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Foram jantar com Sara que os levou a um restaurante pequeno, simpático, a bons preços. Sara, muito animada, falou das aulas, do ambiente na universidade, da cidade, dos amigos e toda ela ria, gesticulava, os olhos brilhantes de juventude e esperança. Lídia ouvia-a, encantada. O contacto com a juventude, que bom, que arejamento de cabeça, e que sorte esta, de, enquanto estudante, poder estar num país estrangeiro, à solta, à descoberta. Disse-lhe isso mesmo, Não sei se sabe que tem muita sorte em poder estar aqui, aproveite muito bem, é muito bom. Eu nunca pude sair de casa, sempre constrangida, sempre vigiada, e, às tantas, já era eu própria cheia de medos. A minha vida teria sido toda tão diferente se eu tivesse podido ter a sorte que a Sara está a ter. Sara sorriu e fez uma festa na mão de Paulo, Eu sei, estou muito agradecida aqui ao paizão, foi ele que incentivou, que eu nem queria muito, foi ele que andou atrás de mim e eu sei o que isso lhe custa. Depois carinhosamente beijou a mão do pai. Paulo fez-lhe uma festa na cabeça.
Lídia sentia-se envolvida por esta ternura tão física, tão verbalizada. Era algo a que nunca estivera habituada, sempre tanta secura, tanta austeridade, sempre um tom de reprovação no ar.
Depois de jantar, apareceram uns quantos amigos de Sara que a foram buscar no meio da maior paródia e ela lá se foi, brincando, Está aqui uma chave, Lídia, pode entrar à hora que quiser e, se não quiser, também pode dormir fora… e piscou o olho ao pai.
Quando saíram, Lídia respirou fundo, pousou as mãos em cima da mesa, e, lentamente, pesadamente, começou a falar. Qualquer coisa, eram as vizinhas, tu não sabes mas elas estão sempre à espreita, era olha lá o que vai dizer a tua tia, ou era a tua avó se sabe, vê lá o que vão dizer. Cada rapaz para que eu olhava tinha defeitos, é uma gente que não tem onde cair morta, é uma gente que não presta, ele vê-se mesmo que é um valdevinos, quer-se é aproveitar de ti, era isto, aquilo e o outro. E os anos foram passando. Já lhe contei isto. Mas quero explicar.
Paulo viu como ela estava transtornada, tentou atalhar, Mas se lhe custa falar disso, para que é isto agora? O que lá vai, lá vai. Vamos mas é falar de coisas mais agradáveis.
Mas Lídia tinha que lhe contar. Sei que estou a ser maçadora, mas quero falar, tenho que lhe contar. E continuou, Se eu falava mais com alguém tinha que ser às escondidas para ela não pôr defeitos. O meu pai era um pouco melhor mas tinha medo dela, não abria a boca para me defender. Por isso, não foi por opção minha. Eu sonhava que me haveria de casar. Fiz enxoval, a minha mãe quis que eu tivesse um bom enxoval, dizia que ninguém podia pôr defeito. Tenho uma arca cheia de lençóis bordados, ponto richelieu, ponto pé de flor, outros com grandes barras de renda, renda fina, linha 20 que é quase como linha, fazia ela e fazia também eu, uma dor de cabeça fazer rendas assim, uma trabalheira, toalhas de mesa de linho com aplicações, jogos de casa de banho, tantas coisas, coisas que já não se usam, coisas que nunca foram usadas, coisas que eu tinha ali preparadas para um dia. Sonhava que me havia de casar, pela igreja, vestida de noiva com véu, um bouquet na mão. Mas nunca calhou, eu também andava sempre agarrada a eles, se queria sair com alguma amiga lá vinha ela, essa já está falada, tem uma linda fama, andas com ela, ficas falada como ela. Se eu a contrariava punha-se doente ou fingia, sei lá, fazia-se de vítima, quase não falava, o meu pai logo de roda dela e a olhar-me com ar de censura. Nem sei bem explicar. Passou um mês e outro e outro e agora tenho quase cinquenta anos e não sei como se passou todo este tempo e eu assim. Comecei a ter vergonha, já lhe contei. Como se tivesse defeito, alguém que nunca ninguém quis.
