Hoje eu, em privado, tinha comentado que alguns pesos pesados da nossa política deveriam ir à televisão despejar água fria em cima dos jornalistas-comentadores e políticos-de-avário que por aí andam, descabelados e com fogo no rabo, a ulular a propósito da actuação do nosso Presidente e, ao mesmo tempo, aproveitar para dar uma ensaboadela em Marcelo, auto-proclamado líder da oposição.
Gosto muito do meu país. Gosto dos lugares, das paisagens. Acho que o meu país tem sítios lindíssimos. Gosto dos portugueses. Claro que, como em todo o lado, há gente de toda a espécie. Há os miseráveis e os ignorantes. Há os corruptos e os arrogantes. Os palermas e os parvos. Mas há muito boa gente, gente tolerante, gente generosa, gente talentosa, interessante. E há a língua portuguesa, tão bonita, tão rica.
Em muitos lugares do país há agora muita gente de fora. Se, por exemplo, estivermos na linha de praia, há uma multidão de jovens que falam outras línguas, muitos surfistas, muita gente descontraída que fica à beira mar a conversar até a noite chegar. Se estivermos na linha de restaurantes e esplanadas, estão cheias. Ouvem-se todas as línguas, as pessoas estão já um pouco bronzeadas e geralmente sorriem, de bem com a vida. E por todo o lado se ouve a língua portuguesa nas suas múltiplas variantes, dos brasis, das áfricas. Uma riqueza extraordinária. O país agora é aberto, alegre, inclusivo, luminoso.
Já lá vai o tempo em que os portugueses eram gente ensimesmada, gente que vivia fechada em casa espreitando atrás do cortinado, gente sempre pronta para a censura castradora, sempre pronta para a maledicência, pronta para rejeitar a diferença.
Ainda há alguns assim. Os que são dessa raça podem correr mundo e assentar arraiais noutras paragens que continuarão a ser assim, soturnos, fatalistas, maledicentes, sempre prontos para cortar na casaca dos outros. Gente maldosa, cinzenta.
Mas são uma minoria. Agora, por onde se passa, já se vê gente aberta à vida, aos dias que passam, à música e à claridade, já se vê gente que aparenta alguma confiança nos dias futuros.
Há ainda gente com rendimentos muito baixos, é verdade, e que, com certeza, não pode ter acesso ao que de bom a vida tem para oferecer. Mas onde não há? Em lado nenhum. Imaginar que há é querer viver dentro de uma utopia. Para além disso, em Portugal há apoios sociais e há a educação e há uma atenção crescente à necessidade de não deixar ninguém para trás. Haveremos de ser ainda melhores. E não é com palavras de ordem e parangonas que as coisas se mudam. É com acções concretas e uma forte consciência social.
Pode dizer-se mal de tudo, claro. Há quem o faça. Os populistas são assim. Ouça-se o líder do Chega e comprove-se: segundo ele, Portugal é uma desgraça, os portugueses uns desgraçados. E eu olho para ele e acho que desgraça é haver portugueses assim, como ele.
Há ainda muito a fazer, muito. Alguém diz que não? Alguém de bom senso acredita que Portugal é perfeito? Claro que não. O que é preciso é que ninguém baixe os braços, que ninguém de bem vire as costas aos que ficam. A partirem, que partam apenas os que não sabem honrar a história, a língua e a garra dos portugueses de gema.
O que temos pela frente é um percurso. Ainda não há cinquenta anos que vivemos em democracia. Durante décadas o país viveu tolhido, amarrado à força à pobreza, à ignorância. Éramos um país fechado sobre si próprio. E isso deixas marcas profundas.
Leva tempo a construir mentalidades novas, a abrir as mentes de forma colectiva, a abrir-se ao mundo.
Eu estudei em Portugal, perto de casa. Não me ocorreu ir para longe quando podia estar perto. Mas uma prima mais nova já foi estudar para uma universidade a centenas de quilómetros de casa. E a filha de uma outra prima já foi estudar para um outro país, um país longínquo. Os meus pais nunca me deixaram fazer o interrail porque eu queria ir com um namorado e eles acharam que nem pensar ir por aí, à aventura, com um namorado. E casei-me aos vinte porque não me passou pela cabeça ir viver com ele sem me casar. Com os meus filhos foi tudo diferente. Viveram juntos sem se casarem, passearam, fizeram o que quiseram. Não sei como será com os meus netos. Da minha parte, quero que sejam felizes, que realizem os seus sonhos -- mas que amem sempre, de paixão, o nosso país, que sejam sempre solidários com os seus concidadãos, que sintam sempre orgulho em serem portugueses.
Não é um sentimento abstracto. É bem concreto, bem real. É um amor verdadeiro, completo que, em cada pequeno acto, deve ser materializado. É daqueles amores que se quer físico, demonstrado. Quem ama o seu país sente-se também amado. É como com as pessoas. Amor verdadeiro é amor partilhado, é amor tolerante, é amor que se quer construir e para o qual se quer que depois de um dia venha o outro dia. Quando assim não é, então não é amor.
Há pouco apareceu-me um vídeo que mostra o meu País pelo olhar de um não-português, muitas vezes em imagens aéreas que, obviamente, não são alcançadas por quem anda com os pés no chão. Conheço aqueles lugares mas sob uma outra perspectiva. Gostei de ver. Que país tão bonito.
A seguir, com alguma edição, vi como um casal também não-português vê o nosso país. Vi muitos lugares que conheço e percebo o encantamento de quem os vê pela primeira vez. País mais lindo, o meu querido Portugal.
