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segunda-feira, junho 18, 2012

Uma menina bailarina conhece a sua primeira humilhação e aprende o sentido da misericórdia e da generosidade


Música, por favor


Pamela Lucciarini com a Orquestra do Divino Sospiro interpreta Antigono (1755) de Antonio Mazzoni,
ária escrita propositadamente para Caffarelli




Bailarinas de Degas


Todos os anos havia a festa da escola. Era um acontecimento que era precedido por meses de trabalho. Se era só bailado não garanto. Mas era no bailado que eu participava e é só isso que recordo. Tenho ideia que havia figurantes, acontecimentos paralelos em fundo ao longo dos cenários, o que permitia acomodar todos os meninos, mesmo os que não dançavam, mas disso já não estou certa.

Durante meses, os treinos, as aulas de dança, decorriam na escola. Ao fundo da grande sala, todo o espaço  estava liberto para permitir os exercícios e, depois, as mais diversas coreografias. A professora de dança, também tocava piano e muitas vezes era ela que tocava enquanto a ajudante verificava a nossa precisão e elegância de gestos. Mas, a maior parte do tempo, era com música gravada ou com discos que dançávamos. Era ríspida, perfeccionista, zangava-se facilmente essa professora. Para alguns dos meninos, os que não gostavam de dançar, as aulas acabavam por ser um castigo. Mas para mim era um prazer.



Bailarinas de Edgar Degas


Depois, depois de muitas e muitas horas de treinos, quando já estávamos bem encaminhados, começávamos a ir de tarde para a grande sala em que nos iríamos exibir. Íamos em carrinhas, logo a seguir ao almoço. Uma festa. Lembro que no inverno íamos apertados, encasacados e, quando saíamos dos ensaios, já era de noite, talvez porque os dias fossem pequenos.

Ali chegados, subíamos para as salas por trás do palco e era uma tremenda agitação, uma alegria, uma excitação. Queríamos ir logo para o palco e espreitávamos atrás da grande cortina de veludo, ansiosos.

Umas semanas antes acontecia outro momento alto: começavam a chegar os fatos. 



Bailarinas de Edgar Degas


Fatos lindos, tules, sedas, fantasias maravilhosas e coloridas. Não sei de onde vinha tudo aquilo mas era uma emoção extraordinária que me fazia sentir um frio gostoso no estômago, borboletas azuis na alma, um nervosismo que começava a desenhar-se. A professora e a ajudante começavam a atribuir os fatinhos a cada menino e nós experimentávamos e ficava sempre tudo bem. Fatos lindos.

Podíamos levá-los para casa para algum acerto e para irmos ao fotógrafo imortalizar o personagem. Era um orgulho.

No entanto, da primeira festa lembro sobretudo a humilhação, a primeira humilhação. Creio que, felizmente, a única.

Era a festa das estações. Primavera, Verão, Outono, Inverno. Entravam os meninos da primavera, dançavam, iam-se embora, entravam os do verão e assim sucessivamente.



Bailarinas de Edgar Degas


Eu entrava logo na primavera, era uma flor, ia vestida de violeta. Vejo-me ainda na fotografia. Estou sentada num banco comprido, forrado de seda. Tenho os pés cruzados e as mãos apoiadas de lado, numa posição elegante de ballet. A saia, curtinha, tinha por baixo tule lilás, a armar, mas o tule era visível, parecia uma espuma violeta, e, por cima, uns gomos de seda verde musgo e umas pétalas de seda em lilás que arqueavam para fora. A corola da violeta. A parte de cima era cingida ao corpo em veludo no mesmo tom de lilás, debruado a seda, no mesmo verde musgo. Uma pequena florzinha com quatro anos. Os cabelos compridos ao longo dos ombros, levemente ondulados, claros. Por fora compenetrada, por dentro muito feliz.

No dia da festa toda a gente andava num grande nervosismo, nós não parávamos sossegados nem calados e a professora e a ajudante e todas as outras empregadas da escola tentavam garantir que estávamos bem arranjados, prontos, a postos atrás da cortina. A professora, nesse dia, andava ainda mais encarnada, enervada, numa tensão terrível apenas atenuada, junto de nós, pela boa disposição da ajudante.

Depois de muito esperarmos, finalmente, começou a música, ouvimos bater palmas.

Entrámos, éramos as florzinhas da primavera. Dançámos, dançámos e, depois, a coreografia pressupunha que as florzinhas se deitassem no chão e que ali ficássemos enquanto a música mudava e começavam a entrar as florzinhas de verão, os frutos, as abelhas. Nessa altura, levantar-nos-íamos e dançando, retirar-nos-íamos e começaria a coreografia dos meninos do verão.



Bailarina de Edgar Degas


Cada menino ficava deitado numa posição pré determinada e eu ainda me lembro da minha. De barriga para baixo, com um braço dobrado para apoiar a cabeça, uma perna flectida, olhando para a frente. 

