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sexta-feira, agosto 21, 2020

Estantes, maminhas, marteladas e etc.




Acordei com uma dor numa perna. Tantos esforços tenho feito, tantos pesos tenho carregado, tão abaixo e acima tenho andado, debruçando-me nas caixas, esticando-me para arrumar os livros, alguns em prateleiras bem altas, livros e o demais,  que algum músculo se esticou para além da conta. Em simultâneo o trabalho, as reuniões, os telefonemas, e sempre a correr, sempre a pensar no que falta fazer. E, portanto, o corpo deu de si. Em mim, volta e meia, o muito esforço manifesta-se assim. Posso carregar caixas como um estivador que até eu fico espantada com a minha força, posso trabalhar dias a fio, horas a fio, e toda a gente acha de mais e me pede que abrande e eu só percebo que estou cansada quando aqui, à noite, caio instantaneamente a dormir. A energia e a resistência física não me faltam. Mas a ligação dos músculos aos ossos não deve ser das mais famosas. Acho que é aí, em cima, na zona de uma das virilhas, que me dói. Já tomei um ben-u-ron pois fomos ver se comprávamos candeeiros (e uma broca e buchas e extensões) e fiz mais uma máquina e tive uma reunião complicada e fomos ao supermercado. E, como estava com aquela dor e toda coxa, não tive outro remédio senão tomar um comprimido. Mas não arrumei livros nem deu para me esforçar muito, seria impossível.

De manhã, o meu filho veio com os meninos buscar as bicicletas para irem pedalar. Depois vieram largá-las e foram à vida deles. Mas estava em reunião nem consegui estar com eles. Ao fim da tarde vieram para fazer o favor de colocar as portas nas sacanas das estantes cor de rato quando foge. Desisti de me meter em trabalhos. Não era isto que eu queria mas a verdade é que, vendo bem as coisas, sendo benevolente e ceguinha, a coisa até é capaz de ficar com uma certa pinta. Uma parede toda em clarinho e outra, em perpendicular, toda em platinado foncé. Quando lá tiver os livros dentro logo faço a minha avaliação final. Como não gosto de me martirizar, quando acho que não vale a pena o desgosto, marimbo-me para as reticências e faço por descobrir vantagens. Na volta é a isto que se chama optimismo. 

A minha menininha mais linda queria ir trabalhar, ajudar-me, queria arrumar livros. Como eu estava impossibilitada, tal a dor, fomos sentar-nos na chaise longue que fica entalada entre a dita estante e a janela. Os parapeitos aqui são baixos e, por isso, ficamos a ver a rua, o jardim. Ela encostada à parede, entre a estante e a janela, eu reclinada no encosto. Ali estivemos a conversar. Adora estar cá. Disse-me que já escolheu a cama. Diz que o irmão a seguir fica na outra. A mãe perguntou onde fica o bebé. Ela disse que fica ou com ela e com o mano. Depois acrescentou: tu e o pai dormem no outro quarto. A mãe riu: ah, nós também dormimos cá? Ela sorriu, fez que sim. A mãe respondeu-lhe: 'Não... eu e o pai vamos mas é passar a noite a um hotel...'. Ela disse: 'Está bem'. E sorriu, toda contente. 

O mais pequeno queria ir à viva força para a cave, queria que eu fosse abrir-lhe a porta. Não fui. Expliquei que não havia ninguém para ir com ele. Disse que não fazia mal. Depois disse que podia ir o avô. Expliquei que o avô estava a acabar uma coisa, que tinha mesmo que acabar, não podia falhar. Depois perguntei-lhe: Mas queres ir lá para baixo fazer o quê? Respondeu: Para ir descobrir coisas. De facto, esta casa é uma verdadeira arcazinha do tesouro. Entre os recantos (e o que eu gosto de recantos...) e o que os anteriores donos cá deixaram, há sempre, de facto, coisas para descobrir. De vez em quando, a senhora, quando andava nas suas mudanças, perguntava-me se podia deixar algumas coisas. Eram coisas difíceis de retirar ou transportar, que não lhe serviam na casa nova. Tenho ideia que disse que sim a tudo. Vasos muito grandes, alguns candeeiros, prateleiras, arcas de madeira, uma mesa metálica que pesa toneladas e que, aproveitando os possantes homens das mudanças, veio para debaixo do telheiro. Portanto, de vez em quando, em especial na cave e garagem, vejo coisas que não sei bem para que servem. Por exemplo, uns módulos de gavetinhas. O meu marido perguntava no outro dia: 'Para que é que os gajos quereriam isto?'. Não faço ideia. 'Para guardar facturas, coisas assi...'. O meu marido achou que não: 'Só tu é que ias pensar numa coisa dessas'. Pois bem. Ontem, para minha surpresa, vi que já ocupou um módulo. Buchas, pregos, parafusos. Só o vi usar uma gaveta mas, na volta, vai organizar as suas ferramentas e afins por gavetinhas.

Mas o bebé não sabe disso. Se soubesse, então, ficaria curiosíssimo. Gosta de montar coisas. O pai até lhe ofereceu um martelo a sério. Quando o vejo de martelo em punho fico em pânico, a temer que me destrua a casa. Mas, até ver, ainda não.