Partilho-os convosco. Mostram o país visual. Claro que há depois o país vivido, o país do dia a dia, tantas vezes tão difícil. Mas esse não é agora o tema. Só espero é que gostem tanto do nosso país como eu.
Os melhores locais para visitar em Portugal segundo Ryan Shirley
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Portugal - The Europe We Didn’t Know Existed!
Portugal has been on every "top travel destination" blog for years. Over a 2-week road trip we explored the beautiful castles, incredible history, and rugged coastline, from Lisbon to Sintra down to the world-renowned Algarve beaches and caves, and then all the way up to the rolling vineyards of the Douro Valley wine region in this fascinating slice of Europe.
Num inquérito a que me foi pedido para responder sobre uma outra pessoa (volta e meia é isto, passamos a vida a avaliar-nos uns aos outros ou a nós próprios, não há pachorra), a primeira pergunta indispôs-me logo: como é que a pessoa em apreço comparava com outras com quem eu tenha já trabalhado. E vá de classificá-lo. Desisti logo ali e participei que não ia responder. Aqui d'el rei. Tem que ser senão vai dar que falar, especular-se-á porque não o faz, pode até prejudicar a pessoa em causa. Informei que não gosto destes inquéritos, prefiro dizer o que tenho a dizer cara a cara. Mas pensa assim tão mal?, perguntou-me a pessoa em causa. Disse que já trabalhei com pessoas extraordinárias. Ele percebeu que não o acho extraordinário. Acrescentei que também com gente imprestável. Talvez tenha ficado mais aliviado.
Amanhã vou esforçar-me. Também não quero criar um caso nem quero prejudicá-lo. No outro dia, pessoa que muito prezo, uma das pessoas mais francas, intelectualmente honestas e sãs que conheço disse-me dele: é um tipo decente. Concordo. É decente. Se calhar eu é que sou muito exigente. Ou se calhar tive foi o privilégio de conhecer e trabalhar de perto com pessoas ímpares.
Pelo caminho, vim a recordar-me das três pessoas com quem mais aprendi, que considero como dos melhores profissionais, dos mais inteligentes que conheci, verdadeiras mentes brilhantes. Todos eles eram carismáticos, imperfeitos, longe de serem consensuais. Há já algum tempo que não me cruzo profissionalmente com pessoas de tal craveira. Gosto de pasmar perante provas de inteligência alheia, rasgos de coragem, jogadas de risco e, infelizmente, não me acontece faz tempo. É que não eram apenas pessoas com que dava gosto trabalhar: eram também pessoas com quem dava gosto conversar.
Vinha no carro a pensar neles, nesses três homens, tão diferentes entre si mas tão marcantes. Como apanhei muito trânsito pude recordar muitas situações. Tudo tem um lado bom: levar mais de uma hora a fazer um percurso que se faz nas calmas em metade do tempo dá para puxar pela memória, o que pode ser uma coisa boa.
Comecei o dia a ir para um sítio, a meio da manhã fui para outro, antes da hora de almoço para outro, depois de almoço para outro, a meio da tarde para outro e à noite regressei a casa. Nesta brincadeira devo ter feito para cima de uns cento e cinquenta quilómetros. E tanto que tive que fazer pelo meio. Agora estou com vontade de dormir. Praticamente não consegui usar ainda o computador. Estava a descarregar e depois a instalar actualizações, não mexia. Agora, depois de ter passado por todos os passos, quando reiniciou, apareceu-me a dizer que tinha mais actualizações. Perdido por cem, perdido por mil. Disse que sim. Está de novo a pisar ovos, a descarregar cenas. É que, com isto, não consigo fazer nada. Ia tentar responder aos comentários mas, de cada vez que carregava num, punha-se branco, a andar à roda. Desisti. Agora vou folheando os dois livros que tenho aqui ao meu lado, lutando para não adormecer, e ele nisto, a descarregar, a instalar, a meditar.
À hora de almoço, no meio do louco rodopio que foi o meu dia, cheia de pressa, deu-me para uma desopilinha, que é como quem diz uma desopilada rapidinha. Entrei na livraria e jurei que era mesmo só para ver livros e ganhar fôlego para o que vinha a seguir, de tarde. Entrei, pois, com aquela superioridade moral tão típica dos não-pecadores. Estava sozinha pelo que não fazia sentido fazer aquele sorrisinho arrogante com que os seres superiores manifestam o seu desdém perante as tentações que vergam os seres inferiores. Não sorri mas avancei de nariz erguido. Só para ver. Vi um com interesse, folheei, pensei: querias..., e segui em frente; mais à frente, um outro -- mas não é qualquer um que verga as minhas boas intenções. Segui. Ia pensando: noutros tempos, ia buscar uma cestinha e era como se fosse aos figos. Mas agora não. Mais um pouco e iria com um rosário nas mãos e punha-me a rezar o terço. E a seguir outro livro. Tão bom. Mas... vade retro. Por pouco não me benzi para puxar a mim os bons espíritos e esconjurar o apelo da tentação.
Até que vi um livro amarelinho, uma tamanhinho jeitosinho, uma capa bonitinha. Chamou por mim, o malandro. Fui ver: 'Escritor fracassado e outros contos'. Gostei. Autor: Roberto Arlt. Nunca tinha ouvido falar em tal pessoa. Tradutor identificado na capa (coisa digna de reparo): Miguel Filipe Mochila. Colecção Pedante. Espreitei e li que a Colecção Pedante nasce de muitas horas de conversas, troca de livros e ideias entre a Livraria Snob e a editora Pé de Mosca. Pareceu-me interessante. A seguir abri do outro lado e li que Roberto Arlt, 'O grande indigno da literatura argentina', nasceu em 1900 em Buenos Aires e morreu em 1942. Li também que o estilo de Arlt é furioso, mesclado, um motor aquecido com os detritos de uma sociedade urbana à beira da ruptura e que [obviamente] foi mal recebido pela crítica. Achei ainda melhor. Peguei nele e achei que até seria falta de educação deixá-lo lá. Condescendi: só este.
