Andando a percorrer os recantos e as capelinnhas da cidade, fui dar com a imagem mais estranha que poderia imaginar. Pensei que nem estava a ver bem. Fotografei-a de vários ângulos tentando perceber que coisa era aquela.
Mas nada me fez perceber o significado do que estava a ver. Em frente da igreja, uma serpente envolvendo a cruz. Em vez da imagem de Cristo, uma enorme serpente de assustadora língua de fora. Depois de ter andado a ver imagens de Nossas Senhoras ou belos altares em talha dourada, aquilo pareceu-me coisa de mau gosto, algum símbolo carregado de perversidade.
Agora, depois de ter procurado na net que bizarria é esta, encontro no site da DGPC a explicação:
Diante da igreja da Senhora da Lapa, no extremo ocidental do Campo da Restauração, ergue-se o cruzeiro de Vila Viçosa, também conhecido por Cruzeiro do Carrascal. Sobre um singelo soco quadrangular ergue-se a base do cruzeiro, constituída por pedestal moldurado de grandes dimensões, suportando uma cruz latina em mármore, onde se enrola uma serpente alada. Trata-se de uma obra quinhentista, datável da primeira metade do século XVI, que reflecte importantes aspectos da espiritualidade coeva, com ênfase para a esperança da Salvação através da Paixão de Cristo. De facto, e apesar da estranheza inicial que pode causar a presença da serpente no lugar de Cristo, esta figuração ilustra de forma clássica a prefiguração da morte de Jesus Cristo na cruz do Calvário, através do episódio do Antigo Testamento no qual Moisés fundiu uma serpente de bronze e a ergueu sobre uma estaca. Segundo as correspondências testamentárias, e de acordo com os Evangelhos, Cristo seria levantado na cruz da mesma forma que o fora a serpente, imagem dos pecados da Humanidade por ele redimidos. (...)
Está certo. Uma metáfora. Contudo, metáfora por metáfora, prefiro as mais tradicionais, as que nos chegam ilustradas com símbolos da maternidade e protecção, como esta Nossa Senhora que vi num painel de azulejos na fachada de uma casa, a Nossa Senhora coroada, com um rico vestido com padrão de rosas e com o Menino a fazer pendant com ela.
Não sei qual a razão para a humilde Maria nos aparecer assim, tão distintamente paramentada, mas presumo que exista também uma razão. E, assim como assim, é uma imagem que sempre transmite harmonia, enquanto a serpente na cruz transmite insegurança e medo. Mas enfim, isto já são observações leigas e ignorantes de quem não leu os Evangelhos e que prefere as metáforas que têm o seu quê de poético.
Como o que aqui se mostra: Pablo Nerudo a ensinar ao Carteiro o que é uma metáfora.
Era uma vez um passarinho. Pousou em cima de uma pedra grande ali às portas de uma igreja pequenininha. E eu pus-me a olhar a ver se percebia que passarinho era ele. E depois, como não percebi, pus-me a olhar para a pedra, a ver se percebia se ele estava bem ali e achei que não, que haverá de lhe faltar algum conforto, parece que falta um assento àquela pedra.
Quando eu era pequenina, havia uma pedra grande ao pé da casa da minha avó, mas não tão grande quanto a do passarinho. Saía do chão, tinha uma leve elevação à frente e outra atrás e, para mim, era como se fosse uma mota igual à dos meus tios. Eu gostava de andar de mota mas os meus pais não queriam que os irmãos mais novos me levassem. Mas eles, por vezes, desobedeciam e, às escondidas deles e das minhas avós, levavam-me. Eu ia atrás, agarrada a eles, se o passeio fosse só na rua, ou à frente, eles dobrados sobre mim, se o passeio fosse maior. Na altura, não devia haver isso dos capacetes. Eu, pelo menos, não me lembro de eles me porem capacete. Agora que escrevo, tenho ideia que talvez eles tivessem mas devia ser grande demais para mim. Lembro-me bem, isso sim, dos meus cabelos compridos a voarem e do ar frio que tanto me agradava quando me varria o rosto, as pernas, os braços.
Então, porque eu gostava tanto de passear, eu ia chamar o meu grande amigo, inseparável amigo, um ano mais velho que eu e um deus de paciência, e fazíamos de conta que íamos passear de mota. Sentava-me atrás dele -- a pedra era plana entre as duas elevações, fazia um banquinho mesmo bom e à nossa medida -- abraçava-o pela cintura e imaginava que íamos por montes e vales, o vento a fazer voar o meu cabelo, a levar-me para longínquas paragens. Nessa altura eu era muito conversadora, passávamos tempos naquilo, eu fazia perguntas, ele respondia, eu contava alto o que a minha imaginação ditava e ele escutava.
