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domingo, junho 13, 2021

Uma lágrima e um sorriso


 


Nunca tinha ouvido falar em Khalil Gibran até que uma pessoa que tinha conhecido há pouco tempo e desde logo me surpreendera, no meio de uma reunião, já não me lembro a que propósito, me falou dele. Não percebi. Pedi que escrevesse. Escreveu num papel que rasgou para me dar.

No dia seguinte, eu tinha o Profeta em cima da minha secretária. Durante uns dias conduzi ao som das suas palavras. 

Por norma, sou avessa a coisas assim: palavras sobre isto ou aquilo, filosofias. Parecem-me, geralmente, teorias artificiais, lalelas sem substância, tudo previsível. Curiosamente, neste caso, não apenas andei a ouvi-las de gosto como me dava vontade de voltar a ouvir.

Hoje, o algoritmo tinha um vídeo para me propor e eu não me fiz rogada. Entre quase adormecimentos e persistências lá consegui ouvir.
Esta semana, fruto de alguns medicamentos, ando com muito sono. Por isso, é com algum esforço que tento manter o hábito de aqui escrever à noite Espero que em breve possa deixar de tomá-los para ver se volto a sentir-me mais igual ao meu estado anterior. Escrevo porque gosto, porque preciso ou, simplesmente, porque sim. Mas não estranhem se vos parecer que a conversa anda um pouco diferente. Eu, pelo menos, sinto que está pouco fluida.
Mas, falava nas palavras de Khalil Gibran e na misteriosa pessoa que ma deu a conhecer, a mesma pessoa que um dia, ao citar um verso, me deixou intrigada a ponto de eu lhe perguntar: Mas sabe poemas de cor? E ele: Alguns. E eu: Jorge Luis Borges? E ele: Alguns. E eu, esticando a corda: No original?. E ele: Alguns. E eu, querendo desmascarar: Diga um.

E, para meu espanto, ele disse. Parecia uma cena de um outro mundo, saído das minhas ficções. Mas aconteceu. 

Hoje, ao ouvir A tear and a smile, lembrei-me desse dia. Dias longínquos, se calhar imaginados, não existidos.


Tirando isso: pouco fiz. Fomos buscar a minha mãe e ela trouxe o almoço para todos, já feito.

Preguicei. Nem ler eu li. Nem fotografar eu fotografei.

E experimentei aquilo que andava com vontade de experimentar: peguei numa das quatro mesinhas que se arrumam umas debaixo das outras, lixei-a, lavei-a com a acetona e, lá vai disto, spray para cima.

Lixar foi de caras, lavar com acetona ainda mais. Mas o spray... Começou que, no sítio onde aterrou a primeira pistolada, ficou a notar-se os pontinhos salientes. Passei com o dedo. Problema. Já estava a secar, enrugou. Passei com o papel com acetona e o papel desfez-se e juntou-se à tinta. A minha filha disse que era como o verniz das unhas que, se a gente lhe mexe depois de aplicado, é para a desgraça, mais vale tirar tido e começar de novo. E tinha razão. Foi à pressa buscar um monte de papel que ensopei em acetona mas não saiu bem, esfarelava-se. Fui com a esponja-lixa mas a esponja absorveu a tinta e ficou estragada. Às tantas, desisti e apliquei mais spray. 

Mas fiz mal sob todos os pontos de vista pois estava vento e acho que algumas poeiras ambientes também se juntaram à tinta. 

Ficou a secar ao relento. Amanhã verei como ficou. Achei por bem não cobrir totalmente. A minha filha também achou piada a ver o escuro a adivinhar-se por baixo. Estou curiosa. Se, por milagre, tiver ficado bem, este domingo pintarei a segunda mesinha que aqui está na salinha da televisão. As outras duas estão lá em cima, cada uma com uma pilha de livros em cima. Mas acho que lá em cima talvez faça sentido que estejam na sua cor original.

No outro dia, a minha filha disse que achava que esta salinha estava um bocado com too much, talvez com um móvel a mais. Pensei que ela estava a dizer isso por influência de ver muitas almofadas (mais do que o habitual) em cima do meu sofá. Mas fiquei a pensar nisso. E, então, fez-se-me luz. Lá no campo, in heaven, estou com falta de uma pequena estante. Tinha até já escolhido uma no ikea para encomendar. Pois bem, a pequena estante que aqui tinha a televisão em cima é a estante perfeita para lá. Portanto, hoje de tarde, rodopiámos os móveis aqui na sala. A dita estantezinha zarpou. Irá para o campo. Para ter a televisão em cima usámos o pequeno móvel que o meu pai fez e que é de melhor altura e tamanho. Receava que fosse frágil mas acho que se aguenta. De qualquer forma poderei mandar fazer-lhe um tampo de mármore.

A pequena cómoda de pau santo e barriguinha, essa sim com um tampo de mármore da Arrábida, que estava ao lado do sofá do meu marido e que quase parecia ali escusada, agora está aqui ao meu lado.  

Portanto, de repente, a sala ficou mais desafogada. 

E ganhámos uma estante que aqui estava meio desempregada para ir para lá, onde faz falta.

O meu marido, levado pela minha onda de pinturas, até aventou pintarmos também o pequeno móvel que o meu pai fez. Mas acho que não devemos aventurar-nos. Tem frisos, tem portas de vidro, dificilmente iria ficar bem. Estou a olhar para ele. Imagino que poderia ser pintado por dentro de uma cor, um rosa-pastel, talvez. E, por fora, este beige-cinza-claro que usei para a mesinha, talvez com os frisos a verde-seco-claro. Mas isso seria obra demorada, não a spray. Coisa para futuros carnavais.

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As pinturas são da autoria de Guillermo Nunez 
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A Tear and a Smile - Khalil Gibran 
(lido por Shane Morris)



Desejo-vos um feliz dia de domingo

terça-feira, julho 07, 2020

Uma certa biblioteca secreta





Nesta fase da minha vida em que tudo muda, é como se estivesse a começar de novo. Ou seja, estou como peixe na água. Gosto de recomeços. Quando estou nesta, pouco ou nada me prende ao que era. Pelo contrário, quanto mais depressa despir toda a pele que ainda me prende à minha vida anterior melhor.