De seguida, segui com a mesma indiferença, superior. Vi mais uns quantos com vontade de ceder mas resistindo. A Santa UJM é santa, sempre santa, mesmo rodeada das maiores tentações.
Até que apareceram os 'Gatos Comunicantes'. Pimbas. Capa bonita, um belo tom azul. Correspondência entre Vieira da Silva e Mário Cesariny. Folheei. Gravuras, bilhetinhos, fotografias. E as cartas. Pensei: se calhar já tenho. Mas noutra edição. Será? Não sei. Pensei outra vez: apesar de tudo, há que manter o decoro, um mínimo de boa educação. E trouxe-o. Tal como o amarelinho também este, azulinho, está aqui comigo.
E com isto o tempo vai passando, daqui a nada são duas da matina. Não faz sentido. Vou desligar, vou dormir. Não vou agradecer os comentários -- não vou dizer a todos que me poderia dar para pior; não vou dizer à Luísa B. que fico mesmo contente por sabê-la junto dos seus meninos; nem à Isabel que não se zangue, que isto não tem nada a ver, é tudo na boa; nem vou dizer à Gina que Desavergonhada e Cara-Alegre são os meus nomes do meio pelo que nada a fazer, é mesmo um caso perdido; não vou dizer à Lucília que vinha no carro quando li o comentário e que dei uma boa gargalhada; não vou dizer à Luísa que aquelas florzinhas desenhadas e pintadas são mesmo bonitas e que se habilite ela a fazer parecido que certamente ficarão também mimosas; não vou dizer à Bea que está bem, pronto, se a peça é só utilitária e, de resto, sem graça que mereça prosa, pois, está bem, não falamos mais nisso; nem vou dizer à Janita que espero que o penteado estivesse a preceito quando se viu ao espelho; nem sequer vou dizer ao Francisco que é um valente por ter a coragem de se abeirar de um tal jardim pejado de flores de perdição. Nem vou dizer à JV, essa gloriosa evangelizadora, que, com esse tão grande amor, um dia ainda corro o risco de a ver a fazer parte da direcção ao lado do Vieira...
E como não vou dizer nada disso porque senão não durmo e a noite já não é uma criança e, ainda por cima, vai ser curta porque o dia vai ser longo, fico-me por aqui. E desculpem lá qualquer coisinha.
[O pintor é Carlos Jacanamijoy e o cantor James Taylor e eu desejo-vos um dia feliz]
Nunca tive um gato. A minha mãe contava a história de um gato que se assanhava, todo ele crescia, arqueado, todo se inflava, dzzzzzzz, silvava ele, os olhos medonhos, metendo-lhe medo -- era ela criança. Guardou esse medo até hoje. Se via um gato, desviava-se, cheia de medo, segurando-me a mão, já pronta a proteger-me mas com medo de ter que o fazer. E eu herdei esse seu medo.
A minha avó, mãe dela, tinha um cão, o Matateu, um cão preto bem disposto que tinha pavor de trovoadas. Essa minha avó tinha patos, perus e, em tempos, porcos. Depois deixou-se disso. Primeiro desistiu dos porcos, depois dos perus. Os patos sobreviviam sozinhos. O cão acabou por morrer atropelado. A minha outra avó de animais só teve galinhas e perus, numa capoeira grande que havia ao fundo, no quintal, nas traseiras da casa.
Outros familiares ou amigos meus, gatos também não. Cães, sim, vários tinham cães. Vim também a ter uma cadela, uma boxer dourada, macia, doce como mel de que ainda hoje tenho saudades como não tenho de outra gente que partiu. Mas com gatos nunca se proporcionou ter que conviver.
Mais proximamente, a então namorada do meu filho tinha um gato. O bicho era feroz e traiçoeiro como uma pantera. Cioso, ciumento, possessivo, dissimulava-se e, quando apanhava o meu filho desprotegido, saltava-lhe para cima, implacável. Arranhava-o sem compaixão. O meu filho, sendo apanhado desprevenido, apanhava grandes sustos. Eu assustava-me só de imaginar.
Lá no campo, de vez em quando aparecem gatos. Por vezes, estou na sala e aparece do lado de fora da porta de vidro um gato que olha fixamente para dentro, indiscreto. Outras vezes, vou a andar silenciosamente pelos caminhos, entre árvores, tentando não espantar pássaros ou coelhos e sinto um arrepio, sinto-me observada. Quase amedrontada, olho e dou com um gato a olhar-me fixamente. Depois, mal vê que o vejo, foge, furtivamente desaparece. Fico estática, meio trémula, como se um ser estranho me tivesse estado a vigiar.
Houve uma altura em que apareceu por lá um gato felpudo, de riscas cor de mel e baunilha. Aparecia frequentemente e ficava a olhar de longe. Talvez pela cor, imaginei que fosse meigo. Tentei cativá-lo, Bschhhhh-bschhhhh-bschhhhh e deixava-lhe lá um prato com leite. Não serviu de nada. Ia quando queria e desaparecia por temporadas. Agora não tem aparecido nenhum.
Onde agora vejo muitos gatos é no Ginjal. Já contei que há uma senhora que, faça sol ou faça chuva ela lá vai, carregada, levando-lhes ração, massa com comida enlatada. Os gatos estão gordos, ronceiros, uma pena. Quando vejo a senhora tenho sempre vontade de lhe dizer que não faça isso, que está a desgraçar os gatos. Mas tenho pena, também me custa desiludi-la.