Falava em voz cada vez mais baixa e as lágrimas caiam-lhe lentamente pelo rosto.
Depois, com muito esforço, concluiu, Ainda sou virgem, Paulo. E baixou os olhos, tanta a vergonha. Não viu, portanto, que Paulo teve um quase imperceptível sobressalto. Mas logo se recompôs, Paulo é um homem habituado a tudo, não se haveria de aguentar com coisa tão inocente? Com ternura, passou as costas da mão pelo rosto de Lídia, limpando as lágrimas. Depois segurou-lhe as mãos, tomou-as entre as suas e beijou-as. Guardou-se para mim, portanto…. E sorriu. Lídia levantou os olhos e tentou perceber o que realmente pensava Paulo. Um homem talvez goste de desvirginar uma jovem mulher. Agora uma quase cinquentona…? Até ela, pondo-se no papel de homem, percebe. E o medo que ela tem, medo, medo da atrapalhação, medo, vergonha - e o constrangimento que isso deve para um homem, lidar com uma mulher entrada a portar-se como uma menina, credo.
Mas Paulo, se pensava isso, disfarçava muito bem. Mas, então, minha senhora, quando vamos nós tratar disso…?, ar brincalhão.
Lídia sorriu, já mais tranquila. Não sei, Paulo. E não se ria... Tenho medo. Sei que é um absurdo o que vou dizer mas…. acho que ainda não estou pronta… e ela própria sorriu, percebendo o ridículo da hesitação.
Não está pronta mas vai ficar, ora essa. Seria muito incompetente eu se não fosse capaz de tratar do assunto, ora essa, mas Lídia percebeu que ele se estava a esforçar por soar natural, percebeu que Paulo não estava, de facto, muito à vontade com a situação. Sentiu de novo aquela sua velha vergonha, era como se fosse imprestável, produto de refugo, toda a gente conhece o amor e ela não, as colegas falam naturalmente das noites que passam com os namorados, toda a gente conhece o que são os segredos da cama, as viúvas, as casadas, toda a gente tem experiência menos ela, a rejeitada. Contudo Paulo, cavalheiro e gentil, não se atrapalha com imprevistos destes, com quantos imprevistos e situações delicadas está ele mais que habituado a lidar, e diz Mas as coisas só são quando tiverem que ser, não tenho pressa. Quando for, quero que seja porque é da vontade dos dois. E não tenha medo que não é caso disso, mas Lídia sentia que a voz dele tinha perdido um pouco da firmeza habitual.
Algum tempo depois, Lídia disse que queria ir andando, que estava cansada, que ainda queria ligar outra vez a Nita, queria saber como estava a mãe. Paulo levou-a ao apartamento das miúdas. Despediram-se mas era como se fizessem alguma cerimónia.
O dia seguinte amanheceu cedo. Lídia sentia-se mais leve. Ligou para casa. Nita assegurou-lhe que estava tudo bem, que não precisava de estar sempre a ligar, que se divertisse, e acrescentou, Olhe, ainda agora já me fartei de rir com a sua mãe, imagine que disse que tinha passado a noite no truca-truca com o cunhado. Lídia respondeu, Ah sim? Com o cunhado? Sai-se com cada uma... O médico disse-me que é comum estes doentes terem conversas deste tipo. Ao princípio fazia-me impressão... e ainda me faz um bocado. Mas, enfim, a gente vai-se habituando a estes disparates. Lídia combinou que ligaria, de novo, à noite.
Estava mais frio e Sara colocou um gorro na cabeça de Lídia, embrulhou-lhe o pescoço com um lenço às cores, e Lídia, quando se viu ao espelho, quase não reconheceu a mulher jovem bonita que a olhava de frente. Riu.
