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domingo, novembro 03, 2019

E em volta dos meus passos eu sinto os grandes anjos cujas asas contêm todo o vento dos espaços






Tenho estado a fazer como que uma gostosa cura de sono. Não tanto quanto se calhar precisaria mas, enfim, o possível. E tem sido bom.

Conto.

Na sexta-feira, estava ainda no primeiro sono e já estava a ser acordada. Como habitualmente, para justificar o mau acto, acrescentou quase meia-hora à hora real. Enfim. Desculpou-se: tínhamos muita coisa para fazer. Pronto, desculpei, se calhar era verdade.

Dali seguimos para casa dos meus pais e, daí, para o campo. Era para almoçarmos num restaurante onde vamos às vezes mas, ao ligarmos, fomos informados que estavam repletos até às duas e meia. Tarde demais, nem pensar. Portanto, fizemos uma inflexão e fomos para outro lado. Nunca lá tínhamos ido. As doses eram de oito ou nove euros. Sem pestanejar, pedimos duas doses. Quando vieram duas travessonas nem queríamos acreditar. De facto, ao olhar à volta, em mesas de duas pessoas só vi uma travessa. Na minha, sobrou mais de metade. Na dele, quase metade. Felizmente os restaurantes agora têm caixas para trazermos o que sobra. Portanto, deu para o jantar de ontem e para o de hoje.


Entretanto, ao sairmos, vimos uma seta para o Lidl e, como tínhamos que nos abastecer para o fim de semana e como gosto de ir ao Lidl, fomos. Aproveitei para comprar mais coisas. Os produtos da marca deles são boas e baratas. E, em geral, o que lá têm é bom. Tinha pensado fazer favas com entrecosto mas tinham de tudo menos favas. Portanto, para domingo, trouxe coisas para um cozido à portuguesa em versão light. E para o almoço de sábado trouxe uma cabeça de pescada do Chile. Uma senhora cabeça. Nem vi quanto pesava mas talvez um quilo ou mais, nem sei. Fiz com batata normal, batata doce, cenoura, feijão verde, cebola e ovo. Para ele ficou a parte de posta e para mim a cabeça propriamente dita. Tudo o que seja para rapar espinhas ou ossos é para mim. Os pobres dos gatos ou dos cães que aqui aparecem não têm grande sorte. Dou-lhes os restos mas já pouco têm para depenicar. Belo peixinho. Estava bem bom. Tal como a minha menininha linda, também eu tenho o peixe cozido com batatas e etc como um dos meus pratos preferidos.

Bem, mas falava eu do sono. Ontem à tarde, depois de termos chegado e arrumado as compras, depois de ter feito uma caminhada e feito montes de fotografias, reclinei-me no sofá e, pimbas, desatei a dormir.


Acordei, fomos dar um passeio e, enquanto ele ficou a fazer não sei o quê, voltei para casa e comecei a devorar Bem-vinda a casa, Memórias, um livro num registo autobiográfico de Lucia Berlin. Muito bom. E ontem quase o acabei. Depois de jantar deu-me, outra vez, o sono e dormitei. Escrevi o post sobre O problema dos homens e, pouco depois li um pouco mais e fui dormir. 

Pois bem. Quando acordei, de manhã, pensei que ainda fosse cedo. Pensei: se for para aí umas nove horas ainda tento dormir mais um bocadinho. Como sempre, estava sozinha na cama, certamente desde quase madrugada, e isso explica que estivesse a dormir sem interrupção. Não há lugar do mundo onde consiga pôr o sono em dia como aqui, especialmente quando estamos só os dois. Levantei-me, fui abrir a portada para entrar o ar fresco e ouvir os pássaros. E fui ver as horas. Onze e quarenta e cinco. Olhei várias vezes para confirmar. Por um momento ainda pensei que tinha mudado a hora, que na volta ainda eram dez e tal. Mas depois lembrei-me que isso da mudança da hora já era.


Depois do pequeno almoço, fui caminhar. Estava ele a chegar a casa. Tinha andado nas vidas dele. Curte as neblinas matinais, curte o cheiro das árvores, curte as cores e os sons da manhã ainda imaculada. Diz sempre que não sei o que perco. Mas os meus horários aqui são outros.

E fui, então, andar de novo por entre as árvores, pisando a caruma macia, aspirando os cheiros íntimos da terra, ouvindo os pássaros, sentindo aquele frémito de quase susto quando algum pássaro apanhado de surpresa bate as asas apressadamente, fazendo toda a árvore estremecer até conseguir libertar-se e começar a voar. 

E, tal como ontem, assisti maravilhada a este fenómeno que sempre me surpreende. Da terra rebentam cogumelos como se não houvesse amanhã. Parece um milagre. Uma aparição. Cogumelos de todas as cores, de todos os tamanhos. Por todo o lado. Não têm conta. Impressionante.


Há milhares de pontinhos brancos. Ínfimos, tamanho quase de cabecinhas de alfinete. Ponho-me de joelhos no chão, sinto a terra molhada. E vejo que os pés são fininhos como cabelos transparentes.  Tão perfeitos, tão delicados. Tão efémeros.

Amplio, ponho o flash, fotografo quer com a máquina quer com o telemóvel para enviar à minha mãe.