Mas, apesar de gordos, os gatos conservam aquele olhar inteligente que eu gosto tanto de fotografar. Rondo-os, espreito-os. Por vezes olham-me com displicência, como se lamentassem que eu fizesse tentativas tão inúteis, depois olham noutra direcção, indiferentes, superiores.
Gosto de fotografá-los. Estas fotografias foram feitas lá.
Diz quem tem gatos que são bichos antigos, sábios, que parecem transportar o espírito de seres estranhos, eruditos, habitantes talvez de bibliotecas perdidas no tempo.
Uma colega minha chega sempre tarde a casa. Um dia que chegou cedo, a gata olhou-a com pasmo, e não a largava, intrigada com o que se teria passado.
Um ex-colega meu, pessoa de alguma soberba e forte ímpeto liderante -- a quem vejo agora essencialmente na televisão pois tem agora relevantes funções nacionais -- virava uma torrão de açúcar, todo ele se derretia ao falar do seu gato. Que se enroscava no seu colo ou que se deitava na secretária enquanto ele trabalhava, uma companhia incondicional, uma ternura. Uma vez estávamos a ter um encontro de dirigentes no Algarve e liga-lhe a mulher, em pânico. Contou ele, depois, que, pela aflição dela, pensou que lhe tinha morrido a mãe. (Quando relembra isto, faz um sorriso escarninho: nunca se deu bem com a sogra, uma manipuladora, diz ele). Mas não. Era o gato que tinha fugido. Já não teve parança, um desassossego, sempre a ligar para casa a saber do gato. Nada. Aflito, aflito como se a um filho tivesse sucedido algo de mal. Nem o sol do Algarve lhe soube a férias. Quando regressámos, ao fim de dois dias, ele ia cabisbaixo, parecia de luto. Afinal o gato apareceu pouco depois dele ter chegado a casa. Ainda mais ligado ficou ao animal.
No domingo, enquanto o meu marido conduzia, eu lia em voz alta, de Agustina ainda, em Longos dias têm cem anos:
Tento recordar-me dos momentos em que vi Maria Helena, dos seus gestos, dos seus gatos, dos seus jardins. Havia Lolita, que eu conheci velha e tremendamente sentenciosa, como Deborah, que foi juiz em Israel. Sentava-se debaixo duma palmeira e julgava. Devia ter aquele ar albino e olhos azulados da gata Lolita. A sabedoria também, a aficíon da intriga, as palmas das mãos pintadas com henné, como Lolita as pinta de carmim; e os olhos, com patas de mosca. Agora há outro gato, Bicho, com aquela cara de dragão que faz lembrar um letrado chinês do século XVIII. Se Bicho me dissesse, de repente, a história dos 47 ronins, ou coisa parecida, eu não estranhava. Tem o ar de ter saído duma casa dum Pequim onde se dava importância às mulheres, desde a portadora de água até à tocadora de banjo: porque elas podem ser um dia concubinas, esposas, imperatrizes. Bicho tem ar de ter sido imperatriz noutra incarnação; as garras, cortou-as para tocar piano, como faziam as verdadeiras princesas de Shantung no século XIX. Gosta de levura, acho que isso a droga ligeiramente. Ou é o seu passado opiado que a faz parecer tão concentrada. 'Desperta, desperta, Deborah' - digo-lhe. Ela olha-me severamente, como se estivesse no monte de Efraim, debaixo da sua palmeira. O filósofo Buber dedica aos gatos umas páginas extraordinárias; percebe-se que ele captou o tempo-limite que Teilhard de Chardin chamou o 'passo de reflexão'. O gato está nesse desfiladeiro entre a bestialidade e a consciência; e, às vezes, o seu olhar parece tocar a primeira nota da nossa complexidade, 'Bicho -- digo-lhe --, conheces-me?'. Ela muda o peso do corpo sobre uma e a outra pata dianteiras. É uma maneira de concordar e de me reconhecer.
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Há um deus único e secreto
em cada gato inconcreto
governando um mundo efémero
onde estamos de passagem
Um deus que nos hospeda
nos seus vastos aposentos
de nervos, ausências, pressentimentos,
e de longe nos observa
Somos intrusos, bárbaros amigáveis,
e compassivo o deus
permite que o sirvamos
e a ilusão de que o tocamos
['Os gatos' de Manuel António Pina in 'Como se desenha uma casa']
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E queiram, por favor, descer até aos amores desencontrados entre António Valada, Carlos Costa e Alexandra Ferreira com o Banco de Portugal e a Quinta das Celebridades à mistura.
Os meus olhos vêem hoje de maneira de diferente o mundo. Ciente de que há muitas vidas escondidas debaixo de cada uma que se vê, olho com mais atenção as coisas, as pessoas.
Uma árvore é um mundo que eu percorro com curiosidade, certa de que jamais vou poder saber toda a sua vida. Nunca saberei dos pássaros que ela abriga nem o que lá se passa entre eles. Muito menos saberei de bichos silenciosos que procuram a sua protecção, os seus sucos, a sua sombra, o seu abraço. Nem dela mesma saberei. O tronco modifica-se, a folhagem renova-se, a aragem fá-la dançar. E, por vezes, dança timidamente, apenas ao de leve, graciosa; mas, se o vento é um bad boy, logo ela, como todas as crazy girls, se deixa ir nos seus braços, se deixa vergar, tonta, frágil.
