar fresco. Está feliz.
Liga então o computador. Escreve um texto no seu blog, escolhe uma música, imagens. A seguir abre a caixa de correio. E lê um mail de alguém que se assina com um nome desconhecido e que lhe diz que tem que parar de a ler porque não quer alimentar a paixão virtual que sente por ela (Por isso vou parar até um dia. Já não tenho fôlego para paixões dirigidas a quem não conheço, para paixões impossíveis, só porque gosto da sua maneira de estar na vida e das coisas que diz).
Ema ri e responde-lhe que tem pena de o perder como leitor. Depois desliga o computador, olha uma última vez pela janela, passa carinhosamente as mãos pelos livros e vai dormir.
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As fotografias são de Isabelle Hubbert que interpretou Emma Bovary no filme Madame Bovary de Claude Chabrol baseado na obra homónima de Gustave Flaubert.
Os nomes das personagens da ficção dominical que acabei de escrever -- a Ema (chamada a Bovarinha), o Carlos e o Pedro -- foram repescados de Vale Abraão, um filmede Manoel de Oliveira com argumento de Agustina Bessa-Luís.
A música lá em cima é She -- porventura mais conhecida na interpretação de Elvis Costellomas que me apeteceu ouvir interpretada por Charles Aznavour.
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Fotografia de Alexander Yakovlev
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E, se me permitem a sugestão, desçam até ao post seguinte, até ao Porto, uma cidade linda e que a Harper's recomenda como um dos dez destinos ideais para uma visita neste verão.
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Desejo-vos, meus Caros Leitores, um belo dia de domingo.
E que -- esteja eu numa de ficções, rêveries ou tropelias e gostem mais ou menos do que escrevo -- continuem aí, desse lado, a fazer-me companhia.
Um trabalho de investigação da equipa liderada pelo médico e neurocientista Nuno Sousa da Universidade do Minho, publicado pela exigente revista Science, comprova o efeito nefasto que o stress prolongado tem no cérebro. A equipa tem estudado a correlação entre o stress e várias formas de doenças demenciais, entre as quais ao doença de Alzheimer.
Na entrevista a Carlos Vaz Marques, na TSF, deu-nos conta desses trabalhos. Um cérebro submetido a frequentes estímulos de stress atrofia, como que bloqueia, passa a reagir de forma repetitiva, não relacionada com os estímulos casuísticos que recebe. Pelo contrário, um cérebro não sujeito a stress frequente é capaz de reagir de forma adequada, criativa, digamos assim.
Claro que há que distinguir entre o stress negativo e o positivo - o positivo é aquele que associamos à adrenalina, ao entusiasmo, ao desafio que, esse, é estimulante e benéfico.
Por outro lado, é sabido como a actividade física e intelectual regulares são essenciais para uma longevidade de qualidade.
Hoje faz 103 anos um dos maiores arquitectos de sempre a nível mundial, Oscar Niemeyer, o arquitecto de Brasília e de tantas obras em que a arquitectura assume formas escultórias, em que o betão armado é esculpido como uma obra de arte. Neymeyer sempre disse que a sua principal fonte de inspiração são as montanhas do Brasil e, sobretudo, as curvas das mulheres.
Neste aniversário, ao inaugurar mais um edifício, justamente a Fundação Niemeyer, ele explica: “Enquanto eu puder trabalhar eu trabalho, porque o trabalho me distrai, não é sacrifício. Cada problema que aparece é um esforço para resolver que me agrada muito e que ainda consigo fazer”.
A mulher, cerca de 40 anos mais nova, com quem se casou há 4 anos, confirma que ele está bem, com saúde, cheio de projectos, tem aulas semanais de cosmologia, desenha, faz fisioterapia, lê, edita uma revista e gosta de desafios. Diz que está agora a fazer um aquário dentro de água, coisa que nunca ninguém fez. ‘Isso me distrai’, diz ele.
Neste pequeno livro de 1993, em que o autor do texto é Oscar Niemeyer e o autor da capa, dos desenhos e da paginação é... Oscar Niemeyer, leio: " De um traço nasce a arquitectura. E, quando ele é bonito e cria surpresa, ela pode atingir, sendo bem conduzida, o nível superior de uma obra de arte. [...] Na cúpula do Senado, desprezando a característica autoportante que oferece o empuxo que criaria, inclinei em rectas sua linha circular de apoio, tornando-a mais leve, como preferiria. Na Câmara, depois de invertê-la, a estendi horizontalmente como a visibilidade interna exigia, procurando uma forma que a situasse como simplesmente pousada na lage de cobertura. E tudo isso fazíamos com tal empenho que lembro Joaquim Cardozo me telefonando: 'Oscar, encontrei a tangente que vai permitir a cúpula solta como você deseja.'. [...] Um dia, Carlos Drummond de Andrade escreveu num dos seus versos:' Oscar desenha na areia seu edifício.' E tinha razão o nosso amigo. De um risco inicial nasce a arquitectuta e até na areia isso pode acontecer."
É um prazer ler as palavras de Neimeyer, sentir o prazer supremo de alguém que nasceu para fazer o que tão bem tem feito ao longo da sua longa vida.
Daqui, deste lado do Atlântico, envio-lhe os parabéns, Arquitecto Niemeyer!
Manoel de Oliveira, que completou recentemente 102 anos, é feito da mesma fibra: tem dois filmes em fase de financiamento, tem vários projectos em mente, diz não temer a morte mas não querer perder tempo pois, com ironia, diz não saber por quanto mais tempo ainda cá andará.