Sara levou-os ao Vondelpark, um parque muito calmo, lindo, atapetado de dourado, grandes árvores, magníficas árvores.
E a água, sempre a água, e aquela paz.
Sentaram-se um pouco, olhando aquela natureza tão doce. Paulo, disse então:
Quando, Lídia, vier o nosso outono
com o inverno que há nele, reservemos
um pensamento, não para a futura
Primavera, que é de outrem,
nem para o estio, de quem somos mortos,
senão para o que fica do que passa
O amarelo actual que as folhas vivem
e as torna diferentes.
Lídia sorriu, deleitada. Não conhecia. Ainda Ricardo Reis?, perguntou. Paulo sorriu, Sou um pessoano...
Sara soltou uma gargalhada. Boa, paizão! Bom aluno, o meu paizão. E que jeito tem para dizer poesia, quem diria? O senhor agente da autoridade já pode declamar poesia quando for prender os marginais… Boa!
Paulo explicou. Eu gosto muito de poesia, é verdade, e então perguntei a Sara se havia poemas dedicados a alguma Lídia e ela enviou-me estes. Decorei-os para impressionar, confesso… Sim, que um homem faz qualquer coisa para agradar a uma miúda…
Lídia riu-se com a alegria cúmplice daqueles dois.
A seguir, Sara, brincalhona, colocou-se a meio dos dois e deu um braço a cada um. E ali foram os três, na maior alegria.
Depois foram andar de barco pelos canais, Têm que vir, têm mesmo, é lindo, tinha Sara insistido e eles, claro, fizeram-lhe a vontade..
Uma hora a andar por canais estreitos, debaixo de pontes, ao lado de casas que mergulham na água, depois até o porto onde entram os navios que vêm do mar do Norte, depois mesmo junto às belas moradias dos gentlemen, e os cisnes deslizando junto a eles. Tempos felizes, pensava Lídia, tempos tão felizes, meu Deus.
Lídia ouviu a explicação de que quase todas as casas têm um pequeno guindaste no topo porque, como Amesterdão sempre teve um problema de área disponível, as casas de habitação eram todas muito estreitas, pagavam imposto em função da largura e, então, as escadas eram tão estreitas que as mobílias tinham (e têm) que ser içadas pela janela.
Lídia soltava exclamações de admiração, Sara chamava-lhes a atenção, olhem ali, já viram?, olhem, reparem e Lídia pensava que queria que estes dias fossem eternos, que sempre os guardaria no seu coração. E Paulo olhava enternecido as suas duas meninas.
À tarde, Sara disse que tinha que ir fazer uns trabalhos com uns colegas mas que lhes aconselhava o Van Gogh. Paulo e Lídia acharam muito bem e adoraram.
Quando saíram, Lídia queixava-se um pouco dos pés. Paulo disse, Acho que faz bem pôr os pés de molho em água quente. O meu hotel não é nada de jeito mas, se quiser, eu trato-lhe dos pés. Lídia hesitou. Não disse nada e andaram um bocado em silêncio.
Depois, mais à frente, Lídia deu o braço a Paulo, encostou a cabeça no seu ombro e disse, Parece-me bem. Passado um pouco, estavam os dois a entrar no quarto de Paulo.
Depois, mais à frente, Lídia deu o braço a Paulo, encostou a cabeça no seu ombro e disse, Parece-me bem. Passado um pouco, estavam os dois a entrar no quarto de Paulo.
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Natalie Merchant interpreta, em cima, Nowhere Man.
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Caso ainda vos apeteça continuar, um pouco mais, na minha companhia, é com todo o gosto que vos convido a virem comigo até ao meu Ginjal e Lisboa. Hoje as minhas palavras pairam assustadas muito longe da longínqua utopia em que, afinal, vivia e juntam-se à gaivota de que fala Manuel Alegre no Cais das Colunas. A música é o lamento de uma ninfa, tal como o sonhou Monteverdi.
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E, por hoje, por aqui, nada mais. Apenas desejar-vos uma bela quarta feira, com muita saúde e boa disposição!