Antes, se via uma árvore quebrada, tinha um desgosto como se partisse um ser amado. Hoje isso não sucedeu. Aos poucos, vou-me habituando a que a natureza é assim mesmo, vão-se umas, logo nascerão outras. E de uma árvore que se deixou tombar pela paixão, nos braços do vento, se fará lenha que nos aquecerá, e isso também é bom. Outras vezes, os troncos cortados são peças bonitas e ficam por lá, belas na mesma.
Um esguio eucalipto estava caído, o tronco ainda preso por uma língua de madeira, as folhas já sem vida. Quase ia tombando sobre um cipreste; mas os ciprestes são árvores de sorte, predestinadas à eternidade, e não sofreu.
Gosto muito de eucaliptos, são perfumados, deixam um perfume fresco à sua volta e a sua folhagem esguia e colorida ondula ao vento como uma maré.
Adivinho que do tronco quebrado da árvore que tombou rebentará nova folhagem, a árvore renascerá. Imagino que dentro de uns anos ondulará também ao vendo, perfumando o ar.
A natureza é maravilhosa e eu vou aprendendo a compreendê-la, e cada vez a respeito mais, a amo de coração de aberto.
E a primavera está a chegar, as flores despontam, frágeis e coloridas. São efémeras. Devem ser olhadas com desvelo pois um dia destes, quando for à procura delas, talvez já lá não estejam. Assim deve ser todo o amor de verdade: intenso por não saber quanto dura, inteiro por não saber quando se quebra.
O tojo está também todo florido. As flores parecem pontos de luz, de um amarelo vibrante. Pintei, há tempos, um canteiro alto com umas cores indefinidas, azuis, violetas, rosas, que o tempo, esse mestre de todas as artes, tem vindo a esbater; e agora gosto de o fotografar em fundo, os verdes da vegetação vão mudando, as flores não nascendo e morrendo e as cores do meu canteiro vão assimilando o tempo que por ele vai fuindo.
Há um muro pequeno que também está cada vez mais bonito. Não sei de onde vêm os pigmentos que lhe vão trazendo desenhos floridos, às cores. Dantes eram sobretudo manchinhas brancas, líquenes que ali faziam casa. Depois foram aparecendo os amarelos dourados. Agora são maiores, da cor do sol, manchas de luz viva. Uma vez vi uma borboleta amarela ali pousada e achei que a borboleta talvez tenha pensado que eram irmãs suas que ali estavam. Acredito que as borboletas pensam, que têm pensamentos coloridos, sem se aperceberem da brevidade das suas vidas caprichosas.
A rocha grande que parece um bicho está cada vez mais branca e lisa. O sol bate-lhe, a chuva lava-a, o vento deixa-a mais polida, a pele macia. À sua volta nascem arbustos, flores, cheira sempre a urze, a rosmaninho, a cedro. À sua maneira, a rocha também se vai modificando. Existe desde sempre, não tem idade, creio que viverá para além de tudo. Por isso, esconde a sua perenidade com o silêncio, tem a nobreza dos seres superiores.
Nunca quis domar a natureza, nem quando construí pequenos muros para a delimitar. Mas hoje sei mesmo que ela é mais forte do que a minha vontade, ela vive de forma pujante, inteligente, e eu já aprendi a respeitar a sua suprema liberdade. Olho-a com admiração, com comoção.
O dia esteve incerto, frio; e eu passeio, aproveitando o sol. Depois, recolho-me. O meu marido está lá fora, serra o tronco do eucalipto e, por isso, desta vez sou eu que acendo a salamandra. Uso pinhas que acabei de apanhar, troncos de pernadas de outras árvores que ele tinha trazido para dentro. Vejo as chamas, sinto o calor bom, enrosco-me. E leio. Agustina, ainda -- devagar, voltando atrás, degustando, sorrindo.
Depois, já noite, no carro, leio em voz alta. Enigmas, sinais, subtilezas, sorrisos, cintilâncias, brevidades - e a viagem é ainda mais agradável.
Corredor sem limite - Vieira da Silva, 1948
Na gratidão buscamos forças para desarmar os caluniadores. Disse-me um cruel amigo: 'Proteger um artista é subsidiar um monstro.'. Disse isto porque não tinha a glória da gratidão com ele, porque andava por caminhos da cólera. O homem de glória tudo vence com a gratidão, que tudo ama. Às vezes eu vi em Vieira da Silva essa glória. Estava sentada na cadeira de verga, encostada como uma ave que se protege da tempestade, e o seu olhar era insondável. Ninguém no mundo podia interpretá-lo, e, no entanto, eu ousei isso porque pensei: 'só posso conhecê-la, se me conhecer.' Veio até mim uma carta do Verão 70, em que Maria Helena dizia: 'eu gostava de conhecer o meu universo, ou mundo através de si... Eu não me vejo, só vejo o que me rodeia, quase já não existo. É melhor assim, não existir. Vou ficando cada vez mais junto ao quadro até desaparecer nele de vez'. É a crucificação que toda a obra exige.
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Multiplicidade -- Formas de silêncio e vazio --
Nacho Duato
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E, agora, queiram, por favor (e se para aí estiverem virados, claro), descer até ao post seguinte para conhecer as pessoas que votam em Donald Trump. O vídeo mostra-as bem. Nada que enganar.
"Longos dias têm cem anos". assim me diziam quando se tratava de protelar um assunto, de o fazer amadurecer na lânguida separação do inadiável. E os longos dias passavam, carregados de justo sentimento pelas coisas que devíamos fazer de maneira lesta e durável. às vezes, não se faziam nunca. Outros planos, mudanças, resistências, vazios súbitos do coração, que é quem nos comenda o trabalho e a fantasia. "Longos dias têm cem anos". Era uma admoestação e uma ironia para o preguiçoso inveterado que num século acha tempo adequado para os seus projectos e a combinação laboriosa que os acabe. Só que eu, como o frade no seu horto, acordo sempre a horas, e retomo a palavra que tinha começado muitos anos antes.