Hoje ao fim do dia, tive que ir a um sítio para escolher uma coisa. Mas, mal lá chegada, quando me preparava para ir tratar do que lá me tinha levado, uma pessoa chamou-me para me mostrar uma coisa. Fui. Pensava que era coisa rápida. Afinal foi demorado. Ia mostrar-me umas coisas simples. Afinal, de uma coisa, veio outra e, de outra, veio outra. Sempre mais coisas para me serem mostradas. E, às tantas, chegámos a uma sala e ali havia muita coisa para ver. E, estava eu a ver uma estante, diz-me: não está ver o que é esta estante? E eu: não. Então, a estante rodou e descobriu-se uma porta. Fui atrás. Máquinas. Não percebi que máquinas eram aquelas. De outro lado, caixas, arcas, coisas indistintas. Então, quando pensava que não havia nada mais a ver, dizem-me: e aqui atrás há isto. Espreitei.

Não queria acreditar: uma sala cheia de estantes e livros, livros, revistas. Explicou-me: uma biblioteca privada. Mas privada em todos os sentidos da palavra. Secreta, oculta, quase como se não existisse. Olhei em volta, perplexa. Estantes a toda a volta e, se não estou em erro, também ao meio, Se eu pudesse ter uma biblioteca assim, a library of my own, secreta, vasta, sigilosa, um espaço quase infinito... Fiquei sem dizer nada. Nunca poderia ter imaginado tal.
Quando saí daquele labirinto, já as pessoas com quem tinha ido encontrar-me se tinham ido embora, certamente cansadas de esperar por mim. O tempo tinha passado sem que eu tivesse dado por ele e sem que eu tivesse conseguido interromper quem tinha estado a conduzir-me naquela inesperada visita guiada.


O tempo não anda a ser-me suficiente para me entregar à absoluta descoberta de uma vida nova que se desdobra a toda a hora à minha frente até porque tenho que conciliá-la com o lado prático da minha actividade quotidiana mas, apesar disso, o que posso dizer é que, para mim, o mais estimulante são estes momentos em que passam por mim estas vibrações prenhas de expectativa e descoberta.

Há algum tempo, naquele longínquo tempo pré-covid, estava eu a almoçar, acompanhada, quando ouvi uma voz conhecida a exclamar: 'Olha quem ela é,,,!'. E já lá vinha ela de braços abertos e eu levantei-me e abraçámo-nos e demos o beijinho que, em tempos, as pessoas trocavam quando se encontravam. E logo ali, de pé, pusemos a conversa em dia. Quis que ela se sentasse e almoçasse connosco mas não, estava atrasada, ia ter com outra pessoa, já estava nas horas. Perguntei-lhe como estava a dar-se nessa sua nova vida. Sorrindo, transbordante de entusiasmo, disse: 'Bem! Óptima! Se eu soubesse que ia ser assim, há que tempos que tinha mudado'. Adorei ouvir, era bem ela, sempre pronta para ser a eterna adolescente que conheço há anos. Provavelmente sou também um pouco assim. Não fazer as coisas pela metade, não negar a experiência que se faz convidada, ousar, ir em frente.

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Uma vez mais, fotografias que nada têm a ver com o texto (ou será que têm?) da autoria de Eylül Aslan e que, cá para mim, se forem como eu, curvam-se perante Ennio Morricone que, pela milionésima vez, aqui nos traz o Oboé de Gabriel. 
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Talvez um dia destes regresse ao mundo dito real e fale da notícia do dia: o que o super-judge Alex -- o implacável justiceiro que parece odiar visceralmente quem tem dinheiro ou poder -- fez agora ao Mexia (o da EDP) e ao Manso Neto. Todo um filme. Uma opera bufa. Uma soap. Mas terá que ser num dia de muito estômago. 

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E boa sorte e muita saúde e alegria para si que aí está desse lado.

sexta-feira, junho 12, 2020

Ajustar contas com estátuas ou com filmes antigos -- ou o problema da carneirada




Não apenas continuo sem ver noticiários como a minha cabeça anda por outras paragens. Tempo de decisões, tempo de mudanças. Aquilo que vinha antevendo, talvez desejando, começa a aproximar-se. Mas, como geralmente acontece, nem tudo acontece como se espera e os imprevistos, volta e meia, convergem e tudo se junta e atropela deixando pouco tempo e pouca disponibilidade mental para processar tudo, para avaliar se há margem para algum recuo (ou se tal é desejável) ou se o melhor é não pensar e mergulhar de cabeça. Por norma, sou dada a atirar-me sem pensar duas vezes mas, neste caso, estou em crer que tenho que avaliar bem as decisões, tenho que acautelar algumas situações. Mas tudo a mudar ao mesmo tempo e tudo na sequência de meses de confinamento é uma verdadeira overdose.


Portanto, os dias correm rapidamente e, dentro deles, há vários turbilhões, alguns completamente independentes uns dos outros mas que, por coincidirem no tempo, se influenciam reciprocamente e me deixam exausta. Talvez por tudo isso e talvez por outras coisas ainda, anda a acontecer-me uma coisa nova em mim e da qual já aqui falei: dormir mal. Adormeço mal, acordo a meio da noite e não volto a adormecer rapidamente, acordo cedo, com sono e cansada, e passo o dia a pensar que seria bom se conseguisse dormir um pouco.


Ainda por cima, o dia esteve cinzento, ventoso, frio. Voltei a vestir um casaco. Os meninos também pouco saíram, estava mesmo mau tempo. A minha filha fez umas pulseiras muito bonitas e dá boas ideias. Do lado do meu filho chega-me também apoio, incentivando-me no sentido que eu andava a querer mas que agora, à beira de se concretizar, dada a proporção -- que se agigantou -- me traz apreensiva.