O mano do meio é de outro calibre. Estava a ver televisão e, de repente, deixei de vê-lo. Chamei, chamei. Nada. Fui em busca, de divisão em divisão, e nada. Depois vi a luz da casa de banho acesa e pensei, ora, coitado, já não pode ir à casa de banho em paz. Passado um bocado a irmã veio dizer-me: o mano não está na casa de banho: ele é muito esperto, acendeu a luz e fechou a porta para nos enganar. Chamei por ele e ouvi a voz a vir da sala. Perguntei-lhe: 'Onde estavas?' Respondeu-me, com ar lampeiro: 'Estava aqui...'. e eu: 'Não estavas nada. Diz lá.' Detectei-lhe um arzinho de quem queria disfarçar a matreirice. E aí tive um lampejo: 'Não me digas que foste outra vez a procura daquele livro...'. Desmanchou-se: 'Descobri outro também com mulheres nuas...' e fez um ar malandro. Só me ocorreu dizer: 'Não posso crer. És maluco'. Não disse mas pensei: sai ao pai que, era quase bebé e já todo ele se entusiasmava com maminhas. Tudo o entusiasmava: fotografias, estátuas, manequins em montras. Pois quem sai aos seus não degenera e cá está o mano do meio, oito anos acabados de fazer, sempre empolgado com seios femininos.

E depois, uma vez montadas as portas das estantes, lá foi o casal fazer uma corrida e, uma vez regressados, lá se foram os cinco.

E eu fui trabalhar e o meu marido lá continuou. Depois fiz os meus telefonemas. Depois fui fazer o jantar. Jantámos às dez e meia da noite. 

Uma vez aqui chegada ao sofá, ainda circulei pelos jornais a ver se alguma coisa puxava por mim. Pode andar por aí meio mundo às turras, os médicos e o Costa, o Rio e o Albuquerque armados em não sei o quê ou pode o Marcelo andar feito nadador-salvador, pode a imprensa e as redes sociais andarem com o André Populista ao colo ou pode o Chiquinho-bebé andar a brincar aos partidos... que eu, Caro Anónimo, não sei se é das canseiras, se é da falta de pachorra para coisas assim, a verdade é que nada disto me dá pica para escrever sobre.

O que me interessa é seguir o conselho do Amofinado sobre o reencaminhamento do correio, o da Gata Aurélio sobre a forma de fixar quadros sem furar paredes (já cá cantam, já os trouxe do Leroy), a solidariedade do Francisco quanto à corzinha arratada da estante, a empatia da querida Sol Nascente e a todos que, em comentário ou mail, me deixam palavras sempre tão simpáticas e a quem aqui deixo os meus agradecimentos.

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E usei aqui pinturas de Wassily Kandinsky ao som de Max Richter: Never Goodbye.

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Entretanto, adivinhando que ando à volta das minhas estantes, o meu amigo algoritmo tinha estes vídeos aqui abaixo para me sugerir. Não é a primeira vez mas é o género de vídeo que posso ver várias vezes pois descubro sempre alguma palavra nova.

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A estante do Pedro Mexia


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A estante de Clara Ferreira Alves

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A estante de Rui Cardoso Martins


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A estante de Teolinda Gersão


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E uma bela e feliz sexta-feira

quarta-feira, fevereiro 26, 2020

As estantes deles. E alguns dos livros que arranjaram guarida in heaven. E o que os livros que escolhemos dizem de nós.
E outras coisas.





Há sempres partes dos meus dias de que aqui não falo. Mesmo quando parece que falo de muito, em geral aquilo de que falo não é senão o que se passa in between. Geralmente também não falo do que me preocupa enquanto me preocupa. Quanto muito, falo quando já não estou preocupada. 

De vez em quando sou surpreendida com comentários que nem chego a publicar ou mails nos quais as pessoas querem mostrar-me que conseguiram traçar as linhas que juntam os pontos que me definem e só falta desenharem o que pensam ser o meu retrato robot. Pasmo. Mas, se calhar, pasmo porque sei que o que omito é mais do que o que revelo. Mas aos ousados que me escrevem a evidenciar a prova da sua inteligência não passa pela cabeça que jamais se pode traçar um perfil e, muito menos, enchê-lo com carne e espírito, quando, na realidade, pouco se sabe de uma pessoa.

Mesmo que eu aqui expusesse os meus dados biográficos, o meu curriculum vitae detalhado, a minha ficha clínica e as actas das reuniões em que participo não se poderia concluir muito. A vida de uma pessoa é sempre tão mais do que aquilo que parece ser.

Mais: mesmo de pessoas cuja vida se pode consultar na wikipedia, que têm presença regular na comunicação social e na vida pública e mesmo quando praticam um estilo quase confessional, dificilmente se pode concluir que as conhecemos. Por exemplo, quem nos garante que, em privado, não se desdobram em disfarces ou que cultivam segredos ou que alimentam vícios inconfessáveis ou que escondem amores intangíveis? Ninguém garante.

