Música, por favor
(no botãozinho mais pequeno da esquerda em baixo, para não saltarem para o youtube)
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Paganini - Sonata nº 6 para violino
Assim que vê o céu antevê o
tempo que vai estar, a temperatura e, logo, lhe acodem ao pensamento várias
ideias, planos, disposições, estados de espírito.
Depois do banho e, enquanto
toma o pequeno-almoço, Eva pensa na sua indumentária para o dia, o tom
dominante que será claro se estiver numa de peace
and love, ou colorido se estiver virada para a acção, ou monocromático de
cores fortes se quiser impor a sua vontade, ou cinzentos, castanhos (o que é
raro) se estiver vagamente indeterminada, ou escuro se estiver para nem admitir
conversas. Também pode ser um branco e preto com fronteiras bem definidas se
quiser perturbar a mente de alguém.
A maquilhagem e os adereços
tais como brincos, colar, anel, pulseira (tudo escolhido na perspectiva de que o que é bom pouco basta) acompanharão a tendência do
vestuário, os sapatos e a carteira obviamente farão pendant. Mas também pode acontecer que esteja para a brincadeira e,
nesse caso, a carteira e os sapatos farão um inesperado contraste com o
vestuário e apenas se conjugarão com a cor do baton (ou, até, apenas com a cor
da lingerie que, isso sim, é indispensável).
Hoje Eva vestiu um vestido aparentemente austero, de riscas. Para o caso de ser necessário, levará na mão um casaco preto, fluido, uma malhinha muito fina. Contudo, vendo bem, perceber-se-á que há ali qualquer coisa de subversivo. Talvez o decote, talvez a suave textura do tecido que convida ao toque, talvez a cor do baton que combina ostensivamente com o tom dos sapatos, uns Christian Louboutin encarnados bordados a preto, obviamente de tacão bem alto.
Apanhou o cabelo com displicência, sabe que as indisciplinadas ondulações apenas valorizarão um pouco mais o aspecto de bad girl. Depois de sair voltou atrás: a écharpe, claro. Finíssima, quase transparente, comprida, encarnada com leves desenhos pretos.
Ao vê-la sair de casa, quem a conheça dirá que o dia vai ser complicado, Eva vai para arrasar - mas alguma folia não estará fora de questão.
Ao vê-la sair de casa, quem a conheça dirá que o dia vai ser complicado, Eva vai para arrasar - mas alguma folia não estará fora de questão.
Passada firme, rosto tranquilo
mas decidido, feminina, lábios flamejantes, grandes óculos escuros, eis, então,
que Eva sai de casa.
O carro arranca com suavidade.
Eva estará certamente a ouvir música, provavelmente música barroca. Se tivesse
aberto a janela, arrancado com vivacidade, provavelmente estaria a ouvir reggae
mas, hoje, pela forma como curvou deslizando, a sentir o prazer da curva, provavelmente será violino, talvez Paganini.
Depois conduz até uma zona
residencial, estaciona, toca à campainha, entra. Passado algum tempo sai e
volta a entrar no carro. Desloca-se agora até à zona de escritórios com mais
cachet da capital. O carro entra na garagem e só voltará a sair a meio da
tarde.
Contudo, ligeiramente antes da
grande movimentação da hora de almoço, alguém mais atento repararia que Eva sai
do edifício, rápida, quase furtiva, o casaquinho escuro e fluido cobrindo o vestido, a écharpe esvoaçando, um saco de pele (Hermès) em vez da elegante pequena carteira, outros sapatos, agora uns quase baixos. Soltou o cabelo que esvoaça, despenteado. Nem parece a mesma.
Se alguém a seguisse repararia
que vai apressada, olha o relógio e anda sem ver com quem se cruza.
Dirige-se, então, a uma rua murada quase escondida, um grande portão. Entra,
pois, no Jardim botânico.
Aí os movimentos passam a ser
outros, mais distendidos, a cabeça ergue-se, vê-se que Eva aspira longamente o
ar puro e vegetal.
Anda como quem muito bem
conhece cada recanto. Vira à direita, desce, entra na vegetação, procura o
pequeno lago, procura um certo banco.