E, quando aqui chego, espreito as notícias e, pelo meio do mais do mesmo, vejo a parvoíce a ganhar terreno, a malta feita carneirada, rebanho de cabeçudos e palermas que berram porque o primeiro da fila berrou, Como sempre, há, depois, os do costume a vestir a asneirada de nobres causas e a insultarem os que não se revêem na carneirada. 
Por exemplo, por eu estar a dizer isto, já sei que o mais certo é que me apareçam os comentários do costume com afirmações estúpidas, acusações ou sugestões alarves. Já no outro dia o disse e volto a dizer: só publico o que revele ter sido escrito por pessoa de bem. Comentários escritos por gente malcriada, embirrante ou estúpida vão rapidamente para o lixo. 

Isto a propósito de agora ir tudo de arrastão, estátuas deitadas a baixo ou vandalizadas e, soube há pouco, até o E tudo o vento levou saíu da lista do HBO. Coisa mais parva.

Gente ou coisas que foram importantes no seu tempo, um tempo em que a consciência das coisas era outra, em grande parte gente que hoje já ninguém sabe bem quem foi, vê-se agora apeada do seu pedestal, atirada às águas, pintalgada, ofendida. Dizem que foram racistas, colonialistas, esclavagistas. Não sei, em parte dos casos não faço ideia nem tenho curiosidade em ir perceber. O que acho é apenas uma coisa: absurdo. Se vamos por aí, apagamos a história, apagamos a memória, transformamos o passado dos países em buracos negros. Gente que se monta a cavalo em ondas mediáticas, que vai para as ruas fazer justiça pelas próprias mãos, gente que concentra a sua energia não a construir um futuro inteligente mas a encarneirar e a vandalizar símbolos do passado é gente que é um atraso de vida. Não gosto de censores póstumos, ajustadores de contas póstumas, vingadores póstumos -- gente que desvia a atenção dos problemas presentes e que se esquece de ajudar a construir o futuro, concentrando esforços a desenterrar a memória de seres de que a história não guardou grande registo ou, pior, a deformar ideias ou a olhar para elas à luz dos tempos presentes. Não gosto nem tenho paciência.


E hoje nada mais tenho a acrescentar. Só se for que é curioso que Espanha tenha desistido de tentar encontrar o crocodilo do Nilo nas águas do Douro e que, às tantas, até já se admita que não é crocodilo, é lontra. Na volta ainda é apenas alguém que se deixou engordar durante o confinamento e que aproveitou para ir banhar-se no rio.

Também posso acrescentar que não consigo imaginar-me a, diariamente, voltar a perder horas no trânsito ou a ficar horas fechada em espaços sem janelas. Pode acontecer que, estupidamente, isso tenha que acontecer. Mas será com angústia e raiva que o viverei por constatar que se estará a desbaratar um capital de aprendizagem que deveria ter acontecido. O pior de tudo é a gente que passa pelas coisas incapaz de aprender as lições que a vida se encarrega de lhes enfiar pelos olhos adentro.

Mas, enfim, já chega. Vou descansar, bem preciso.

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As fotografias acima foram algumas das finalistas do concurso de fotografia The Independent Photographer’s Portrait

Natalie Merchant, de quem já estava com saudades, interpreta Ophelia

E não me perguntem porquê pois não saberia encontrar grandes explicações para a falta de relação que tudo isto tem entre si, nomeadamente, com a cereja em cima do bolo, o Defeat de Kahlil Gibran dito por Shane Morris


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Uma boa sexta-feira!

domingo, fevereiro 09, 2020

Livros novos. Amores antigos.





Tenho livros novos. De excepção em excepção, fui abrindo caminho para o irremediável caminho da perdição. Depois da grande arrumação de não há muito e da firme determinação em não voltar a comprar livros enquanto não abrisse espaço na minha vida para leituras demoradas, era suposto que a casa se mantivesse arrumada, sem livros a nascer de debaixo das pedras. Mas têm nascido. Duas das cadeiras que rodeiam a mesa redonda que está ali junto à janela já têm pilhas que ultrapassam a altura da mesa. Sobre o banco grande que está ao lado do sofá individual ali ao fundo desta sala já há umas quantas pilhas que se amparam mutuamente. Sobre o pequeno móvel com livros dentro que está encostado à estante alta da poesia, ficou, aquando da arrumação, uma pequena pilha. Eram os desirmanados, que não cabiam em nenhum género e que pensei que queria ter à mão. Pois, sobre eles, outros e outros se foram juntando. E de tal forma está que, a todo o momento, temo que a torre se desmorone.


Aqui ao meu lado no sofá está o Explicações de Português explicadas outra vez do Miguel Esteves Cardoso que comprei no outro dia porque não resisti a pagar apenas metade do seu preço e mais o O sentido do fim do Julian Barnes que comprei porque gostei da capa e porque gosto da forma como Barnes escreve. E tenho os Contos espirituais da Índia de Ramiro Calle que comprei porque gostei da capa e porque me lembrei de Kahlil Gibran que, por acaso, não era indiano. E tenho o que hoje, nos minutos que tive livres entre o almoço e o termos recebido uma mensagem a dizer que estavam a chegar em quinze minutos pelo que fossemos descendo, me sentei a ler: 'O lado negro da mente' de Kerry Daynes. E este comprei porque perceber a mente sempre foi fronteira que tive vontade de desbravar. Não fui para psiquiatria porque não consegui superar o medo de ver mortos durante o curso de medicina nem fui para psicologia porque recei que o curso, na altura, não fosse muito credível. Mas o interesse manteve-se intacto e a curiosidade em ler casos e as suas possíveis explicações é total. Mas hoje já não penso como pensava na altura em que não tinha a percepção da quantidade de casos em que a mente tem particularidades que tornam a pessoa única. Hoje tenho para mim que em todas as escolas deveria haver aulas sobre 'perceber os outros'. Não os julgar, não os afastar. Perceber as variantes e as nuances que levam pessoas inteligentes a terem comportamentos dificilmente explicáveis à luz da dita normalidade. Deveria ser obrigatória essa aprendizagem.


Mas, dizia eu, pensando que vou apenas ver o que há de novo, avanço pelas livrarias já receando o que sei que acabará por acontecer. Vagueio por entre estantes, espreito, tomo o peso aos livros, leio excertos. Como se eles me procurassem, vejo-me a espreitar os tradutores para descobrir pretextos  para não os trazer ou a mancha da página tentando que seja densa, deselegante, já aceitando que pretextos fúteis me afastem dos caminhos da perdição.

