Conheci o seu trabalho quando recebi uma vez, de presente, uma edição encadernada a pele verde, um livro grande, muito bonito, com umas extraordinárias ilustrações de Júlio Pomar. Foi fascínio á primeira vista.
Depois, encantei-me com as suas pinturas de Graça Lobo. Humor e sensualidade em cores fortes. Ela a falar dele, qualquer coisa de apaixonante. Ela a fazer-se de indignada, aqueles sorrisos bem humorados: 'Cuidado... nem todos os cus eram meus... quer dizer, alguns eram mas aqueles assim mais... com pilinhas... esses não eram meus... ou ménages à trois... cuidado... esses não eram meus'.
E aquela dos falos, ele a rir, divertido, contando do marchand a perguntar para outro: 'Olha lá, tu eras capaz de ter um c... na casa de jantar?'
Depois os bichos. Depois as touradas.
E tudo. Uma tal liberdade, uma tal joie de vivre.
Uma vez fui a uma festa muito bonita. Havia o lançamento de um livro especial e ele era um dos convidados. Muita gente presa às suas palavras. Conversa boa a dele, toda rolando risos e irreverências entre as palavras, ironia, graça.
Não há muito tempo andei pelo seu Atelier-Museu e disso aqui dei conta.
Muitas vezes o trouxe aqui e, certamente, muitas mais hei-de trazer, assim me mantenha eu por aqui.
Como sempre, saí muito tarde e, como sempre, nada sabia do que se tinha passado à superfície da terra. Foi a minha mãe que, mal me atendeu e, em resposta à minha pergunta habitual ('Então? Tudo bem?'), me disse logo 'Olha, morreu o Júlio Pomar'. Como se fosse um amigo. E eu senti um baque. 'Ah... mas de quê? Estava doente?'. A minha mãe disse: 'Tinha 92 anos. Estava no hospital'. Depois pensei que era irrelevante. Saber a causa da morte para quê? Pena é ter deixado de existir um pintor tão extraordinário. Havia ele, há a Graça Morais, há a Paula Rego. Grandes vivos poucos mais há. Muito poucos. Alguns estão ainda a fazer-se, outros nunca serão nada mais senão o seu efémero nome. Júlio Pomar é enorme, eterno.
Li há não muito um livro sobre ele, uma espécie de entrevista. Luminoso. Gosto de ler as palavras dos pintores. Quando verdadeiros artistas, os pintores são geralmente pessoas modernas. Júlio Pomar foi um moderno.
Este documentário é imperdível. Gostei muito quando o vi pela primeira vez e gostei muito de agora o rever. Não, acho que agora ainda gostei mais pois revi algumas pessoas de quem já sentia saudades. Gostava muito que o vissem também.
No post abaixo falei dessa verdadeira tragédia nacional que é a saída da Shirley Temple do PS, vulgo Sérgio Sousa Pinto, da direcção do PS. A esta hora deve estar o José Gomes Ferreira, o Marques Mendes e, quiçá, até o apóstolo Marcelo, a oferecerem a sua sincera solidariedade. E imagino como o António Costa deve estar preocupado com esta perda tão dramática.
Mas, enfim, sobre esta desgraça para o futuro do País, falo no post a seguir.
Aqui, agora, vou divagar, andar pela beira do rio. À chuva.
Pela beira do rio, nestes dias de cinza e névoa, não há gente. Está frio, húmido, há um desolamento triste no ar. As águas revoltas atiram-se contra os paredões do cais, elevam-se nos ares, o estreito caminho todo molhado, uma pessoa que por ali vai, à chuva, encolhe-se na sua irrelevância, os sons da natureza são fortes, as águas tornam-se ruidosas, batendo agrestes contra as paredes.
Nestes dias, em que o meu rosto fica molhado e em que o ar que respiro é neblina e maresia, eu poderia chorar que nem eu mesma daria por isso. O tempo cinzento torna-me mais sensível, parece que também fico triste, vou andando rente às paredes em ruínas e alguns pensamentos mais lacrimosos chegam até mim: o que eu faço sem gostar de fazer, o que eu gostaria de fazer e não faço, o que eu gostaria de dizer e não digo, os medos, os medos que uma pessoa sempre sente. Vou andando, molhada, o cabelo molhado, o rio parecendo um mar insubmisso e eu pensando que deveria ter coragem, dar um primeiro passo, arriscar. Não consigo sequenciar os riscos, sopesar as consequências. Apenas me rejo pela intuição. Ouço vozes mas as vozes estão fechadas no meu peito, um remoinho, as mesmas palavras, uma e outra vez, voando às voltas dentro de mim: o que eu poderia dizer, o que eu me arriscaria a ouvir, o que eu poderia responder, as aproximações, os recuos. os medos.
E, então, chegam as gaivotas. Fazem círculos no ar, gritam, cruzam o espaço, sobem, fingem que vão mergulhar, e gritam, gritam loucamente. Fica no ar o peso da sua ansiedade, da sua incontida aflição.
Detenho-me a olhá-las. Estão tão inquietas hoje. Os seus gritos perturbam-me. Ando devagar, presa aos meus pensamentos, sentindo os gritos das gaivotas como gritos meus, gritos que ninguém ouve.
O que se passa dentro de mim é como se não existisse. Penso, talvez para tentar sossegar-me: se ninguém ouve, se ninguém sabe, então é porque não existe.
Pode sê-lo de si mesma e tornar-se
vazia. O que dela é nosso
veio a ser a sua perda?
Nem o rio opaco e mau, nem as paredes velhas e gastas, nem as gaivotas loucas, nem eu que aqui vou com passos nus, coração errante, olhar molhado, nem eu sei o que se passa dentro de mim. Como poderia outro alguém sabê-lo? Adivinhar-me? Compreender os meus pensamentos perdidos? Como poderia? Como?