Foi assim com Maria Helena e Arpad. Disse um dia: "Vou escrever um retrato de ambos.". Não sei quando disse isto. Ontem, parece-me; acontece que podia ter sido nos anos sessenta -- os anos sessenta foram importantes para mim. Mas não foi, com certeza, no dia em que os conheci. Porquê? as primeiras impressões não são decisivas. Às vezes são fatais, mas não decisivas.
Lembro-me que chegaram a casa de Sophia de Mello Breyner, à noite, e era como no teatro quando entramos tarde e se passa um bocado sem que se compreenda nada da peça. Entendi que se tratava de pessoas vindas de longe. Falavam do Brasil. Eu sabia pouco de tudo. Ainda hoje sei muito pouco de tudo, o que me causa embaraço quando vejo a tremenda bagagem de conhecimentos que têm as pessoas. Se ouvirmos tudo o que se diz nos autocarros, nas praias, nas repartições, ao fim do dia podíamos escrever uma enciclopédia em vinte volumes e até ter êxito com ela. Não há nada de mais aceitável do que a pequena sabedoria, os amores confessáveis e as histórias de doenças.
Maria Helena falava pouco. Olhava, sobretudo. Olhava com uma intensidade fria, como se estivesse a atravessar um rio e se dividisse entre o perigo e o prazer. O fundo arenoso onde se recortavam peixes prateados dava-lhe aquela expressão suspensa e maravilhada; mas, de repente, o remoinho da água trazia a noção da forte corrente, e, um pouco mais, era a dúvida, um temor concentrado, a razão alertada. O rosto exprimia angústia, os olhos abriam-se mais e ganhavam uma cor cristalina.
Entretanto, Arpad falava muito. Como todos os homens belos, conhecia bem o descontentamento que é merecer o amor. Disse: "A Maria Helena (bicho) estudou em Itália. A mãe dela mandou-a para lá quando ela tinha vinte anos, e passou lá bastante tempo. Uma mulher sustenta-se com pouco, e assim pode aguentar melhor do que um homem. Um homem tem que comer um bom bife.". pensei que Arpad observava bem, mas não me convenceu. Madame Curie sustentava-se de rabanetes no seu tempo de estudante de Paris, o que não a impedia de desmaiar de fome.
Imaginei Maria Helena em Florença, bastante acautelada de necessidades, recebendo as mensagens da mãe e da avó com quem se criara em Lisboa. Uma avó e mãe como as do jovem Proust, extremamente corajosas para a surpresa do génio. Olhei para ela e, nesse momento, pude localizá-la em Florença; com um vestido azul e os cabelos espessos presos com uma fita verde. Verde e azul eram as cores combinadas em certos trajos-alfaiate dos anos imediatos ao cubismo. O azul era uma cor da juventude; a cor da cólera, por mal que pareça dizê-lo. Não é o vermelho que é a cor do arrebatamento, mas o azul. A época mais deslumbrante de Picasso foi chamada "azul"; a de Vieira da Silva também. Esse azul traduz um vigor concordante com o melhor das aptidões humanas.
(...)
Íamos nisso do meu primeiro encontro com o Arpad e a Maria Helena. Arpad disse que estavam ali as três mulheres de mais talento em Portugal, e, por sorte, ninguém mais o ouviu senão nós três. Ele sabia que não ia acender rivalidades porque tínhamos diferentes artes. Modalidades, como se diz no Porto. (...) Pois nós não nos acotovelávamos na modalidade. Maria Helena pintava, eu escrevia romances, a Sophia fazia poesia -- e assim continuamos dentro do território demarcado, sorrindo, aplaudindo e permitindo ao génio a cumplicidade em que a emulação não mete o dente. A Sophia era um caso -- uma mulher que tem a cortesia de parecer vulnerável. Eu era um caso -- incerteza apaixonada. Vieira era um caso -- uma mulher justa, o que é extraordinário e incalculável. Por exemplo: eu não sou justa, ajuízo as coisas. Eu e a justiça somos pura coincidência; o facto de isto se repetir faz talvez o prodígio, mas não a certeza.
(...)
[Excerto de 'Longos dias têm cem anos' - presença de Vieira da Silva, de Agustina Bessa-Luís, mais uma bela edição da Guimarães editores]
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Devo confessar que é com esforço que me detenho. Ler as palavras de Agustina é, para mim, um prazer inesgotável. Transcrevê-las também. Há na escrita desta mulher um vigor exuberante, uma alegria sem preocupações, que me prende, que me prende como se fosse a primeira vez, uma sedução virginal. Posso lê-la muitas vezes e, a cada vez, é sempre esta surpresa.. Por vezes até me abstraio do que ali se diz para me render à forma como o diz. Contudo, quando Agustina fala de alguém que admiro, então, o fascínio é redobrado. Este livro, em que fala de Maria Helena Vieira da Silva e também de Arpad é maravilhoso.
E, procurando imagens de Agustina, encontrei um vídeo interessante que aqui partilho convosco, no qual o marido, Alberto Luís, companheiro e suporte de toda a vida, e a filha, Mónica Baldaque, falam dela para a Rádio Renascença.
A primeira imagem, da autoria de Arpad Szenes, é Marie-Hélène X, 1942, óleo s/ tela, Col. Fundação Arpad Szenes-Vieira da Silva. A última de Maria helena Vieira da Silva é Estuaire Bleu.
Lá em cima, Anna Netrebko interpreta A Canção da lua da ópera Rusalka da autoria de Antonín Dvořák sobre imagens de obras de Maria Helena Vieira da Silva.
