Estou incapaz de ter o que dizer. Há na vida qualquer coisa de muito incompreensível.
Por exemplo. Uma pessoa vive a vida inteira uma vida oca, frustrada. Desperdiça a vida, ocupando-a com insignificâncias que são exponenciadas a ponto de parecerem emergências. Por tanto se devotar a esses insanos labores, a pessoa espera reconhecimento. Como os outros acham absurda aquela devoção, não mostram o esperado reconhecimento. A pessoa sente-se, então, vítima de incompreensão, ainda mais frustrada. O tempo passa, a pessoa está na meia idade e praticamente não tem amigos, também se afastou da família. Nunca teve tempo para eles, a sua prioridade sempre foi outra. Entra em depressão -- que não reconhece pois acha que os problemas estão nos outros e não nela. E eu olho e fico com pena e admirada. Como é que pessoas assim não percebem que passa um ano e outro e outro e que, se olharem para trás, não verão nada, só vazio? Trabalham de manhã à noite e nada mais fazem na vida. No dia em que deixarem de trabalhar os outros respirarão de alívio porque uma pessoa assim é uma nuvem negra carregada de recriminações. E este é um caso real, igual a tantos assim.
E outro. Uma pessoa escreve maravilhosamente. É culta. Tem graça. É ágil. Está a milhas de muitos outros cujos nomes inundam livrarias em livros que valem zero ou assinam crónicas regiamente pagas e que valem menos que um chavo. E, no entanto, quando tinha tudo para produzir obra de qualidade em nome próprio, esgota a sua arte e perícia em vacuidades ou em trabalho anónimo. Os anos passam, porque sempre passam, e um dia será tarde para tentar repôr a justiça para com os dons que possui. Também é um caso real.
Antes de sair, colega foi levar-me um dossier com candidaturas para eu, durante o fim de semana, dar uma vista de olhos a ver se algumas me interessam para se dar início ao processo de recrutamento. Muita gente, bons currículos. Há sempre, em mim, alguma angústia quando faço isto. Forçosamente ponho logo algumas de lado. Não é possível seguir com muita gente até escolher um, perder-se-ia muito tempo. No entanto, os CVs são muito parecidos. Procuro alguma coisa que revele alguma diferença, que chame a minha atenção. Mas não: formatos normalizados, informações sintetizadas, também praticamente normalizadas. A maior parte tem fotografia. Gosto quando estão a rir, gosto quando detecto descontracção ou simpatia. Fazem-me impressão os que se mostram completamente formais, circunspectos. No entanto, temo cometer injustiças. Já me parecem incompletos os que não têm fotografia. Procuro hobbies, actividades que não tenham a ver com a profissão. A maior parte omite isso.

Aparece-me um que parece muito bonito, atlético, brasileiro, CV bem estruturado. Quase me apetece pô-lo no topo da short list.

Aparece-me um que parece muito bonito, atlético, brasileiro, CV bem estruturado. Quase me apetece pô-lo no topo da short list.
(Depois, ao ter esta ideia, penso que deve ser assim que os homens escolhem candidatas mulheres).E eu tenho aqui para cima de uma dúzia de candidaturas e, no entanto, apenas uma é de uma mulher. Aparece-me um que não diz a idade mas que, pela fotografia, imagino que ande acima dos cinquenta. Cursos que não acabam, bons cursos. Não sei quantas empresas por onde passou. Agora desempregado. Dá ideia que, ao longo da vida, não conseguiu perceber qual a sua vocação ou não conseguiu adaptar-se a nenhum dos trabalhos que teve. Ou, então, não teve sorte. Fico mais angustiada ainda. Ponho-o de lado? Estava a pensar em alguém novo, sangue novo, disruptivo. Custa-me muito isto. É a vida das pessoas nestas folhas que aqui tenho espalhadas ao meu lado, no sofá.
Depois de uma manhã um bocado complicada -- a altura das avaliações, quando levada a sério, pode ser um bocado desconfortável, especialmente se, do um dos lados lados, está alguém avesso a isso como é o meu caso -- e antes de uma tarde também agitada, breve pausa à hora de almoço. Fuga para lugar de eleição. Vontade de me sentar e ficar a ler. Vontade de folhear longamente. Sempre novidades. Ou talvez não, talvez apenas os meus olhos descubram coisas não vistas antes. Tenho aqui comigo junto aos CVs um belo livro. É pesado, muito texto, muitas poesias. Gosto da capa. Espreito uma e outra vez e agrada-me. Tem um CD que certamente vai acompanhar-me nas deslocações pela cidade.
Quem enviou as suas candidaturas não sonha que a decisão está nas mãos de alguém que lê os livros que eu leio, que pensa como eu penso.
O que me cansa, e cansa cada vez mais, são as pessoas completamente convencionais, que traçam regras restritivas para si próprias e para os outros, os que são moralistas e tentam moralizar a vida dos outros. Mas ao mesmo tempo sou muito exigente. Do descritivo das minhas funções, na parte comportamental, consta 'intolerância à mediocridade'. Neste ponto cumpro a 100%. Avessa à mediocridade e à mediania.
Como, de entre estas folhas que aqui tenho ao lado, descubro os que encaixarão bem naquilo que quero nas minhas equipas?
Como saber se, em cima do que sabem fazer profissionalmente, gostam de ler, se gostam da natureza, se é gente boa onda, se são generosos para com os colegas?
Acho que, aos que pre-seleccionar, vou pedir que me digam o nome de um poeta, vou perguntar se sabem algum poema de cor. Vou pedir que me falem num músico que apreciem. Que me recomendem um passeio. Que mostrem que sabem que há vida para além do trabalho, que mostrem que gostam da profissão e que são capazes de se focar nela sem descurarem o que há para além dela.
E eu sou assim. Não gosto de sujeitar os candidatos a testes, a situações que excluam os que não são 'normalizados'. Conheço outros métodos completamente diferentes de seleccionar pessoas mas não estou certa de qual a maneira mais infalível.
A vida é uma coisa complicada. Não há consensos. A vida constrói-se. Mas há quem, por pouca sorte ou falta de jeito, mais pareça empenhado em destruí-la. Ou então é aquilo dos acasos. O ter a sorte de encontrar alguém que acredite em nós, que nos deixe usar as asas, que nos mostre que há muitas perspectivas, pode fazer a diferença. Mas encontrarmos essa pessoa é, na maior parte das vezes, puro acaso. Eu espero que quem trabalha nas minhas equipas ache que foi uma sorte ter-se cruzado comigo. Se calhar espero demais. Mas gostava.
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Um sábado feliz a quem me lê.
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