E, nessa altura, pela primeira vez, reparo que a sala está cheia, imensa gente. Fico admirada, tanta gente, tanta. Mas a luz incidia nos artistas do palco, não na assistência. Tento descobrir os meus pais. Mas não consigo. Olho, olho e nada. Depois resolvo fazer uma pesquisa sistemática, fila a fila, cadeira a cadeira. Mas com tão pouca luz, mal se vê. Começo a ficar um bocado aflita, não os vejo.



Fotografia de Helmut Newton


Só dou por mim quando toda a gente bate palmas e alguém me vem levantar. Em vez de sair na altura certa, tinha ficado ali deitada, o tempo todo, a olhar para a assistência. Não dei pela passagem do verão, do outono, do inverno. Nada. Sempre ali humilhantemente estendida no meio dos outros que dançavam, sem dar por nada.

Quando saímos para os bastidores, a professora perguntou-me: 'Então, deixaste-te dormir ou o que é que te aconteceu?' e eu nem consegui ânimo para explicar. Senti que não havia desculpa para tamanha falta de profissionalismo. Tantos meses de preparação para chegar ao grande dia e acontecer uma coisa destas. E, no fim da festa, quando finalmente, os meus pais me resgataram, já eu ia cheia de vergonha, também me perguntaram: 'Então mas o que foi que te aconteceu, entravam e saíam os outros e tu ali, deitada no chão...?'. Senti, nessa altura uma culpa horrível, uma vontade de não encarar ninguém.

Lembro-me que na segunda feira seguinte fui cheia de vergonha, com medo que gozassem comigo, tinha vontade de não mais voltar à escola. Era grande demais a humilhação.

Mas não, ninguém me disse nada, nem os meninos, nem a ríspida professora, nem a ajudante brincalhona. Senti que estavam a ser misericordiosos, que me estavam a poupar. E nesse dia, à medida que as horas passavam e que ninguém gozava comigo, a minha alegria ia aumentado. Acho que foi a primeira vez que tive a noção tão explícita da imensa generosidade dos outros. E, se sempre fui uma criança alegre e despreocupada, acho que foi a partir daí que passei a sentir-me sempre agradecida pelo que tenho, pela amizade dos outros, pela vida.

Nos anos seguintes a festa correu sempre bem, pelo menos do que me lembro. 



Fotografia de Helmut Newton


Lembro-me especialmente da última vez que participei. Já andava no liceu, no 1º ano (actual 5º) mas a professora pediu aos meus pais que autorizassem que eu, apesar de já não andar lá, ainda participasse. Foi uma despedida em beleza. Eu era a abelha rainha. Adorei.

Num tom dourado, tule, sobre tule, corpete de seda, eu dançava, dançava. Havia os zangãos, as obreiras e todos construíam um bailado harmonioso, coordenado. Mas eu  era abelha rainha. Tinha o papel mais difícil, a coreografia era complicada e muito longa. Mas a música era linda, o meu fato era lindo e o meu corpo era flexível, ágil, elástico, extensível. As minhas pernas elevavam-se até ao impensável, e eu elevava-me e, ao saltar, sentia que voava, e rodopiava como se não fosse eu, eu fora de mim, dançando, tomada pela magia e encanto da música. Eu, menina, cheia de graça.



Fotografia de Lois Greenfeild


Não sou saudosista, nunca digo 'no meu tempo' porque acho que 'o meu tempo' é aquele em que vivo, o tempo presente, talvez até o tempo futuro. Ao longo de toda a minha vida tenho tido a sorte de ter momentos bons, mas nenhum melhor que os que se seguiram e, certamente, não melhores do que os que estão para vir. Não obstante, é sempre com carinho, que volto aos dias cheios de encanto da minha infância.

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Espero não vos ter maçado muito (além disso, uma vez mais, escrevi demais; por mais que parta com a intenção de ser sucinta, começo a escrever e distraio-me).

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Quem aqui costuma visitar-me conhece a minha admiração por Sylvie Guillem. Tivesse eu sido bailarina, era como ela que eu gostaria de ter sido. Aqui vos deixo mais uma interpretação desta bailarina vibrante, bem humorada, de longas pernas e imensa elegância.



Sylvie Guillem interpreta Manon


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Hoje, no meu Ginjal e Lisboa, a love affair abro a semana dedicada a Dmitri Shostakovich. É a grande música. 
E as minhas palavras olham-se ao espelho em volta de um poema de um Poeta que muito aprecio, Luís Filipe Castro Mendes. 
Gostaria de vos ter por lá.

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E tenham, meus Caros Leitores, uma semana que valha a pena, a começar já por esta segunda feira.

Apesar de não vos conhecer, acreditem que vos desejo que sejam felizes.