No post abaixo já mostrei algumas das muitas razões pelas quais as mulheres, em média, vivem até mais tarde que os homens. O enunciado dessas razões não obedece a critérios científicos, dirão alguns dos mais cépticos. Ora, pormenores - responderei eu. Basta ver as imagens para perceber que são razões do mais plausível que há. De qualquer forma, uma recomendação: os que duvidam, por favor que não lhes passe pela cabeça fazer o que ali se mostra só para provar que não tenho razão. Combinado? Não quero que provem nada, ok? Portanto, mesmo que não concordem, por favor deixem-se estar quietinhos, ok?
Bem. Isso é a seguir. Adiante. Aqui, agora, a conversa é outra.
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Tarde tranquila, a família praticamente toda reunida, desde a bisavó aos quatro bisnetos. Destino: um programa completo na Gulbenkian. O tempo estava estranho, quase a chover, o céu escuro, a temperatura inquieta mas, quando o grupo se junta, não há nuvem pesada pairando sobre nós que apague a animação espontânea que logo se desenha.
A recta final levar-nos-á ao self para que a trupe se banqueteie com um opíparo lanche. Ocuparemos o corredor inteiro junto ao comprido balcão, cada um dos pimentinhas a escolher alto e bom som o que quer, o senhor que conhece os pais dos pimentinhas desde que tinham a idade que têm agora os filhos, sorrindo, depois, de tabuleiros nas mãos, escolheremos as mesas ao fundo, encostadas para que fique uma única, comprida - somos muitos. Há coisas que não mudam e que são a garantia de que o mundo tem laivos de perfeição. A Gulbenkian é uma delas - os edifícios, as exposições, os jardins, o self e as pessoas que lá trabalham: sempre a mesma acolhedora simpatia, sempre a mesma qualidade, ano após ano.
Mas, antes do lanche, os jardins, os recantos, os bancos abrigados. E conversamos de tudo e de nada enquanto os três rapazinhos brincam com os patos. Os dois manos rapazes fazem tropelias e o tio, que gosta de lhes dar a volta à cabeça, diz-lhes que ali se vendem patos, dois euros e meio cada, que convençam a mãe a comprar-lhes um, que podem usar uma das banheiras para o pato. E o mais pequeno quase começa a acreditar que talvez se vendam patos mas que acha que o pato não poderá ocupar uma banheira. O tio e a tia sugerem o bidé, Que convençam a mãe. A mãe responde que ele peça ao tio já que o tio é também padrinho. E o tio responde logo, 'Não posso porque dá azar oferecer patos aos afilhados' e, segundos depois, acrescenta 'fora da Páscoa'. Pronto. Ninguém comprou, portanto, nenhum pato.
Enquanto isso, a bonequinha mais linda esteve entretida a colorir um livro de desenhos com lápis e canetas que trouxe num estojo - e o facto de já ter um estojo fá-la sentir crescida, deveras a caminho da pré-primária.
Mas, se concordarem, vamos com música: não é sobre um lago com patinhos mas faz de conta.
Mas tarde na Gulbenkian que é tarde na Gulbenkian não passa sem um quinhão de arte. E, assim sendo, antes dos jardins, tivemos a exposição Olhos nos Olhos
Olhos nos Olhos O Retrato na Coleção do CAM De 22 jul a 19 out 2015 | Das 10:00 às 18:00 | Encerra às terças Galeria Exposições temporárias do Edifício Sede Curadoria: Isabel Carlos
O bilhete custa 3€ e ao domingo a entrada é gratuita
Esta exposição dá testemunho de um dos géneros mais explorados na história da arte, o retrato. Estarão expostas algumas das mais notáveis obras da coleção do CAM de artistas como Amadeo de Souza-Cardoso, António Dacosta, Arpad Szenes, Eduardo Viana, Gilbert & George, Jane & Louise Wilson, John Coplans, Jorge Molder, José de Almada Negreiros, Pedro Cabrita Reis e Sarah Affonso, entre muitos outros, produzidas ao longo do século XX e XXI.
Mostro algumas das fotografias que lá fiz. Não estão grande coisa: não apenas não é fácil andar a visitar uma exposição em grupo, especialmente com crianças, como não sabia se era possível fazer fotografias pelo que foram todas tiradas à pressão, sem cuidado com enquadramentos ou atenção aos pormenores.
Ok, confesso: nesta houve intenção no enquadramento e aos pormenores
(o Papa e, ao fundo, algo que, como se vê, despertava curiosidade nos visitantes)
Almada Negreiros e Sarah Afonso, marido e mulher
Pessoa por Almada, Pessoas por Costa Pinheiro
Não registei o autor. Quem é? Alguém me sabe dizer quem é?
Maria Helena Vieira da Silva pelo marido, Arpad Szenes
Lourdes Castro
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A música é de Saint-Saëns: Aquarium
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E acho que ainda não é hoje que vos mostro como estão doces as amoras, os figos e as pêras in heaven. A ver se amanhã arranjo tempo para fazer tudo o que quero.
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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma boa semana.
A todos desejo o que desejo para mim e para os que me são mais queridos: saúde, sorte, que tudo corra bem, que a esperança e a alegria ganhem espaço, que o futuro seja feliz, tranquilo.
No post a seguir a este, junto-me à senhora que não consegue parar de rir e a todos quantos se dobram agarrados à barriga ou rebolam no chão: esta do recurso do Crato ter que ser aperfeiçoado e darem-lhe 10 dias para ver se ele atina, é do melhor que vi nos últimos tempos. Hilariante.