Era tímido e reservado, ele. Eu era alegre, namoradeira, desde pequena assim. Fazia-lhe ciúmes, fazia de tudo para ele reagir, para ele se zangar, para ver se ele se manifestava, se ele pedia para eu não ser assim. Mas ele nunca se zangou, nunca se queixou. E eu não conseguia estar longe dele. O nosso convívio interrompeu-se por volta dos meus dez anos. Voltei a vê-lo uma ou duas vezes depois disso, ainda jovem adolescente. É que a minha avó mudou de casa e os pais dele também. A última vez que o vi foi no velório da minha tia. Eu estava à porta da igreja entre um grupo que conversava e vi chegar um homem moreno, já um bocado grisalho, e muito alto, encorpado. Ele veio ter comigo. Disse o meu nome, no diminutivo. Eu olhei para ele, perturbada. Era o pai dele. Pensei: 'Não pode ser, já morreu. Ou... não morreu ainda? Mas, se está vivo, teria que ser da idade do meu pai e não apenas um bocado mais velho do que era quando eu o conhecia'. Fiquei sem saber quem podia ser. Ele apresentou-se. Fiquei bloqueada. Não podia ser. O meu amigo não podia estar assim, um homem já daquela idade, tão igual ao pai. E como tinha crescido. Ele disse: 'Eu conheci-te logo, o teu sorriso é o mesmo'. Com ele vinha uma mulher, uma senhora da idade dele. Ele apresentou-a: 'A minha mulher'. Pensei: 'Nunca andará de mota com ele.'. Ela, simpática, disse: 'Finalmente conheço-a. Tanto que tenho ouvido falar de si'. Eu acho que não fui capaz de dizer nada. Provavelmente nem fui capaz de sorrir. Mas, como estava abalada pela morte da minha tia, talvez a minha perturbação tivesse passado por ser tristeza. E era.
Ele ainda ficou por ali, penso que a tentar conversar. Mas acho que não fui capaz. A ocasião não era propícia a que eu lhe perguntasse se se lembrava dos nossos passeios de mota, montados naquela pedra, eu abraçada a ele. Ou das tardes que passávamos a conversar na cabana que o avô lhe tinha construído ao fundo do quintal. E a minha avó a comentar com o avô dele, 'Mas que é que estas duas alminhas tanto têm para conversar...? Horas a fio...'
Naquela altura, ele era um menino muito inteligente, tinha recebido o prémio de melhor aluno do país. Sempre reservado, nunca o evidenciando, assim se manteve enquanto estudou, um aluno brilhante. Fui sabendo disso pela minha avó, assim como fui sabendo que, enquanto eu ia alegremente namorando, ele se mantinha sozinho.
Podia ter tido uma 'carreira' de sucesso, ele. Trabalhou na banca, teve funções de responsabilidade. Mas, há algum tempo, uma depressão séria levou-o a largar tudo antes de tempo. Presumo que tenha recebido uma indemnização, talvez boa. Comprou uma quinta e, segundo me conta a minha mãe, é lá que passa grande parte dos dias, sozinho. De vez em quando vai à casa na cidade, de vez em quando a mulher vai lá ter com ele. A minha mãe diz: 'No fundo, é do que ele sempre gostou'. Deve por lá andar a trabalhar a terra, se calhar a cuidar de animais, ou, então, a ler, a ouvir os passarinhos. Não sei de nada disso de anjos mas penso que tomara que um anjo o guarde. Quanto mais não seja, o anjo das boas memórias.
Mas, enfim, nem sei a que propósito veio isto.
Ah, sim, já sei. Mas aquela nossa pedra era mais pequena, com umas curvas suaves, e toda a pedra era mais macia que esta em que o passarinho de pedra pousou.
Nem sei porque é que me deu para me pôr com estas recordações. Na verdade, nem sei se ainda existe aquela pedra ou, sequer, aquela casa da minha avó. Provavelmente não, já nada. Mas também não quero ir lá ver. Prefiro apenas recordar -- enquanto aguardo que os passarinhos comecem a cantar aqui na varanda.
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E agora permitam que vos convide a continuar o passeio por esta bonita cidade. Desçam, por favor, que primeiro, iremos de visita ao Henrique Pousão e depois até à da Florbela Espanca.
Pensei que ainda iria visitar o Bento de Jesus Caraça mas o safado deste passarinho desviou-me. Talvez amanhã (e tentarei, como hoje, fazer orelhas moucas às rolhas que o láparo anda a pedir que lhe enfiem -- pela boca, disfarça ele).
Estudou em França e em Itália e, por onde foi vivendo, foi absorvendo influências e incorporando o que via nos seus trabalhos.
Vila Viçosa 2017
Auto-retrato aos 17 anos
Apesar da vida breve, deixou obra assinalável na qual o seu espírito inovador estava bem presente -- não foi só o captar a luz e a cor, por vezes de forma bastante criativa, como o mostrar querer caminhar no sentido da abstração numa altura em que poucos ousavam transpor essa barreira.
Hoje pouco se fala dele.
Talvez apenas os seus conterrâneos o tenham presente mas talvez alguns nem saibam bem quem foi aquele jovem de cabelo ao vento que, agora transformado num busto de bronze, dá as costas à Igreja de São João Evangelista enquanto olha o Castelo lá ao fundo.
Henrique César de Araújo Pousão nasceu em Vila Viçosa em 1859 e em Vila Viçosa morreu, de tuberculose, em 1884 -- ainda Florbela Espanca não tinha nascido.
Estaria, em sua casa, ardendo de amor e saudades. Talvez fosse à janela, talvez tentasse ver se, ao longe, se acercava o seu amor. Talvez afastasse as cortinas para que melhor a luz entrasse. Talvez as corresse para que a solidão e a tristeza melhor a envolvessem.
Não moraria, então, já nesta casa que hoje está abandonada, janelas abertas, sem dono, na qual viveu enquanto menina e moça, assinando, então, os seus textos como Flor d’Alma da Conceição.
Aqui vivu Florbela Espanca nascida em 1894 em Vila Viçosa, batizada como Flor Bela Lobo e que optou por se autonomear Florbela d'Alma da Conceição Espanca.