Caminho e poderia caminhar até onde as pontes se afundam nas águas escuras, até onde os cabos e as cordas se afogam, até onde alguém poderia deixar-se morrer a ver ao longe o mar para onde corre este rio de chumbo, de um escuro tão pesado. Poderia deixar-me cair, mergulhar devagar, sentir o frio a entrar nas minhas veias. As águas devem estar frias, opacas. Nestas águas não há estrelas do mar, nestas águas não há luas, não há céus, não há azul.
As gaivotas hoje não vêm ter comigo, não olham para mim, não me reconhecem. Eu não me reconheço.
Penso. Falo dentro de mim e é dentro de mim que sinto o bater de coração alheio, os medos alheios, as hesitações, os medos, as ameaças. Olho as gaivotas, continuam inquietas. Agora voam em silêncio. Já não gritam. Já não vêm delas a palavra que me recuso a pronunciar.
Ninguém
a pronuncia. Sabemos que só existe
numa página agora branca, quase
transparente.
Os meus passos levam-me, conhecem o caminho. O ar está pesado, molhado, respiro as lágrimas das gaivotas, as minhas.
Depois desaparecem. Uma única permanece, quase invisível. O céu está muito escuro, o rio escuro também. A gaivota afasta-se, sobe, de vez em quando parece querer voltar mas depois torna a subir, a afastar-se. Depois, como se se despenhasse no vazio, regressa. É como se o medo se corporizasse nessa gaivota inquieta. E grita, recomeçam os gritos.
Encosto-me às paredes. Chove mais. Recolho-me sob o tecto de uma casa abandonada, sem janelas, sem telhado, toda ela uma ferida aberta.
Penso: vou ouvir uma voz trazendo-me uma toada, um poema esvaindo-se de uma parede esventrada, sangue e saudades escorrendo das paredes que o tempo maltrata.
Recebe o sentido
do que se não exprime seque, e fica
assim: para lhe pertencerem
todas as palavras.
Penso: do fim do mundo, vai vir até mim alguém que me trará poemas que atravessam os tempos. Do fim do mundo. Do fim do mundo. Talvez um marinheiro perdido no tempo, talvez um ser anfíbio saído das águas. Encosto-me mais à parede. Mas não ouço nem um murmúrio. A parede está fria, molhada, silenciosa.
Saio. Recomeço. Vou até onde os amantes se sentam a olhar a bela e luminosa cidade. Mas, hoje, ninguém. O amor rarefez-se, a cidade escondeu-se, a luz apagou-se.
As vozes tristes que se escondem no meu coração começam a silenciar-se. A chuva acalma-se, o rio começa a retomar as suas cores de azul. O meu coração aquieta-se. Não quero pensar, não quero esta chuva desanimada dentro do meu peito.
Só o peso do chão
do negro chão da espera
se estende espesso a meu lado como mundo
e metáfora.
......
Fiz as fotografias, este sábado, no Ginjal.
Natalie Merchant interpreta Nursery Rhyme of Innocence and Experience
(...)
All round her wake
The seabirds cried
And flew in and out
Of the hole in her side
(...)
A itálico, repartido em três pedaços, o poema é Metáfora de Fernando Guimarães.
O quarto pedaço é a parte final de Manhã, um poema de Armando Silva Carvalho.
O título deste post foi retirado do poema Variações sobre Horácio, Odes, 2.10 de Carlos André
Os três poemas referidos integram o livro 'a vista desarmada, o tempo largo', uma antologia de Poetas em homenagem a Vasco Graça Moura
....
Permito-me relembrar que, no post a seguir, poderão saber a minha opinião sobre a saída de Sérgio Sousa Pinto da direcção do PS e o que penso da histeria reinante sobre as conversas de António Costa com o PCP e com o BE.
Atravessando a pé a Ponte D. Luís para o lado de Gaia chega-se a um ponto, um miradouro de onde se tem boa vista para o outro lado, onde há alguns plátanos. Uma dessas árvores, enorme e majestosa árvore, tem os troncos cobertos de rendas. O tronco dos plátanos descarna-se e ostenta manchas pelo que apenas com atenção se descobrem estas rosetas de renda fina que se confundem com a sua casca. Não sei como as colocaram lá, tão alto. Terão trepado? Não consegui perceber. O risco de as colocar lá ainda aumenta mais o interesse do que se pode considerar uma obra de arte.
A renda conjuga-se com o rendilhado dos finos troncos, dos restos de folhas, com o metal desenhado da ponte. E de repente percebe-se como foi possível trazer ainda maior delicadeza a uma árvore já de si tão bela, superando a sua natural perfeição.
sobre a minha cidade, falei-te ontem, mostrei-te as esquinas do tempo, a imagem de fachadas que ainda conheci, de outras que eu próprio ignorava; sobre a minha cidade e suas pedras, seus espaços de árvores graves;
e o que foi arrasado,
ou está a desfazer-se; as manchas do presente, a
poluição dos homens; e o que foi
violentamente arrancado por negócios sucessivos,
erros, brutalidades: o que era e o que foi
o que é dentro de mim o seu obscuro,
imaginário ser: costumes e conflitos,
maneiras de falar, a gente
e a confusão das ruas, as casas do barredo;
sobre a minha cidade achei que tu tiveste gratidão, a viste. que percorreste as pontes que a minha cidade a ti me trazem, entre gaivotas alastrando e músicas diferentes, e foste nascer nela.
....
O poema é 'sobre a minha cidade' de Vasco Graça Moura
Gisela João canta 'Vieste do fim do mundo' com Ricardo Parreira na guitarra portuguesa e João Tiago na viola.