Portanto, ninguém conhece ninguém, excepto, quanto muito, quando se trata de pessoas bidimensionais, desinteressantes até à quinta derivada, pessoas que se comprazem numa vida de inutilidade absoluta. Conheço pessoas assim. Olha-se e dir-se-ia que são pessoas que vivem vidas absurdas de tão desprovidas e nulas que são e, no entanto, são felizes nas suas rotinas e gestos inúteis. Dou por mim a pensar que, justamente, talvez sejam essas as pessoas que me melhor interpretam o absurdo ofício que é viver. 

Estou com isto pois hoje, de tarde, estando no campo, dei por mim a olhar alguns dos livros que por lá param. Geralmente são livros que levo para ler e que acho que é melhor lá ficarem para os completar no fim de semana seguinte ou para quando tiver tempo. Ou livros que acho que é melhor que estejam à mão quando quiser ir ler à sombra. Ou livros que quero ler com mais tempo, talvez nas férias. E pensei: será que, por estes livros desirmanados, alguém poderia decifrar o meu ADN?

Fui buscar a máquina e fotografei alguns dos montinhos. Ao ver agora as fotografias descobri alguns, poucos, uns dois ou três se tanto, que não sei bem o que são. Provavelmente esses ficaram justamente por não saber isso mesmo: o que são e onde melhor se encaixarão. 

Já agora, a propósito, um apontamento confessional: andei a ver aquilo de que a casa está precisada. E é tanto. Falta-me tempo para deitar mão a isso mas não poderemos adiar por muito mais. A parte mais antiga precisa de pintura por fora e por dentro, as madeiras do chão e do tecto precisam de óleo protector. Se calhar no chão, cera. Gosto muito do cheiro da cera. Dá mais trabalho mas o cheirinho é um consolo.

Também estive a abrir os roupeiros dos quartos que eram dos meus filhos e constatei que estão cheios de roupas que eram deles. Penso que jamais as voltarão a usar mas, com alguma esperança, iludo-me que, talvez um dia aos miúdos, os seus filhos, lhes dê jeito usar alguma daquela roupa, ou porque se sujaram  ou porque se molharam. Mas tenho que rever o que ali está pois o mais provável é que tenha os armários cheios de coisas inúteis.

Entretanto, a minha filha pediu que tentasse encontrar os seus livros de pautas de quando estudou piano. Por isso, fui ver a grande estante que está na despensa e que, quando comprámos a casa, estava em lugar de destaque na sala da lareira, e descobri não apenas imensos livros e brinquedos de ambos, de vários escalões etários, bem como cadernos e livros da escola -- e também pensei que não sei se faz sentido ter aquilo tudo ali, entocado e inútil. E, como sempre acontece quando procuramos alguma coisa, tudo menos pautas. Fui, então, à casinha lá fora onde estão as máquinas de cortar mato, a serra eléctrica, tintas, uma mesa de ping-pong, uma mesa de plástico desmontada e uma grande arca antiga, de sândalo, trabalhada, e para a qual nunca descobri um lugar digno e visível. Pensei que talvez as pautas ali estivessem. Mas não. Estava um grande saco com cobertores e um outro com lençóis bordados e com rendas. E isso encheu-me de pena. Eram de tias do meu marido, talvez até dos avós. Na altura, tive pena de deitar fora coisas que eram tão estimadas e que estavam numa casa tão bonita, tão bem cuidada. O meu marido queria deitar fora, dizia que nunca iríamos utilizar. Não fui capaz. Mas agora, ao ver que tinha posto ali as coisas e que nunca mais delas me tinha lembrado, pensei também que tenho que repensar algumas decisões. Guardo coisas que penso que têm memórias associadas a elas, coisas que, daqui por algum tempo, alguém possa gostar de conhecer. Mas quem? Quando? 

Mesmo os livros. Receio o que um dia lhes venha a acontecer. As pessoas têm as suas casas e elas não são elásticas, podem não conseguir acomodar o que lhes possa ser destinado. Vi quando foi dos meus avós, de qualquer deles. Nenhum dos meus primos quis ficar com alguma coisa. Disseram que não tinham onde pôr. Pude ficar com tudo o que quis mas, verdade seja dita, pude porque tenho uma casa no campo, com espaço.

Ao ir agora escolher uma música para ouvir enquanto escrevo, o YouTube tinha para me mostrar estantes em casa de pessoas conhecidas. Claro que vi todos os vídeos, e com que interesse os vi. Uma estante é um mundo e o amor que se tem a cada um dos livros que ali está transporta um pouco de nós para aquele lugar que, para quem ama livros, é do domínio do sagrado.
Mas fico a pensar, tal como penso em relação a mim: o que acontecerá quando a pessoa for desta para melhor e alguém se vir a braços com tudo isto, tendo que dar destino a todos estes volumes? 
Há coisas que fazemos que só fariam sentido se vivêssemos eternamente. Assim é tudo meio louco. E o melhor é nem pensar nisso.

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E estas são algumas das estantes de alguns deles








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As fotografias foram feitas esta terça-feira in heaven e achei que uma Bachianas Brasileira de Villa-Lobos vinha mesmo aqui a calhar
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Desejo-vos uma bela quarta-feira