Mas é escusado. Ler é prazer maior, coisa que me leva aos caminhos da redenção, não há por que medesviar. Trago aqueles que se prendem a mim. Rendo-me. E lamento não ter tempo para o tempo que eles requerem. Mas depois arrependo-me de lamentar: um amor grande como é o amor pelos livros não tem que ser explicado, não tem que ser programado, não tem que ser contido, não tem que ser protelado. Amar livros é uma forma de viver. Não é uma escolha.

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E, por falar em Kahlil Gibran, outra inexplicação: porque gosto de ouvir estas palavras? Por elas em si? Pela voz de quem as lê? Não sei dizer. Sei que, de vez em quando, sem saber porquê, procuro a musicalidade e a paz que se desprende do que ouço. No fim de as ouvir, se me perguntarem o que ouvi não saberei responder. As palavras esfumam-se no preciso instante em que são ditas e encontro beleza nisso. 


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As fotografias são de Nick Knight
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E a si que aí está desse lado desejo um belo dia de domingo

segunda-feira, abril 30, 2018

A sorte. O acaso. A beleza. A felicidade.





Hoje foi um dia especial para mim por razões cá minhas. O programa não foi exorbitante nem a mim já me entusiasmam os programas exorbitantes: foi simplesmente tranquilo e simples que é aquilo que realmente aprecio e que transforma os meus dias em dias bons.


A Primavera, que anda chuvosa faz-se anunciar aqui, in heaven, através dos cachos de glicínias. São lindas e perfumadas, estas flores. Há alguns anos plantei uns dois ou três pequenos pés. Durante algum tempo não se deu por elas. Mal medravam. Eu regava-as, enchia-me de cuidados, tirando as ervas que despontavam à sua beira não fosse roubarem-lhe os sucos vitais da terra. Contudo, tal como aconteceu em todo o terreno, aconteceu aquele mistério que, até hoje, não consigo explicar. Parece que a terra se transformou e, apesar dos climas extremos que aqui acontecem, e apesar de eu não ser assídua na rega durante os verões de inclemência, a verdade é que os pés de glicínia tomaram o futuro nas suas mãos e desataram a crescer, vigorosos, enleando-se nos gradeamentos e nos portões, galgando alturas, trepando pela azinheira e pelo loendro, como intrépidas aventureiras, como se quisessem ganhar o céu.


Mas não são apenas as glicínias. As flores estão por todo o lado e eu encanto-me como um pássaro, deslizando entre elas. Não canto mas fotografo. Rendo homenagem à graciosidade que nasce da terra, milagres sempre merecedores de devoção. Gostava de ter alma de poeta, gostava de saber destilar a minha emoção e encontrar as exactas e puras palavras que saibam honrar a beleza em estado puro das flores. Mas não tenho esse dom.

Fico com vontade de voltar a pintar, de ter à minha frente uma tela gigante e desatar a lançar cores, a inventar formas e a lançar brilhos e pontos de luz em plena liberdade, sem ter que ser fiel à realidade nem a preocupação de agradar. Mas parei. Talvez um dia recomece. Sinto falta da suprema liberdade que sentia.


Fomos também dar um pequeno passeio. Parámos algumas vezes. Os campos estão lindos. À beira do rio, estes lírios ou orquídeas amarelas são de uma elegância e beleza raras e são-no tanto mais quanto são tão injustamente efémeras. Não há muito, ao passar por aqui, não existiam. E receio que, da próxima vez, já cá não estejam. Mas para o ano, assim o rio vá farto e vivaz como está este ano, cá estarão elas, sílfides etéreas procurando o seu reflexo da superície verde das águas. A natureza ressurge mesmo quando parece que se ocultou para nunca mais. 

Parámos também na curva da estrada, onde a encosta está cheia de papoilas e de malmequeres amarelos. Baixei-me para ver as flores como um pequeno animal as verá.


Crescem pela encosta, recortando-se, lá em cima contra o céu, ondulando ao vento, misturando o seu perfume com o dos pinheiros. Um cenário colorido, uma coreografia que o vento comanda.


Estava muito frio. Choveu muito de tarde mas, por momentos, o sol despontava, iluminando os campos floridos. Vendo as fotografias, parece que o frio não se percebe, parece que o ambiente é apenas solar, aberto aos prazeres calorosos da contemplação emocionada. Mas estava um vento frio e o meu marido, que tinha saído do carro pois tinha deixado de me ver, perdida que andava no meio das flores, começou a chamar-me, que estava muito frio para eu andar por ali.

Mas mais à frente, voltei a pedir que parasse. Uma grande árvore florida, no meio de um campo verde, à beira do rio, ali onde ele ia alto, quase a transbordar.


Pensei que seria capaz de ficar horas, em paz, em frente desta árvore. A música da água que corre, a música do canto dos pássaros, a música do vento nas ramagens das árvores, a tranquilidade do verde pontuado de branco, tudo aquilo me parece a imagem perfeita da consubstanciação dos elementos da natureza, a harmonia abstracta feita matéria.

É preciso tão pouco para eu me sentir feliz. A beleza enche-me de felicidade.



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Penso, por vezes, que o nosso destino resulta da forma como reagimos aos sucessivos acasos que se nos vão deparando, das escolhas que fazemos perante esses acasos -- e que a felicidade reside na sorte que se tem com a escolha dos caminhos e na vontade de ir em frente não pensando, com mágoa ou arrependimento, nos caminhos que vamos deixando para trás.

Mas, enfim, cada um sabe de si e eu não sou dada a filosofar, muito menos sobre temas tão íntimos.


Be happy
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quarta-feira, novembro 22, 2017

Contemplar. Escutar. Viver.




De vez em quando, estar no trânsito é uma bênção. Conduzir de manhã, o ar fresco a entrar pela janela e, na rádio, a música, a boa música. Por vezes interrogo-me sobre o que é isso da boa música. Música boa acima de qualquer subjectividade. Se, por exemplo, ouço Satie, o frio a tornar ainda mais limpo o céu tão azul, as árvores de um tom dourado, eu penso que há uma felicidade também acima de qualquer escolha. A felicidade absoluta que nasce de momentos assim, independentes das circunstâncias.


