De passagem pela SIC vejo anúncio à Procuradora Manuela Moura Guedes. Espuma raiva. Acusa, condena, decreta penas. Implacável. Com ela não há inimigos que lhe escapem. Não precisa de provas nem de contraditório. Com ela é assim mesmo: chateaste-me, já dançaste. A cartilha lida, o destino traçado num piscar de olhos, num retorcer de boca.
Foi-se a Santa Mana Joana e ficou a Moura Guedes. Estava a vê-la e a pensar na implacável Santa Mana a quem também ninguém escapava. Só escapavam os que, lá de dentro, enviavam informação, gravações, vídeos e o que calhasse para o Correio da Manhã e Lixeiras associadas.
No pontificado da Santa Mana, muita gente tombou. Gente importante. Tombaram e todos nós assistimos ao seu tombo. Vimo-los humilhados. Era chegado o tempo de dar cabo dos corruptos. Lemos as transcrições, ouvimos as gravações, vimos imagens que comprovavam que eram culpados. Corruptos da pior espécie finalmente vergados. A Santa Mana até foi canonizada em vida, tantos os seus bons feitos: com ela não ia ficar pedra sobre pedra e pena era que não ficassem logo presos mal os investigadores lhes punham os olhos em cima.
Até que agora veio o desfecho de um caso, o dos Vistos Gold. Afinal quase todos inocentes, os processos sem ponta por onde se lhes pegasse. Entretanto, durante anos a vida destas pessoas devassada, a vida pessoal e profissional sacrificada. E por nada. Apenas porque a Santa Mana e a sua malta resolveram que sim.
Arrependimento pelo que vão destruindo à sua passagem? Estou em crer que nenhuma. São implacáveis, estas duas Procuradoras. Estão bem uma para a outra. Com elas não há inocentes, só culpados, e ainda bem que elas estão atentas e são como são.
Um dia destes a Procuradora Boca Guedes voltará à política. E será bem sucedida. Todo o palco que a SIC lhe está a dar é uma boa rampa de lançamento. Haverá muita gente a achar que sem elas os corruptos continuariam à solta. Há que ter Procuradoras justiceiras e poderosas para que o mundo fique mais limpo. Se, pelo meio, destroem uns quantos inocentes, azarinho.
Entretanto, na TVI um tolo que não faço ideia quem seja resolveu levar um criminoso com ideias racistas e fascistas a divulgar as suas ideias. E há quem ache que isso é liberdade de expressão. Um dia destes, alguém dará mais um passo e convidará o criminoso a ter presença cativa num programa de televisão, que é um lugar bom para lançar na política os alarves, os boçais, os populistas. E, se for a votos, capaz de muita gente votar nele, não sabendo ou não querendo saber dos seus antecedentes, e achando que ele é dos bons, que diz as verdades, que é justiceiro, que é dos rijos.
E há também aquilo de Marcelo 'normalizar' o bronco e perigoso Bolsonaro, tratando-o como irmão e dando um passo maior de aproximação, convidando-o a visitar Portugal. Dadas as circunstâncias históricas e dadas as comunidades de portugueses lá e de brasileiros cá, que mantivesse um relacionamento diplomático discreto parecer-me-ia razoável -- mas que Marcelo não tenha arranjado uma forma diplomática de se demarcar das ideias anti-democratas de Bolsonaro deixa-me francamente incomodada.
Caminhamos sobre areias movediças. Há perigo rondando as nossas vidas e vem de onde menos se esperaria -- das instituições que deveriam zelar pelo cumprimento da lei e que, afinal, em puros exercícios de paranóia ou vingança dão cabo de muita gente, dos órgãos de comunicação social que promovem difamadores, demagogos, fascistas, de políticos que elegemos sem cuidar de escolher bem. A qualquer momento um inocente pode ver a sua vida desgraçada sem nada de mal ter feito. As instituições democráticas são frágeis.
É obrigação de todos nós e das instituições que nos representam zelar activamente pela qualidade e sustentabilidade da democracia. E isso tem que começar a ser ensinado e praticado nas escolas, desde a infantil ao ensino superior (no dia em que isso acontecer, de certeza que praxes humilhantes acabam naturalmente -- só para dar um exemplo) e também é bom que comecem a existir, nas estações públicas, programas (criativos, interessantes) que ensinem e fomentem a cidadania livre, exigente, democrática. E é bom que os deputados se debrucem sobre todos estes riscos e engendrem formas de os evitar ou, pelo menos, mitigar.
É que uma coisa é certa: não podemos estar à mercê de Procuradoras como a Guedes ou a Vidal e é bom que por aí, em lugares de influência, não esteja gente estúpida, ávida de protagonismo ou ignorantes que abram a porta às serpentes que devoram a democracia. Nem devemos pôr-nos a jeito para que haja alguma vez o risco de virmos a ter por cá um anormal como o Bolsonaro ou o Trump. É essencial que nós, os inocentes, possamos viver uma vida descansada e que o país em que vivemos não seja um lugar perigoso.
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As imagens mostram trabalhos de James Turrell.
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E agora, caso ainda não estejam ao corrente, queiram ver a minha resposta muito a sério ao Anónimo e Meio. É já a seguir pelo que queiram descer um pouco mais.