Ao falar de Vladimir Polunin poderia estar a falar de um pintor russo ou talvez de alguns outros homens com esse nome. Mas não. Falo de um em particular. Falo de um ucraniano que viveu e trabalhou em Portugal. Não sei se ainda vive. Estava cá a ganhar dinheiro para sustentar a família e, em particular, para que o seu menino pudesse estudar.
O filho, Sergei, lá longe, começou por praticar ginástica e, sempre apoiado pela mãe Galina Polunina, passou para a dança. O seu corpo magnífico movia-se como o de um anjo, o menino dava nas vistas.
Ainda é pouco mais que um menino. Sergei Vladimirovich Polunin tem agora 25 anos mas uma carreira que já parece longa. Já foi primeiro bailarino no British Royal Ballet e agora é primeiro bailarino no The Stanislavsky Music Theatre e no Novosibirsk State Academic Opera and Ballet Theatre.
Não têm conta os prémios que já recebeu e as referências elogiosas um pouco por toda a parte. E olha-se para o seu corpo em pleno voo e mal se acredita.
ah, as grandes
sombras da música
estirando-se na tarde!
tu dançavas nos meus sonhos
e elevavas o corpo
num rodopio de perfumes
e então era a volúpia
das palmeiras esguias
sob o vento
fazendo a luz oscilar
em ziguezages
sobre as minhas pálpebras
e era o puro movimento,
uma cadência do ser
a modelar-te o corpo
entre citrinos
O vídeo abaixo mostra Sergei Polunin num cenário improvável e que, tão simples, se torna esplendoroso, uma grande casa vazia no meio de um bosque: e ele é um corpo tatuado, belo, que cruza um espaço cheio de luz. E, ao vê-lo, percebe-se que já é apenas meio homem, que já é também meio pássaro. A música pelo qual ele vai é “Take Me To Church” de Hozier, a coreografia é de Jade Hale-Christofi e as imagens foram colhidas por David LaChapelle.
Mas não é a força, a elasticidade e o virtuosismo que mais impressionam neste vídeo: é a emoção, a emoção pura. A todo o momento parece que Sergei vai sair dali a voar para o topo das árvores que cercam o belo edifício.
Sergei é um grande da dança. Sergei voa cheio de graça. E eu gostava que ele me levasse nos braços enquanto voa. Leva-me, Sergei, leva-me.
Sergei Polunin dança "Take Me to Church" de Hozier, realizado por David LaChapelle
Não me canso de o ver. Quanta, quanta beleza.
.....
O poema é 'rodopio' de Vasco Graça Moura in 'O caderno da Casa das Nuvens'
....
No post abaixo falo de Fernando Alves e dos seus Sinais e de como a sua voz e as suas palavras me acompanham, tornando mais aprazíveis os meus dias na grande cidade.
Mais abaixo ainda despedi-me do Borgen e ainda não tinha acabado de escrever já estava cheia de saudades.
No post abaixo já dei conta de piadas que recebi por mail. Cansada como estou, chegada tarde a casa depois de dois dias extenuantes, foi com alegria que li os mails que tinha à minha espera. Alguns desses mails continham anedotas e foi de bom grado que as dei a conhecer, rindo-me enquanto escolhia imagens que as ilustrassem.
Como infelizmente é frequente, não consigo agradecer e responder aos mails mas saibam que muito vos agradeço.
Mas, enfim, sobre a Noémia, o homem traidor e o ginecologista falo no post a seguir. Aqui, agora, a conversa é outra.
(...)
diga eu da superfície de um lago de sossego
em que a lua mergulha e uma brisa mais tensa
ressoa nos pinheiros, percorre a habitação
e traz em seus harpejos o eco de um soluço.
tornou-se este lugar a pedra da violência
onde se calam a voz, a luz, os sons da terra,
e tudo se entrechoca e tudo se fragmenta
e as quadrigas do tempo não poderão deter-se
e então é que eu escrevo desde esta realidade
esperando da escrita que pelo menos sirva
para espelhá-la em suas nuvens altas
e nas sombras que crescem até ao teu olhar
Gostava que alguém me fizesse as perguntas que vou escrever a seguir para eu ter o pretexto de me descobrir. E, se eu entrevistasse alguém que eu achasse que é um sonhador, também gostaria de conhecer as suas respostas a estas perguntas.
1. Nasce-se sonhador ou pode tornar-se um?
2. Conte-me um sonho de que se lembre. Talvez não o primeiro mas, sim, um muito recente.
3. O seu pai também era um sonhador? Quais as diferenças entre você e o seu pai?
4. Que relação tem com a vaidade?
5. Gostava de não ser um sonhador? É como gostava de ser?
6. O que diria ao seu filho (se o tiver ou tivesse) se ele fosse um sonhador?
7. Qual o seu maior medo?
8. Como é a sua relação com as pessoas que admira? Se a pergunta for muito genérica, personalize.
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Se eu não estivesse tão sem energia como estou, responderia. Talvez um dia destes responda.
Mas os meus leitores que o queiram são, naturalmente, livres de o fazer. Gostava de vos conhecer. Se não forem sonhadores, substituam os sonhos pelo que for. Bolos, por exemplo, para os que são mais bolos.
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Jose Maria Manzanares já se vos antecipou. Não é sonhador mas sim matador. Talvez vá dar no mesmo. E é tão matador que prestar atenção à sua dança escandalosa é quase pecado.
E aqui estão as respostas às perguntas (não são exactamente as mesmas mas são idênticas, mais coisa menos coisa)
Campanha Primavera/Verão 2015 Dolce & Gabbana - Entrevista com José Maria Manzanares
[O matador espanhol José Maria Manzanares - um dos protagonistas da campanha publicitária Primavera/Verão 2015 da Dolce & Gabbana - fala da sua vida, amor e da arte espanhola que é a sua profissão]
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A poesia no início é um excerto do poema 'o espelho' de Vasco Graça Moura in 'O caderno da casa das nuvens'.