Desta vez a flauta, música oriental. E César Viana falando tranquilamente. E falava de música, de flautas com nomes misteriosos e de actividades surpreendentes como 'olhar as cerejeiras em flor', como 'contemplar o Monte Fuji'. E eu ouvi-o com encantamento.

Em tempos tive um colega e amigo que tinha uma mulher pianista e muitos filhos, uns músicos, outros pintores. Tinha uma imensa biblioteca, quase sem sítio para se sentarem, tantos os livros, tanta a tralha dos filhos. Espalhava lápis pela casa para que, quem deles precisasse, tivesse sempre algum à mão. Apesar da confusão que devia ser a casa dele, era, contudo, uma pessoa tranquila, quase silenciosa, e que tinha como passatempo olhar pássaros. Nessa altura, eu ainda sabia pouco da vida. Achava que viver era sinónimo de estar sempre a fazer qualquer coisa, e coisa com préstimo, palpável. Não percebia, pois, que alguém passasse horas a olhar para pássaros. Nem os fotografava, nem os desenhava. Nada. Apenas os olhava.

Hoje sinto saudades das nossas conversas e do prazer sereníssimo que transparecia das suas palavras. Fazia passeios em função dos pássaros que ia ver. Descrevia-os, descrevia os lugares diferentemente belos consoante a época do ano, falava das migrações, dos hábitos de nidificação ou acasalamento, falava de como sabia onde descobrir os pássaros. Tentava educar-me. 


E eu, assim, no carro, com as minhas recordações, entregue ao que ouço na rádio, longe, longe dos assuntos dos meus dias, longe, longe de problemas -- crises, desvios nos resultados, rácios da dívida, ebitdas, desmotivações, reestruturações -- longe, longe. 

E, então, enquanto ouço o som sereno da flauta, vou pensando como gostaria tanto de estar in heaven a olhar as árvores, a olhar o pouco musgo que vai rompendo, a geometria abstracta dos ramos quase nus das figueiras, o desenho harmonioso das sombras nas paredes brancas, a ondulação dos montes ao longe. E a ouvir o canto feliz dos pássaros.

Quando o trânsito flui, vejo com apreensão a aproximação do meu destino. Por vezes, chego à entrada da garagem e deixo-me ficar mais um pouco a ouvir a música ou as palavras dos entrevistados.  Falo da Antena 2, claro.


Foi o caso desta terça-feira de manhã. Momentos tão bons.

Depois desci às catacumbas onde a rádio não entra, estacionei e, de elevador, subi à torre onde as janelas não são janelas e não foram feitas para abrir. Quando entrei no escritório, esqueci a música e as maravilhosas actividades de que César Viana falou. E entrei no meu mundo tão cheio de problemas para resolver, tão intranquilo, tão preso às circunstâncias.

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Entretanto, recebi um mail de um Leitor que me deixou agradecida e generosamente recompensada. Sem lhe ter pedido autorização, tomo a liberdade de aqui o partilhar com todos vós:

Obrigado pela prosa feita poema. Uma pequena dádiva em jeito de agradecimento:


Sei que estás aqui, sempre estiveste.
A tua aura flanando sobre mim é que me veste.

Em todos os lugares encontro a marca dos teus passos.
No sonho me aconchego no enleio dos teus braços.

É inútil esconderes-te no seio dos segredos,
pois tenho a pele lavrada pelo tateio dos teus dedos.

Caminho nas nuvens seguindo o teu roteiro,
guiado pelo perfume do teu cheiro.

Risco no azul navegações de asas
em torno da febre que me consome
e é de ti toda esta fome
que me queima como brasas.



Kahlil Gibran sobre a Beleza


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Fotografias feitas in heaven

Lá em cima, César Viana tocando shakuhachi interpreta Yamato Choshi.

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domingo, agosto 14, 2016

Um dia de calor in heaven com os segredos de Agustina e com figos, amoras e uma lua branca entre as árvores.




Um dia de calor de perdição. Digo que estou in heaven porque posso fazer tudo o que me apetece, porque a natureza que eu ajudei a acontecer superou todas as expectativas e agora o que eram árvores de tamanho de um palmo são árvores imensas que quase chegam até à lua branca que chega em pleno dia, porque pássaros, coelhos, cigarras e toda a bicharada fez daqui a sua casa, porque posso andar com ou sem roupa, com ou sem sapatos, sem horários, sem rotinas. Mas as temperaturas aqui não são amenas como no paraíso verdadeiro. Aqui são extremas, das mais altas do país. Em dias assim, a luz é intensa, o calor desmedido, e, até que chegue a aragem do fim do dia, a natureza parece renegar-nos.


De facto, durante o dia não se consegue estar na rua, as altas temperaturas amolecem o corpo, quase impedem a respiração.

Deitei-me, pois, na sala, os vidros fechados, as portadas semi-cerradas. Dormi, um sono imediato, denso. Acordei a custo, o calor toldando a consciência e derretendo a energia.

Depois de me ir refrescar, forcei-me a manter-me acordada. Pus-me a ler, deitada. Agustina, outra vez. Fama e Segredo na História de Portugal. Cada vez mais me fascina a escrita sumptuosa e desbragada desta mulher. Há uma liberdade quase orgânica na sua escrita, e não sei se orgânica é a palavra certa. Talvez devesse ter dito majestosa. Liberdade majestosa. Ou telúrica. Não sei. A escrita de Agustina é, isso sim, extraordinária. E tenho achado isso sobretudo em textos soltos, em ensaios, pequenas crónicas, mais do que achava em romances.


Por vezes, parece que o texto perde o sentido e se eleva para o mundo onde as palavras reinam por si mesmas, ainda que descontextualizadas. Outras vezes, as palavras enleiam-se a seduzem-se e esquecem o texto em que estavam e criam, só para elas, um contexto próprio. Leio-a com um prazer extremo. De vez em quando, fecho os olhos para que as palavras levem o seu tempo dentro de mim, para que escolham o caminho que querem percorrer.