A seguir a esse, uma lavagem de alma: duas talentosas sopranos portuguesas, uma delas candidata a melhor cantora do mundo.
Mas isso é a seguir a este. Agora, aqui a conversa é outra. Aqui fala-se de amizade.
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Um azul cobalto para a felicidade
Querido amigo
Estou há muitos dias para lhe escrever e não posso. Escrevo e rasgo, escrevo e rasgo e nada me parece suficiente para lhe dizer a minha amizade por si e a saudade do Inverno que passámos. Agora passou tudo. Agora a vida anda a correr. Só lhe posso dizer que reli aqui 'junto de um seco, fero e estéril monte', e ouvi a sua voz a dizer 'inútil e despido, calvo informe', e fiquei muito contente. Foi porque o ouvi com tanta atenção que agora ainda ouço a sua voz, distante.
Peço que me escreva logo, assim que receber esta carta para me dar notícias suas dos amigos e da Rosário que nós esperamos com imapaciência. Um grande abraço
Maria Helena
[Na lateral, por AS]
Alberto queridinho um abraço poético do Arpad
[Carta de Maria Helena a Alberto de Lacerda em Maio de 1962]
Meus Queridos Maria Helena e Arpad
Um azul ultramarino para estimular o espírito
De la musique avant toute chose
Et pour cela préfère le pair
(Verlaine, adaptado: porque estou a acreditar que mesmo Verlaine preferia o par ao ímpar, que o ímpar é coisa dolorosa 'sans rien en lui qui pèse ou qui pose' (que maçada, assim?).
Quanto ao par, o único que conheço são vocês dois. Evidentemente! Um Par-Ímpar! (Ou o Par-Ímpar com que o Souza-cardoso já se preocupava porque ainda não vos tinha visto a atravessar uma rua e a fecharem-se, por fora, em casa).
[Carta de Mário Cesariny de Junho de 1982]
Um amarelo limão para a graça
Um amarelo barite: ficção científica, brilho, esplendor
Um laranja para exercer a visão de um limoeiro ao longe
Querido Mário
Se uma palavra minha o ajudasse, mandava-lhe mil... mas lá bem posso lutar contra o seu demónio, saio vencida. Se o Mário me ouvisse... Para quê procurar assim o sofrimento? Ele existe por toda a parte, neste nosso pobre corpo doente que vai morrendo dia a dia, não lhe chega esse? Não lhe chega a sua imaginação? Precisa de provas. Ai de nós, e da nossa loucura sempre presente, sempre a lutarmos com ela até à morte. Não é fácil viver, querido Mário, mesmo quando parecemos equilibrados.
[Carta de Maria Helena a Mário Cesariny, de Janeiro de 1965]
Terra de Siena natural: a transmutação do ouro
Querido Alberto,
Andei perdida num mar de tristeza, de trabalho, de gripe. Não dei notícias mas penso sempre no Alberto um pouco inquieta, por não ter notícias. A Cecília* levou-me para outros mundos quase ia esquecendo que ainda estou neste.
Um grande abraço muito amigo da Maria Helena
[na lateral]
Minha mãe, a Cecília, tantas pessoas queridas que vão partindo e eu já não sei bem onde estou. A morte, eu julgava que fosse uma coisa natural, é, mas nós morremos também aos poucos ainda vivos. Os mortos levam com eles uma parte da nossa alma. E deixam-nos o espírito. Será assim?
[Carta de Maria Helena a Alberto Lacerda, Fevereiro 1965]
Um vermelhão para fazer circular o sangue alegremente
* Cecília Meireles (1901-1964), poetisa brasileira, grande amiga do casal Szenes, desde os tempos do exílio no Brasil (1940-1947)
|||||| Veneza divínissima 24 de Julho 72
Querida Maria Helena,
Eu vou-lhe contar a história: eu tinha visto aquele vestido em Florença (feito no Norte de África, imagine); achei lindo, lembrei-me de si, imediatamente, lembrou-me o seu lado Ghirlandaio, ou Andrea del Santo, ou Carpaccio; vi-a conversando com o Leonardo sobre Proust, via em Veneza, num baile dado em sua honra pelo Dodge; antes do baile, no banquete, tinha, à sua direita, Giorgione (estou apaixonado pelo Giorgione)
(...)
E com toda esta parlenda ainda não agradeci a maravilhosa estadia, que me penetrou de calma, de poemas, e de um sentido de ternura que me comove cada vez mais profundamente.
Bem hajam
Beijo-lhe as mãos.
Abrace todos por mim.
Seu, do coração,
Alberto
*
Fico-me por aqui (mas acho que, um dia destes ainda volto a estes maravilhosos testemunhos de afecto entre amigos; estes livrinhos estão a revelar-se preciosos).
Queria fazer uma formatação diferente do habitual mas, certamente por nabice minha, isto deu-me um trabalhão, o texto todo desformatado e a fugir-me pelos lados e, junto aos verdes, a recusar-se a ficar escrito. Desisto. Já passa outra vez das duas da manhã, estou perdida de sono (o que é o costume) e não tenho sabedoria nem paciência para, a esta hora, tentar que isto fique com ar mais arrumado. Fica assim, meio à maluca, mas vocês, tolerantes como presumo que sejam (senão não estavam para me aturar), vão, certamente, desculpar e fazer de conta que isto não prejudica a qualidade dos textos.
Relembro os dois posts a seguir a estes: um para rir como há muito não nos ríamos e outro para nos emocionarmos com o quanto a nossa alma se pode elevar perante vozes superlativas.
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Desejo-vos, meus Caros leitores, um sábado em grande.
E, vá lá, vamos todos rir até mais não poder com a incompetência dos ignorantes, ok?