As fotografias mostram José Maria Manzanares e Kate Moss fotografados por Mario Testino para a Vogue.
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Relembro que a seguir há drama, acaso, vingança. E sexo. E humor.
E já sabem: as vossas respostas à minha entrevista são muito bem vindas.
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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma bela quinta-feira.
No post abaixo falei dos gregos, dos croatas, da Merkel que está toda tef-tef-margarida, com medo de enfrentar o Alexis a solo, e dos croatas que também fizeram uma que não lembrava ao careca (quanto mais aos láparos desta vida).
Mas isso é a seguir. Aqui, agora, a conversa é outra.
Hoje tive na mão um pequeno livro mas não era bem um livro, era uma folha dobrada com pequenas gravuras. As gravuras eram delicadas, acho que eram japonesas, flores, pequenos montes, um rio, um pequeno barco, a sombra de uma árvore. O verso dessa grande folha dobrada era branco e eu pensei que poderia aproveitá-lo para escrever coisas. Mas depois pensei que não poderiam ser coisas minhas porque eu escrevo demais e para caberem ali tinham que ser aforismos, palavras sopradas, pequenos poemas. Pensei que poderia escolher palavras lidas por aí mas teria que as transcrever e ali ficaria bem uma escrita a caneta de aparo e lembrei-me das canetas de aparo mas não sei se ainda tenho alguma, talvez na escrivaninha ainda as haja, mas não tenho tinta, aqueles pequenos tinteiros, e o que eu gostava da cor azul, tão alegre mas, ao mesmo tempo, como que suave. Nem tenho uma letra desenhada. A minha mãe sabe fazer letra desenhada mas eu não. Depois pensei que poderia deixar o papel branco, assim mesmo.
Essa folha estava dentro de uma pequena caixa dourada em papel muito suave. E eu pensei que a caixa era tão bonita que nem deveria tirar o papel das gravuras lá de dentro, deveria ser uma caixa dourada com um papel com gravuras lá dentro.
Depois pensei, mas para que quero eu uma caixa dourada com um papel dobrado com gravuras? e não trouxe. Custava vinte euros e eu pensei que tenho andado a gastar tanto dinheiro em livros e logo este que nem era um livro a sério, que mais valia não o trazer. Voltei atrás e fui lá colocá-lo de novo. Mas agora tanto que eu queria sentir a seda dourada da caixa e ver as gravuras de jardins de bétulas, lagos com suaves barquinhos, cores inocentes, desenhos tão delicados, uma filigrana colorida e elegante, e não posso. Achei que não valia a pena, que não valia os vinte euros, e agora acho que eu é que não mereci aquela caixinha tão preciosa.
Acontece isto por vezes, atravessamos apressadamente os dias, presos aos hábitos, não nos desviando do que nos é familiar, não arriscando no que é diferente, não valorizando o que é simples. Tanto que eu gostava de agora estar a escrever e a ver o desenho de um jardim, de um lago, de um barco, de uma nuvem e depois levantar as mãos do teclado e ir acariciar a seda dourada da caixinha.
Gostava de esta noite sonhar que de manhã ia acordar junto a um lago transparente, onde se reflectiriam árvores transparentes, e que teria à minha volta muitas caixinhas douradas, umas com gravuras, outras com palavras, outras com pássaros inventados, outras com o reflexo de árvores transparentes numa água muito azul, outras, muitas, com sonhos.
Pode ser. Quem sabe? Tenho sempre sonhos tão bons.
e havia os canaviais em seu estouvamento
agitava-os a brisa num ondular mais lento
e às vezes desgrenhava-os um furioso vento
e era além dessa margem que tu tinhas assento
lá onde te buscava o meu contentamento.
eu estou na casa das nuvens
do terraço faço cais
passa uma nuvem e outra
e mais outra e vêm mais
quero apanhar uma delas
mas não sei em qual tu vais
chega a uma das janelas
e daí faz-me sinais
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O primeiro poema (incompleto - porque não quis aqui transcrever a parte do desalento com que termina) é 'allegretto' e o segundo é 'sinais', ambos de Vasco Graça Moura in O caderno da Casa das Nuvens.
A música é Après un Rêve de Gabriel Fauré.
As fotografias são de Kent Shiraishi
A cena da caixa dourada não é história, infelizmente é mesmo verdade.
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Permitam que relembre: sobre as rajadas de suão que assolam a empoeirada casa europeia, deixando assustada a bardajona e seu fiel séquito de láparos e papagaios mortos falo já a seguir.
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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma bela terça-feira.
O poema é 'uma invenção da penumbra' de Vasco Graça Moura in 'O Caderno da Casa das Nuvens'
As fotografias são de Patty Maher
A música é Music Around Circles - Marco Martins e Bernardo Sassetti
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Descendo até à Volúpia de ser o Sonho de Alguém, já a seguir, poderão ouvir Nina Simone nas palavras de Vasco Graça Moura ambos acompanhados pelas fotografias nuas de James Houston.
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Desejo-vos, meus Caros Leitores, um domingo muito feliz.
No post abaixo já vos dei conta do regresso da Lovely Lídia que vem com a pedalada toda, imparável, indomável. Se, no final deste, descerem até ao post seguinte verão porque vos digo isto.
Agora, aqui, muito rapidamente - porque cheguei a casa bem depois da meia noite e porque ainda me deu para fazer uma mudança de look no Um Jeito Manso - dou-vos conta de que não são 20 anos, já são mais, mas que foi esta música que me veio à cabeça quando acordei.