Pensei em trazer aqui alguns excertos mas desisti. Acho que a escrita de Agustina vive da insolência, do desconcerto. Pequenos excertos não conseguem mostrar o golpe de asa, o salto, as pernas das palavras em volta do nosso corpo, a gargalhada louca, o sorriso escarninho, a luz destemperada.

Quando penso no que a filha disse, de que ela não quis médicos, de que parece que simplesmente se cansou das palavras, percebo bem.

Há um tal excesso de prazer naquelas suas páginas, uma tal torrente de infindáveis encadeamentos de palavras, que me parece natural que um dia Agustina tenha sentido que chegada estava a hora de se conceder um merecido descanso.

Quando o dia entardeceu, saí para o campo. Calor ainda, mas a suavidade da aragem já era uma carícia agradável de sentir.


Fui-me aos figos. Muitos ainda estão pequenos e verdes e outros passaram directamente desse estado para o de secos. Mas outros, não muitos, já ganharam tamanho, estão carnudos, doces. Ainda deixam os lábios um pouco ásperos, mas não faz mal. Deleitei-me com eles. As amoras já estão a ganhar cor e as que estavam negras e polpudas não me escaparam. Ando pelo meio das ervas, debaixo das figueiras - e como cheiram bem as figueiras - colho os frutos que como imediatamente, e sinto-me tão bem, tão bem, um tal prazer.


Depois, à hora de jantar, arranjámo-nos. Para o fim do dia, os campos em volta tornam-se suaves, quase azuis, e as minhas mãos sonham em poder acariciá-los como corpos amados.


Fotografo-os, uma e outra vez. O meu marido chama-me. Saímos.

Há uma tasca ao pé da bomba de gasolina da vila. Tem uma esplanada junto à estrada, uns toldos que deixam passar a aragem. Tem uma televisão lá dentro e outra cá fora. Futebol. Lá dentro estão os homens mais velhos. Cá fora os jovens. Só homens. Ficámos cá fora. Mandámos vir pratinhos de petiscos, bons como não os como em nenhum outro lugar. Bebidas frescas, uma cesta de pão. Iguarias perfeitas no meio do riso dos rapazes, do relato do futebol, de um ou outro carro que passa na estrada nacional. Sem pressa, degustando o prazer das coisas simples.

Era noite quando chegámos a casa, uma aragem já temperada com a frescura da noite e uma lua branca na qual leio palavras límpidas como o céu.

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Kahlil Gibran sobre o Prazer

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Lá em cima Sarah McKenzie interpreta "Moon River" 

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E, caso queiram abandonar os prazeres bucólicos e mergulhar com humor no espírito dos Jogos Olímpicos, desçam, por favor, até às polémicas do post seguinte.

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segunda-feira, abril 11, 2016

Ler os melhores ou simplesmente ser


Desligo-me agora das sombras que me cobrem e nas quais me acolho, eu escondida de mim e de quem acolhe as minhas palavras. 

Antes que comece a semana com tudo o que me vai exigir e que tanto e cada vez mais é, refugio-me no sossego deste meu recanto, um ponto de luz num canto de uma sala escura, uma música que me envolve, longos cabelos, voz que vem de entre grutas silenciosas, e o saber-vos aí desse lado, as vossas mãos tão perigosamente perto das minhas, as nossas respirações tão uníssonas. Descanso. Guardo dentro de mim a serenidade de que vou precisar nos dias que ainda não nasceram.

Tenho tantos livros, tenho tanta necessidade de os ter junto a mim. Atraem-me cada vez as franjas, o que se situa em incertas fronteiras, o que não se define. Livros sobre nuvens, sobre sombras, sobre como se constrói a luz, sobre árvores, sobre livros, sobre insustentáveis paradoxos. Ou recordações. Ou frases que existem mesmo quando arrancadas aos seu contexto. 

Vou pelas livrarias procurando o que me atraia. Geralmente não conheço os nomes dos livros ou os autores. Vejo um livro pequeno, de capa macia e escura, uma garça branca levantando voo entre hastes douradas, folheio-o -- fala do efeito da sombra na pele, fala de tecidos macios com fios de seda e ouro e eu não sei de nada do que ali se fala mas fala-se com palavras simples -- e eu logo fico com vontade de me deixar estar sentada debaixo de uma janela que me traga a luz do céu e eu ali a ler sobre um mundo de que nunca se fala.



Penso em quem sei que me lê e que sei bem que são sabedores, sábios talvez, muito mais sabedores que eu, muito melhor informados que eu. Quantas vezes sorrirão com complacência, tanto o desconhecimento que em mim vêem. Sei disso mas por aqui persisto, as palavras deslizando-me dos dedos, flores do campo, sem tratamento ou cuidados, expostas aos ventos, aos sequeiros, às imparáveis chuvas. Insignificantes as minhas palavras. Qualquer um que passe distraído as pisará sem que ninguém mais dê pela sua falta. Mas persisto, sobretudo pelo prazer de ver como brotam, sozinhas.

Estive a ver uma lista dos melhores livros de sempre -- estudo cruzado, listas de listas, intersecções de gostos. Para quem diz que gosta tanto de ler e que tem uma necessidade física de se rodear de livros, talvez estes devessem ser a base, o alicerce, o torreão. Vejo a lista e sinto até uma certa pena de mim. Uma tola que não leu as obras primas nem tem vontade de as ler e que, cada vez mais, se sente atraída pelo que nenhuma lista quer, escritas marginais, choros até, impropérios, desaforos, carinhos mal dirigidos, apontamentos, fiapos de frases.

Mais pena ainda porque de alguns penso que li mas não tenho ideia precisa, não sei se li até ao fim, não sei se gostei, parece que nada ficou dentro de mim. Tenho vontade de fazer a minha própria lista. Mas não sou de listas, não gosto de pedestais, não quero deixar de fora, por esquecimento meu, alguns fundamentais.


Mas conto-vos quais os primeiros dos melhores cem:

1 — Dom Quixote, Miguel de Cervantes, 1605

Li mas acho que não todo, li em busca da maestria, a gula da grande literatura, correndo como aquele que, sequioso, procura a corrente de água, a fonte, a cascata. E sempre que as palavras se acalmavam, saltava eu por cima delas em busca de outras que me levassem em alegre corcel por montes e vales.