Senta-se, reclina-se, atira a
cabeça para trás, inspira longamente. Solta devagar o ar. Depois tira um
pequeno livro do saco, lê. Lê e pára de ler, olha em frente, respira fundo, lê.
Um pouco depois, um
sobressalto mas quase como se fosse um sobressalto aguardado. Alguém parece ter
surgido do nada. Um homem - moreno, grisalho, interessante, de barba, descontraidamente
vestido, calças claras, blusão de cabedal, camisa desportiva azul clara - atira-se para o banco. Na mão traz um saco de papel.
Eva retira então do saco guardanapos
de papel e, ali mesmo, no banco de jardim, entre os dois, põe a mesa. Sandes,
caixas de salada, sumos, um iogurte para ela. Conversando, rindo, almoçam
tranquilamente. Vê-se que ambos apreciam verdadeiramente aquele picnic assim
improvisado; dir-se-ia, aliás, que é usual fazerem-no. No final, limpam a boca e há elegância nos seus gestos; a seguir, Eva arruma meticulosamente as embalagens vazias, os talheres de plástico, os
copos, os guardanapos, tudo no saco de papel.
Depois, ele parece convencê-la a fazer qualquer coisa, levanta-se, puxa por ela. E ela, sorrindo, vai. Ele procura
então um local abrigado dos olhares, plano, limpo. Apalpa o chão, 'está seco, ainda bem que não chove...' e sorri, com ironia e doçura. Abraça-a e, depois, puxa por
uma ponta da longa écharpe e abre-a como quem estende um lençol numa cama. Puxa
por Eva, que não oferece qualquer resistência, uma vez mais parece ser coisa
habitual. Depois despe o casaco e dobra-o para servir de almofada, descalça os
sapatos. E então, Eva, a intrépida, é apenas Eva, a dócil, e deita-se na relva,
num jardim público. Com um gesto de pudor ajeita o vestido, e pensa que em dias assim mais valia vir de calças, e ali fica a olhar a copa das árvores, o céu por cima. O
homem vira-se de barriga para baixo, beija-a ao de leve no rosto, depois pega
no livro e lê em voz alta, não muito alta, de facto quase sussurrada, enquanto Eva fecha os olhos, deleitada, entregue a um dos mais
supremos prazeres, ouvir o seu amor a dizer poesia:
Está de pé sobre as brancas dunas. As ondas conduziram-na
e os ventos empurraram-na. Está ali, na perfeição redonda
da oferenda. E como que adormece no esplendor sereno.
Diz luz porque diz agora e és tu e sou eu, num círculo
só. Está embriagada de ar como uma forte lâmpada.
É uma área de equilíbrio, de movimentos flexíveis,
um repouso incendiado, a vitória de uma pedra.
Abrem-se fundas águas e um novo fogo aparece.
Que lentas são as folhas largas e as areias!
Que denso é este corpo, esta lua de argila!
Nua como uma pedra ardente, mais do que uma promessa
fulgurante, a amorosa presença de uma mulher feliz.
Nela dormem os pássaros, dormem os nomes puros.
Agora crepita a noite, as línguas que circulam.
Crescem, crescem os músculos da mais íntima distância.
Se Paganini já chegou ao fim, então, por favor,
George Gershwin - The man I love por Ella Fitzgerald
Alguns minutos depois,
levantam-se, sacodem as roupas - Eva sacode com cuidado a sua écharpe, coloca-a em volta do pescoço branco e ajeita-a com gestos femininos, veste o casaquinho, ajeita-o, despedem-se. Ela desce, faz o caminho de retorno, ele sobe. Uns segundos depois, Eva olha para trás. Miguel também. Como adolescentes dizem-se-se adeus, sorriem.
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O poema é 'A mulher feliz' de António Ramos Rosa.
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[E por poema: se estiverem numa de poesia e palavras em volta de uma fotografia, sugiro que cliquem aqui para irem até ao Ginjal e Lisboa. Hoje tenho Ruy Belo que acompanha com Mendelssohn]
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E tenham, meus Caros, uma gloriosa terça feira!