[Ainda não parecemos o casal de capa do vídeo abaixo mas tomara que, quando tivermos a idade deles, ainda estejamos juntos; e mais vinte e mais vinte e sempre juntos. Tomara.]
Palabras - 20º aniversário
Somos tão diferentes mas tão complementares. Ele diurno, eu nocturna, ele disciplinado, eu anarca, ele planificador, eu intuitiva. Mas respeitamos as nossas diferenças e, quando não as suportamos, paciência, adiante que para a frente é que é caminho. Duas peças iguais encaixam? Não. Terão que ser complementares, peças de um puzzle que vai evoluindo à medida que o tempo passa.
como a sentir a tua cara rente
à minha e as tuas mãos nas minhas, ou
como se a dança amarguradamente
nos desse nesta noite ainda um slow
levado a medo, apenas a ternura
a conduzir de leve os nossos passos
e o corpo estremecendo-te à procura
do seu lugar na grade dos meus braços
e a luz, fina película de vidros
por entre a frialdade de janeiro,
a trespassar os corações partidos
estranhamente, e o meu sendo o primeiro,
como se não doesse o que doía
na própria dor tingida de alegria.
Depois do trabalho, fomos ao cinema e depois jantar num dos restaurantes do Avillez, ali ao S. Carlos e, depois, passear.
Lisboa, bela, bela, ó meu deus, que bela estava Lisboa esta noite.
Há agora, em edifícios para tal restaurados, muitos pequenos hotéis, e boutique hotéis e hostels e há muitos estrangeiros, e muitos jovens, e há uma miscigenação nas ruas, nas vozes. Estávamos no passeio no meio de um grupo de que não conseguimos perceber a língua, uma língua estranhíssima. Mais estrangeiros que portugueses. Um ambiente engraçado, múltiplo.
A noite amena, as luzes a envolverem em mistério e romance as casas, as árvores cinéfilas, escadas luminosas cruzando as paredes, e nós dois passeando pela cidade, turistas também, descobridores de maravilhas.
Cá em cima a Pensão do Amor cheia, muita gente na rua, sentada nos muros e, lá em baixo, S. Paulo de novo cheia. Finda Abril, adivinha-se um maduro Maio e Lisboa abre-se ao verão, ao sul, ao azul meridional. E as noites, mais do que vagabundas, são românticas, pedem abraços, malícias suaves, brincadeiras de namorados.
é uma porção de terra rodeada
de amor por todos os lados?
uma porção de amor rodeada
de terra por todos os lados?
rodeada de água?
rodeada?
ah todo o amor é árduo a humano trato
e se interroga e ninguém
é uma ilha
onde se caça. apenas
se conhece asperamente
seu rodeado mapa de coral. apenas
contra a morte
a ilha, a redondilha.
Cidade de espantos, tascas, tabernas, azulejos, moda, design, barbearias, alternativos, castiços, casais típicos e atípicos, vadios, vadias, gente colorida, modernidade e becos, caminhos antigos e hábitos novos. Lisboa está tão diferente mas sempre tão igual, única, magnífica, cidade de recantos, de segredos, de amores clandestinos, ou antigos como o nosso.
E depois regressamos, jazz na rádio, um cansaço breve e bom.
Depois ainda aqui quis vir. Parece que o dia não estaria completo sem esta minha conversa aqui convosco. Não vos vejo mas sei que estão aí desse lado e a vossa presença chega até mim, sinto-vos, quase sinto como respiram.
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Já agora, antes de me ir deitar, a ficha técnica. Para mim:
Couvert: Manteiga trufada; espuma de tomate perfumada, azeitonas marinadas
Entrada: Brusqueta de pancetta com alho e alecrim,
Prato principal: Risotto de vitela e couve lombarda,
Sobremesa: Ananás em forno de lenha com sorvete de limão e manjericão.
Excelente e preços acessíveis. Recomendo.Pizzaria Lisboa do Chef José Avillez.
(Não me achem egocêntrica por só dizer o que eu comi mas é que já mal me aguento acordada, já não consigo relatar mais nada)
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A música lá em cima é Palabras, 20º Aniversário, Patxi Andión
Os poema são, respectivamente, 'como a sentir a tua cara rente' e 'o atol dos amores' de Vasco Graça Moura in Poesia Reunida
As fotografias foram feitas esta terça feira à noite na zona do Chiado em Lisboa.
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Relembro: desçam, por favor, para matarem saudades da Lovely Lídia.
Informo: continua animadíssima a troca de comentários sobre as motivações, as virtudes e outras adjacências inerentes ao 25 de Abril. A não perder: aqui.
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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma bela quarta-feira.
Palavra puxa palavra e assim se nutre uma boa polémica.
Um dia que me saia o euromilhões hei-de ter uma casa grande sobre o rio, um big loft, só vidros e cortinas e recantos, sofás confortáveis, cadeirões ao relento, candeeiros, lareiras, pinturas e esculturas, boa comida e boa bebida, e quem quiser que se chegue e diga poesia ou cante ou dance e que todos os dias se junte um grupo de amigos ou inimigos e se desencadeie uma boa e saudável polémica.
Nada estimula mais a mente do que uma bela discussão, papo saboroso, animado, diz tu, digo eu, diz ele, e não é nada disso, ora ouçam o que eu acho, e vá, calma. Seja sobre política, seja sobre arte, seja sobre o que quisessem. Uns a defenderem o Valtinho, eu a atirar achas para a fogueira, e outros o José Luís Peixoto e o que eu gostava de ter a Ana Cristina Leonardo, polemista residente a desancar neles e, sobretudo, no Pitta, que ela vira fera quando lhe dá o cheiro a ele. Ou uns a defenderem que, para a próxima, quem devia entrevistar o Láparo era o Ó-Dr.Medina e outros dizerem que a culpa disto tudo é da falta que os lombinha-briefings estão a fazer.