2 — Guerra e Paz, Liev Tolstói, 1869
Terei lido todo? terei saltado capítulos? Não me lembro.

3 — A Montanha Mágica, Thomas Mann, 1924
Li, deslumbrada. Li como se entrasse num monumento extraordinário. Li e ainda me lembro.

4 — Ulisses, James Joyce, 1922
Não li. Não vou ler. Não me atrai. 

5 — Cem Anos de Solidão, Gabriel García Márquez, 1967
Li. Li com sorrisos, com emoções, com garridice, com ternura, com agrado. Uma prosa alegre, quente. Mas gostei mais de O amor nos tempos de cólera. Prazer puro.

6 — A Divina Comédia, Dante Alighieri, 1321
Não li, não vou ler. Mas gosto de ouvir trechos. Gosto de ler pequenos excertos. Gosto de pensar que o que vou colhendo em pequenos ramos me dará o conhecimento da vasta floresta.

7 — Em Busca do Tempo Perdido, Marcel Proust, 1913
Li alguns volumes, não sei quais, não sei se os que li, li do princípio ao fim. Talvez. Tenho ideia de que gostei mas que não me empolgaram, como se fosse uma planura desapaixonada. Talvez esteja enganada.

8 — O Som e a Fúria, William Faulkner, 1929
Li. Lembro-me da emoção. A energia das palavras vibrava em mim. Estava agora para me levantar para reler algumas páginas, para confirmar, mas não me apeteceu. Acho que não vibraria da mesma forma, prefiro que fique assim.

9 — O Homem sem Qualidades, Robert Musil, 1930-1943
Acho que li e que deixava a meio, que retomava e parava. Não sei se li todo. Talvez tenha lido. Também não me apeteceu ir confirmar.

10 — O Processo, Franz Kafka, 1925
Li com inquietação. Ainda hoje coisas assim me assustam. O indefinido receio, as invisíveis ameaças, o mal difuso e burocrático que não se pode combater.

Transcrevo alguns excertos do artigo da Revista Bula onde pode ser vista a lista dos cem livros.
Para se chegar ao resultado fizemos uma compilação de 15 listas publicadas por jornais, revistas e sites especializados em listas, mercado editorial e livros. (...)
Participaram do levantamento as publicações: “The New York Times”, “Amazon”, “Le Monde”, “The New York Public Library”, “BBC”, “The Guardian”, “Modern Library”, “Time”, “Newsweek”, “Telegraph”, “Lists Of Bests”, “Wikipedia”, “Folha de S. Paulo”, “Revista Época”, “Revista Bravo”.
Obviamente que listas são sempre incompletas, idiossincráticas. (...)
O resultado não pretende ser abrangente ou definitivo, antes é apenas um reflexo da paixão de leitores e críticos que ajudaram a construir, com suas opiniões, um vasto guia literário que percorre mais de 2 mil anos de história. 

Nesta lista de cem livros procurei alguns dos que me ajudaram a fazer-me aquilo que hoje sou. Alguns encontrei, outros não. A maior parte não. Fico a pensar se me terão impressionado tanto, na altura, porque eu ainda não tinha vivido o suficiente ou se será que eu, desde cedo, me movi preferencialmente nas margens do que não é consensual.

Agora tenho aqui para ler, vai ser o próximo, um belo livro, pequeno, estreito, comprido, uma capa mesmo bonita com pintura de autoria de Luís Alves da Costa que também o prefacia. Chama-se Gilgamesh e é a versão de Pedro Tamen do texto inglês de N.K. Sandars. Já comecei a petiscar nele e já estou a antecipar o prazer da descoberta de um outro mundo. A estranheza atrai-me tanto.

Mas não conheço os gregos, lamento, e não li a bíblia -- da bíblia só o cântico dos cânticos, e só o que leio quando abro ao acaso (e me traz respostas, sem que eu saiba quais as perguntas) -- se calhar não li os grandes clássicos e, por isso, o que sei assenta sobre fracos pilares. Mas penso que talvez isso me fizesse falta se eu quisesse ser um monumento de sabedoria ou um poço de erudição. Mas eu não quero. Eu quero ser uma rudimentar palafita, uma cabana no bosque, um ninho no seio de uma árvore grande como aquela onde hoje me sentei, uma árvore imensa, grande como uma casa de uma família feliz, maternal, acolhedora. Quero ser apenas eu, inocente no acto de quase nada saber, feliz na minha ignorância inofensiva, sempre pronta para aprender e para me apaixonar. Poderia apaixonar-me tanto, com tanta entrega, se soubesse muito, se já tivesse lido tudo o que importa e me recordasse ainda de tudo, dos clássicos, das obras fundadoras?

Temo que não.

Por isso, vou continuando assim, rodeada de livros, livros que alguém um dia escreveu e que eu, carente de exotismos e singelezas, acarinho com desvelo, passando as mãos pelas palavras, como que querendo guardá-las no meu coração antes que a cabeça se aproprie delas, querendo delas o prazer mais puro, o prazer inicial, o prazer feito de liberdade.

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O prazer segundo Kahlil Gibran

in O Profeta

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 Lá em cima, Loreena McKennit interpreta Dante's Prayer. 
As fotografias são da série Beauty de Francis Giacobetti. 
Desconheço a autoria da última ilustração.
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E queiram, por favor, descer até ao Elogio da Sombra 

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quarta-feira, julho 15, 2015

Caminhar


Sobre a entrevista do Passos Coelho que não vi e sobre o Joaquim Aguiar que a comentou e que disse coisas bizarrésimas que quase tiraram o José Miguel Júdice do sério e sobre o Augusto Santos Silva que foi outra vez desfeiteado pela TVI falo a seguir. 

Aqui, agora, se me permitem, mudo de registo porque isto de andar com o láparo colado aos dedos há alguns dias já me está a causar brotoeja.

Tempo de rêverie, de palavras perdidas, de pedrinhas na palma da mão e sorrisos, de sons doces como suaves embalos, de afinidades, de descobertas. Tempo de boa onda em tempo de verão.