E todos bem vindos. Só não haveria de querer era violência física, agressões, isso nem pensar, ou insultos rasteiros como cala-te aí ó careca badocha, ou sabes lá tu, ó sapatona, vai mas é deixar crescer a franja ou palerma de aviário arraçado de maçães, não estejas para aí armado em alemão, ó piu-piu. Isso, não. Só decência, elevação e argumentos inteligentes. Claro que havia de ter à porta uns calmeirões, tipo Marques Mendes ou Liberato, para expulsar os primeiros que pisem o risco.
Esta terça feira vou jogar, que parece que há joker e eu tinha tão bons destinos para ele.
Bem, mas vem isto a propósito de um comentário que a Leitora JV aqui deixou sobre um texto que já era uma resposta minha a um outro comentário de um Leitor anónimo, e a um mail que o P. Rufino me enviou porque gostaria de escrever um comentário ao que a JV escreveu e a prosa não lhe cabia na quadrícula castradora mente pequena dos comentários.
E, portanto, cá está. Refresquem as gargantas, apurem os sentidos, que a conversa vai começar e quem quiser que diga de sua justiça.
A palavra ao Leitor P. Rufino:
Minha cara JV,
Permita-me um comentário ao seu, que não é crítico, mas de outro tipo. Há duas formas de saber descrever acontecimentos históricos: um é conhecer a História, estudando-a (como, por exemplo, se queremos falar sobre as Guerras Napoleónicas, ou a Antiguidade Clássica, ou a guerra travada entre os Absolutistas de D.Miguel e os Constitucionalistas/Liberais de D.Pedro, etc) e a outra é tê-la vivido, ou seja, ter vivido nessa época, por ocasião desses acontecimentos históricos, como foi o caso do 25 de Abril. Que eu vivi, assim como, ao que presumo, a autora deste Blogue. Mas, que não foi o seu, por ser mais jovem. Acontece. Meus filhos também não a viveram. No seu relato, simples e sem complexos, notam-se, todavia, algumas imprecisões sobre a verdade dos factos. Devo dizer-lhe que você está muitos furos acima dos meus jovens familiares, sobrinhos, filhos e primos, que seriam incapaz de semelhante relato, visto pouco ou nada se interessarem e quererem saber do 25 de Abril, como outro dia aqui referi. Quanto às imprecisões, convém não confundir a nuvem por Juno, como fazem alguns, por exemplo, quando dão excessiva relevância a situações que não constituiram a razão de fundo para o desencadear do 25 de Abril pelos militares, como seja a supostas rivalidade entre oficiais do Quadro e milicianos (que não eram requisitados, mas chamados a cumprir o serviço militar, obrigatório). O 25 de Abril não se deve a motivos profissionais de militares do Quadro (ou de carreira, como diz). Assentou noutras razões muito mais profundas, como, entre outras, a vontade dos militares, que faziam eco de uma boa parte da sociedade civil, em querer, de facto, acabar com a Ditadura, em querer um regime Democrático (com tudo o que isso implicaria), em querer o fim da Guerra Colonial, que eles sabiam que não seria ganha, nem política, nem militarmente, dadas as circunstâncias de isolamento político internacional em que Portugal então se encontrava, etc. E não foi um Golpe de Estado em sentido típico, ou seja, como nos ensinam os livros de Ciência Política. Na medida em que, desde o início, os militares de Abril tenham estado em contacto directo com as populações, contando com o seu espontâneo apoio e tendo posteriormente entregue o poder ao povo através de uma Assembleia Constituinte, não pode, jamais, ser considerado um Golpe de Estado (pasmo como pessoas que deveriam ter consciência disto, como Maria Filomena Mónica, fazem estas confusões!). Golpe de Estado foi o que Pinochet fez no Chile, em Setembro de 1993, ao derrubar um governo eleito democraticamente e instituir uma Ditadura (sangrenta). Os militares de Abril, pelo contrário, derrubaram uma Ditadura de 40 anos para devolver ao povo uma Democracia. Sejamos claros. Quanto aos presos políticos, foram muitos, inúmeros, ao longo do período da Ditadura. Todo o que contestava abertamente a Ditadura sofria a prisão, ou o degredo. Ou perdia o emprego (no Estado, etc). Intelectuais, trabalhadores, democratas, socialistas, comunistas, etc, encheram as prisões políticas da Ditadura. Eram presos políticos porque punham em causa, de uma forma ou outra, essa Ditadura. Que nunca se desvalorize isto. Por mim, conheci um ou outro caso, infelizmente. Houve excessos? Concerteza. Como em todo este tipo de situações. Aqui há tempos referi isso mesmo num episódio que nos sucedeu na família e ninguém ficou por isso traumatizado. Para terminar, os militares de Abril, ao derrubarem a Ditadura, permitiram que o País desse um salto qualitativamente enorme no Ensino, na Saúde, no Desenvolvimento, na Cultura, na distribuição de recursos e riqueza, do ponto de vista Social, no fim do isolamento do Interior, na Alfabetização, até mesmo na diferença que havia entre a Cidade e a Província (ainda me lembro-me bem como eram as aldeias do interior e o atraso das suas gentes antes do 25 de Abril). Isto tudo estava, de algum modo, inscrito no Programa do MFA, como um dos seus objectivos. Foi o programa possível. Daí para a frente foi o que sabemos. Elegeu-se uma Assembleia Constituinte, tivemos uma nova Constituição, democrática, seguindo-se, até aos dias de hoje, governos, parlamentos e Presidentes eleitos democraticamente. Só por tudo isto e é já imenso (!) estarei, para sempre, grato aos militares de Abril. Recordo-me ainda de um dia, em viagem de férias na Holanda (jovem estudante), pouco antes de 1974, ao mostrar o meu passaporte num pequeno hotel onde me instalei e ali ouvir: “Portugal, país fascista, hem?”. Serve isto para exemplificar que, para além daquilo que atrás mencionei, os militares de Abril deixaram-nos outra coisa – excepcional: a Dignidade de um povo. Devolveram a um povo cuja Ditadura desprezava (ou não fosse uma Ditadura, retirando-nos Direitos que só uma Democracia assegura), essa mesma Dignidade, que a Ditadura manchava há 40 anos!
Minha cara JV, não considere este arrazoado uma qualquer lição. De forma nenhuma, apenas um pequeno aditamento ao que referiu. Deixo-lhe um sincero abraço cordial! E este foi o comentário da Leitora JV: Olá, UJM,
Também me faz confusão ouvir pessoas dizer que antes do 25 de abril estávamos melhor do que agora e que com o Salazar é que isto funcionava bem. O 25 de abril pôs termo a um regime ditatorial que mantinha o país numa bolha isolada do resto do mundo, um país subdesenvolvido, com gente triste e feia. É claro que em 1970, o país era mais desenvolvido do que em 1926: os meus avós têm 80 anos e posso garantir-lhe que a qualidade de vida deles foi sempre em crescendo. A minha mãe foi a 3ª e última filha e a única não só a ir para a faculdade, mas a estudar para lá do 4º ano. Só que isso é pouco. Muito pouco. O 25 de abril foi uma coisa boa, disso não se pode ter dúvidas. E parece-me normal o PREC, as nacionalizações, o que se passou antes do 25 de novembro: vivíamos um período transitório, com diferentes fações a querer tomar o poder, é normal que um período desses traga dissabores a algumas pessoas. O meu pai, que se lembra bem do medo que a família dele teve de se calhar não conseguir passar a fronteira para Espanha em 75 e chegou a pertencer às juventudes nacionalistas do regime franquista (embora cedo se tenha libertado de vários condicionamentos educacionais, desde os extremismos de direita à religião), dizia no outro dia que em casa dele parecia que a Revolução Francesa ainda era algo que tinha acontecido há pouco tempo, como se tivesse sido há 20 anos e não há 150, e que se gostava era dos ingleses por serem contra ela. De facto, antes do 25 de abril vivíamos ainda no Antigo Regime. Agora outra coisa é dizer que o 25 de abril foi uma revolução popular, do povo. Não foi. Foi a tomada do poder por maia dúzia de capitães que estavam zangados porque, como havia falta de militares para enviar para a guerra, se promoviam a oficiais pessoas requisitadas civilmente, com uma formação de um ano, e não de 3 anos como os militares de carreira, aos quais eram, desta forma, equiparados. Não sou eu que sou cética; diz isto o Mário Tomé e dizia um militar no outro dia no programa "A 5ª essência" da antena 2. O 25 de abril deve-se a motivos profissionais dos militares de carreira. É claro que, no meio dos militares, havia algumas ideologias, uns tipos radicais, comunistas, e antes do 25 de abril já se tinha pensado no golpe como forma de mudar de regime: basta ler o programa do MFA. Mas a razão principal é a que disse antes. Se tivessem sido os estudantes, dos quais falou, a despoletar uma revolução, ou os comunistas, ou os liberais... mas não foram. E digo-lhe mais: os exilados, os que pertenciam a células comunistas, os poetas... eram "meia dúzia de líricos", já dizia Zé Mário Branco - homem insuspeito (quem nunca ouviu o FMI, deve mesmo ir ouvir!). Esses milhares de presos políticos de que falou, na sua grande maioria, não eram "verdadeiros" presos políticos: eram pessoas comuns, sem qualquer tipo de relação com movimentos anti-regime, que eram presas por "motivos políticos", tal como se caçavam "bruxas" durante a Inquisição. Boa semana, JV
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Dá gosto ouvir gente interessante, com ideias, com garra. Aprende-se, fica-se a pensar, apetece responder, acrescentar uma observação. Dá vontade de agora servir uns scones quentinhos, um doce de frutos vermelhos, um chá, ou uma bebida fresca e uns pastelinhos de qualquer coisa, ou, vá lá, até umas amêndoas salgadas torradas, qualquer petite chose. Tudo isto para reter a clientela, para que se deixem estar por aqui a discutir e a manter viva a chama da polémica.
Não podendo fazer isso e como forma de agradecimento, vou chamar os bailarinos. Espero que se sintam bem aqui nesta vossa casa e, se quiserem, saltem para a pista de dança e juntem-se a nós.
Yo te quiero siempre - Ernesto Lecuona, numa espectacular interpretação do Grupo Corpo
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vai-se a lasciva mão devagarinho
no biquinho do peito modelando
como nuns versos conhecidos quando
uma mulher a meio do caminho
era de vento e nuvens, sombras, vinho,
e sonoras risadas como um bando.
os dedos lestos vão desenredando
roupa,cabelos, fitas, desalinho.
a noite desce e a nudez define-a
por contrastes de luz e de negrume
ponto por ponto, alínea por alínea.
memória e amor e música e ciúme
transformados nos cachos da glicínia,
macerando no verão sombra e perfume.
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A música no começo era Gracias a la vida interpretado por Joan Baez & Mercedes Sosa Gracias
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A mulher quase desnuda da fotografia é Kate Moss em homenagem a Vasco Graça Moura, esse sedutor, que tão bem cantou a nudez feminina.
O poema é 'vai-se a lasciva mão' da série Sonetos Familiares inPoesia Reunida de Vasco Graça Moura.
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E, por agora, por aqui me fico. Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma bela terça feira.
E é viver a vida enquanto se pode, é o que vos digo.