Vista de longe a vida pode parecer uma via única, sem obstáculos, sem imprevistos. Uma pessoa foi posta a caminho e as oportunidades vão aparecendo e a pessoa vai escolhendo, esta sim, esta não, e vão-se cruzando outras pessoas e umas nós vêmo-las, outras não, e das que vemos, com umas simpatizamos e tornamo-nos amigas e de outras não, e por umas sentimos uma empatia especial e por outras não e vamos continuando a caminhar que a vida é um percurso contínuo -- até que um dia o percurso há-de chegar ao fim.

Certo é que, por vezes nos enganamos, voltamos atrás, desviamo-nos, corrigimos a trajectória; mas, à distância, vistos de cima, pareceremos simplesmente uns pequenos seres a caminho de um qualquer sítio.

E, no entanto, vendo por dentro de nós, quantas hesitações, quantos segredos, quantos espantos, sobressaltos, surpresas, alegrias. Quantos acasos inexplicáveis, quantas mil vidas antigas convergindo em momentos únicos, quantos mistérios, sonhos escondidos, desejos inexplicáveis, quantas maravilhosas descobertas, quantas mil vidas suspensas à espera de serem vividas.

Não serão quatro caminhos mas muitos mais, e todos, um dia, parecem convergir e tudo parece desenhar-se de forma perfeita, estranhamente perfeita. E nós no centro dos misteriosos mundos que convergem.

[E há tantos exemplos de encontros inesperados e tão perfeitos. Esta Gota de Água é um exemplo disso]





E surgem então palavras que parecem ter asas, palavras que escavam taças que recolhem outras palavras e as palavras falam de dor e de alegria, mas talvez sejam apenas sonhos, talvez pequenos milagres. E, sem que o consigamos perceber, tudo parece fazer sentido. 

Um olhar, um sorriso, uma proximidade, tudo tão inexplicável, tudo tão imprevisto, tão efémero. São palavras. São gestos inocentes. São  histórias.

Mas eu esqueço as palavras, esqueço. Habituo-me a esquecer. O que esqueço não existe. Só me interessa o que ainda não descobri, as palavras que vou ouvir, o que vou receber de oferenda: rosas azuis que são uma toada inventada que me leva nos braços, o olhar insubmisso de um tigre que nunca será visto, o livro ou o pensador de que nunca ouvi falar, um abraço que um dia se pressentiu, a voz baixa de um poema dito em surdina, uma igreja alucinada ou outra douradamente alumiada, uma sombra de que ainda ninguém falou, uma litania longínqua, um sorriso que apenas um certo espelho conhece.

Labirintos, espelhos, palavras ditas depois de alguém as ter dito iguais, incompreensões que se tornam irrelevantes, para quê perceber tudo quando o mundo é o lugar de todos os mistérios?, a vontade de que a magia não se dissolva, de que as nuvens tão suaves não se dissolvam. Quero ouvir falar de mosteiros, de caminhos, de acordes, de cânticos, de cantos, de poemas, de acordes infinitos, de corações que estremecem. E eu rio. Rio. Eu feita de mil rios que se juntam dentro do meu peito, rio, rio. Não sei de nada, não quero saber de nada, quero apenas continuar a sentir a inocência que vive dentro de mim, quero apenas continuar a deslumbrar-me pelo que não compreendo.


Limites - por Jorge Luis Borges




Desvenda-se-me o pensamento como um manto que, devagar, se vai desdobrando. Mas parte do manto fica sempre nas pregas de dentro, invisível. Não chego a saber com o que se pareceria se visse a luz do dia. Mas talvez um dia, quando desdobrado de uma outra forma, eu veja essas partes e julgue que nunca antes as tinha visto. Não sei. Desconheço-me. Penso que sou de uma maneira e, embora saiba que há muito de mim que ainda nunca vi, julgo que as partes secretas não me serão completamente estranhas. Mas não sei. 

A parte de mim que desconheço é-me mostrada quando ouço nomes de que nunca ouvi falar, conjugações inesperadas de palavras ou pontos de luz: poemas, nomes de lugares, músicas, nomes de pinturas, misteriosas manchas de cor. Como se uma janela aberta sobre uma paisagem completamente nova se abrisse diante de mim e, ao fundo, um espelho com a minha imagem rodeada de mil coisas desconhecidas. Olha, abre os olhos, vê como é longínquo o horizonte e como, até lá, é vasto e diverso o mundo – é como se eu escutasse. E olho, vejo mil tons de muitas cores, mil acordes de muitas músicas, mil perfumes por inventar, mil carícias por sonhar, mil palavras infinitamente conjugadas. Extasiada vejo o muito que tenho para ver e é ao ver-me assim, inexperiente, inocente, que me descubro nas pregas do tempo que ainda não vivi.




Ventos silvando na noite, ariscos lobos, serranias e sons encantatórios, pássaros transparentes de infinitas asas, sonhos. E depois surgirá, branca e limpa, a luz.

Abro a janela à manhã que me traz um dia novo com um tempo que pertence ao futuro. O rio, o mar, o azul que me lava o olhar, as palavras, as palavras. 

E a vossa respiração aí lendo estas palavras estranhas que vos escrevo. Onde o sentido? Onde a razão? Compreendem o que vos digo? Sabem porque as escrevo? Tomá-las-ão nas vossas mãos? Ficarão algumas na vossa memória? 

Eu esqueço-me do que escrevo. Não sei porque escrevem as minhas mãos palavras tão desprendidas da minha vida, palavras que nem sei se são minhas. Talvez sejam apenas palavras que se desprendem de um espelho. Pétalas de uma rosa feita de mar azul. Não sei. Nem quero saber.



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E agora vou dormir. Já estou a dormir.

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[Estou já incapaz de incluir a 'ficha técnica' das imagens e vídeos aqui incluídos]. 

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Não é que me pareça adequado mas permitam que vos relembre que, no post abaixo, o registo é outro: a entrevista do PPC, o Tiro-ao-lado-Aguiar, a TVI que se anda a portar descabeladamente, etc.

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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma bela quarta-feira.

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