O Salgueiro Maia, quando lhe dei a missão, avisou-me de que os soldados só tinham uma semana de recruta, não sabiam dar tiros. Disse-lhe, não faz mal, a tua coluna vai ser a coluna isco, traz a maior quantidade de material de combate que puderes, Chaimites, M47, Panhares, MBR, os soldados de capacete, metralhadoras e espingardas automáticas, munições, tudo. Quem vai opor-se a uma coluna dessas? Ninguém sabe que os soldados não sabem disparar. Vais à 2ª Circular, fazes o Campo Grande, Pequeno, Avenida da República, Saldanha, Marquês, Restauradores, Rossio, e montas o arraial todo no Terreiro do Paço. Ficas à espera. Se por acaso estiver o ministro do Exército no gabinete, vais prendê-lo. E vão lá todos ter contigo, a GNR, a PSP, a PIDE, a Legião, e a Cavalaria 7 e Lanceiros 2, se não apanharmos os oficiais antes.
Arriscado. E corajoso, ser o isco.
O Movimento correu riscos muito grandes. eu não tinha bem a noção do inimigo, não tinha sido feito nenhum estudo de situação. A GNR tinha acabado de receber 25 viaturas-choque.
A que horas é que o Marcello soube que estava apanhado?
(...) O Silva Pais diz-lhe que (...) o melhor é ir para o comando da GNR no Carmo. Fiquei a saber onde estava o Marcello. Às 5h30, o Salgueiro Maia diz-me, via rádio, que precisa de um oficial superior lá. Porque o ministro do Exército está no gabinete, tudo isto em código. Óptimo, vai prendê-lo. E ele diz-me, não posso, porque o Regulamento Militar diz que um oficial-general só pode ser detido por uma patente mínima de major e eu sou capitão. Que raio, no meio de uma revolução vem-me com isto. Mandei-lhe o tenente-coronel Correia de Campos. O Jaime Neves estava no posto de comando com missões não cumpridas e pediu-me para ir também. Quando lá chegaram, o general Andrade e Silva já se tinha pirado pelo buraco que tinha mandado abrir pela Polícia Militar, que lhe fazia a segurança. Abriram o buraco com as lanças expostas no museu. Piraram-se numa viatura civil para a Calçada da Ajuda, Lanceiros 2.
Às 11 da manhã, o Salgueiro Maia pede-me outra missão porque o Terreiro do Paço estava cheio de gente que subia pelos carros de combate, perdia-se o controlo. Disse-lhe, Charlie 8 reorganiza a coluna e abandona a missão, sobe ao Carmo e cerca o comando-geral da GNR porque o coelho está na toca. O indicativo do Marcello era Coelho. Com o cerco montado, às 12h30 resolvo fazer um ultimato ao comandante da GNR, Ângelo Ferrari, que tinha sido meu professor na Academia Militar. Digo-lhe que falo do Posto de Comando do Movimento das Forças Armadas. Ele chama-me camarada e eu digo que não me chame isso porque não somos camaradas. Estamos em trincheiras opostas. Dou-lhe 15 minutos para abrir o portão do Largo do Carmo e deixar sair o Marcello. Ele diz que o Marcello não está lá.
Desliguei e contactei o Salgueiro Maia. Charlie 8, fiz um ultimato. Se não acontecer nada dentro de 15 minutos, preparas as metralhadoras e vais partir os vidros das janelas do 1º andar. E o Salgueiro Maia diz-me, isso é despesa, depois quem é que paga isso? Não te preocupes, alguém há-de pagar. Passado um quarto de hora, ele hesita ainda. E eu, quero ouvir essa rajada, quero ouvir os vidros a partir, vamos embora! Até que ouvi estralejar, os vidros a partirem. Hoje sei, através de um livro do major Nuno Andrade, oficial da GNR que estava lá, que aquilo foi decisivo para a rendição do Marcello.
Antes já havia uma tensão monstra, com o megafone do Salgueiro Maia e o aparato. O Marcello telefona para casa do Spínola para se render. Os únicos tiros disparados por nós foram esses. Quando o Spínola me pergunta o que fazer com o Professor Marcello Caetano, disse-lhe para combinar com o Salgueiro Maia, tínhamos um Dakota no aeroporto para o levar, com o Tomás, para a Madeira.
(...) No 25 de Abril, os militares procuraram ter um comportamento cavalheiresco. E tiveram. Para o povo, o 25 de Abril foi uma nova vida.
Salgueiro Maia fala sobre a rendição de Marcello Caetano
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Primus inter pares
não perguntes se estas
são as vias
da perfeição da alma,
as concordâncias
duma arte de viver;
o tempo é excessivo nos vestígios: as
antiguidades de roma, as histórias
da morte no ocidente.
súbito um perfume
de remos no rio (audíveis?)
e vento nas conchas resguardadas:
guardam o coração e as suas
certezas ferozes, a sombra
resguardando a luz.
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O texto é parte da interessante entrevista concedida por Otelo Saraiva de Carvalho a Clara Ferreira Alves na Revista do Expresso deste sábado. Aliás, esta Revista é um número de antologia no que se refere ao 25 de Abril.
O poema é 'nó cego, o regresso, XIII' de Vasco Graça Moura (Porto, 3 de Janeiro de 1942 — Lisboa, 27 de Abril 2014) in Poesia Reunida.
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Muito gostaria ainda de vos convidar a visitarem o meu Ginjal e Lisboa. Hoje tenho, uma vez mais, uma visita frequente daquele espaço: Vasco Graça Moura. Sendo ele o ser múltiplo que conhecemos, vem sob várias formas: em entrevista escrita, falada, em poesia dita, em fado.
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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma bela semana a começar já por esta segunda feira.