Outros são castanhos e estão enleados na caruma. Parecem folhas secas. Outros são grandes, redondos, brancos, levantam as pedras afirmando a sua vontade. Outros são elegantes, cinematográficos. Outros são carnudos, tumefactos, húmidos. Outros são enormes, gigantes, rendilhados. Uns têm o pé grosso, outros um pé delgado. Outros levantam a terra e têm ainda folhas, ramos, paus, terra em cima. São fortes apesar de parecerem macios.

Acho-os lindos. Melhor: acho extraordinário este fenómeno de, do nada, desatarem a sair do chão estes seres misteriosos. Tão diversos, tão intrigantes.  Como se explica uma coisa assim?


A minha mãe, como expectável, escreveu: se fossem bons que belo almoço. Depois acrescentou aquilo que, por esta altura, sempre diz: mas não lhes toques, não arrisques, podem ser venenosos. Respondi que alguns estão já com dentadas e que não vejo coelhos ou javalis caídos por perto. Mas que, claro, não ia arriscar. Depois escreveu que há tantos porque há uma grande cama de folhagem húmida

E há. Uma manta macia, molhada, perfumada. Um cheiro a fertilidade, a beleza, a espanto.


E está tudo tão lindo. As cores estão lindas, acobreadas, douradas, os verdes mais verdes, tudo tão harmonioso, tudo tão tranquilo, tudo tão bom.

De manhã, ainda tratei da casa. Varri, limpei o pó, sacudi tapetes. Gosto de ter a casa limpa. Trouxe da Area um óleo perfumado, com um cheiro cítrico e a verbena. Um perfume fresco, suave. Coloquei o frasquinho com os pauzinhos junto à lareira. Mas acho que é suave demais, ainda não dou pelo perfume. Mas o meu marido, antes de se ir deitar, passou por lá e perguntou que cheiro era aquele e que não percebe para que é aquilo. Mas eu percebo: é porque gosto.

Precisava de mais uns dias para dar uma volta aos roupeiros, aos livros, reorganizar, também aqui, os livros. Acaba por andar sempre tudo misturado, brinquedos, livros de crianças, objectos tresmalhados, panteras que aparecem onde antes estavam peças de cerâmica que, por causa dos meninos, subiram para locais mais intangíveis, coisas assim. Mas, ao mesmo tempo, gosto. Para onde me vire há sempre sinais de todos eles e isso é outra fonte de felicidade.


Mas, com o tempo aqui sempre tão contado, fico-me pelo essencial. Limpeza básica. A ver se agora de manhã me vou às teias de aranha que estou agora a ver que subsistem junto aos candeeiros aqui da parede. Uma praga. Apanham-se à larga durante a semana e acham que é tudo delas. tecem, tecem, tecem.

E faltam-me ainda as casas de banho mas só as lavo depois dos banhos que, aqui, são antes de almoço, depois de andarmos nas nossas lides.


O meu marido, entretanto, de tarde, esteve a fazer uma fogueira com ramagens, desbaste de árvores, tojo, mato, restos ainda do verão. Aquele cheiro bom de uma fogueira no campo, aquele fumo bonito, aquela névoa: tudo maravilhoso. Durou até ao entardecer. Gosto muito, parece que me traz sentimentos antigos, bons. Tão apaziguador, uma coisa que provavelmente remonta até raízes ancestrais de que devo ainda guardar memória. 

Repito-me se disser aquilo que já disse tantas vezes: viver o contacto próximo com a natureza enche-me de felicidade. E é tão melhor quanto me dou conta disso, sinto mesmo que estou a viver momentos de felicidade. Desfruto. Devagarinho. Contemplo, toco, aspiro, caminho. Tão bom.


E, entretanto, acabei o livro da Lucia Berlin. Uma vida complicada, a dela. Não sei como há pessoas que conseguem sobreviver sãs de cabeça, mantendo os laços familiares, em circunstâncias tão complexas. A minha filha é fã dela. Foi a minha nora que lhe deu o Manual para mulheres de limpeza e ficou admiradora. Já leu os três dela traduzidos cá. Eu não, só este. Mas agora vou ver se leio outro.

Depois comecei o da raposa da Herta Müller. Só que a luz do fim do dia estava a encantar-me e fui à rua fazer mais fotografias. E a seguir estive a ler parte do Colóquio de Letras dedicado a Correspondências


Antes de jantar, escrevi o post dos medronhos macios e doces e, a seguir ao jantar, surpreendentemente, voltei a adormecer. Um sono, um sono. Parece que, no decurso dos dias, o corpo vai andando, aguentando-se aparentemente bem com as poucas horas de sono, mas, na primeira oportunidade, desforra-se, descansa, recarrega baterias, faz um saudável reset. O que tenho dormido é incrível. Nem consegui responder a mails e acho que nem vou responder a comentários. Estou, outra vez, capaz de ir dormir, o corpo a pedir-em aconchego, caminha boa.


E, enquanto escrevo, ouço o vento lá fora. Sopra com força. É a Amélie. As árvores que guardam a noite não conseguem evitar que as ramagens se inquietem, fustigadas pela ventania. As bolotas caem sobre o telhado e fazem um barulho a que já me habituei. A chuva cai. Gosto de ouvir. São sons bons. Tudo na natureza me deixa encantada. Os deuses que por aqui guardam estes meus espaços têm-me também nos seus braços. E eu deixo-me abraçar, deixo-me embalar.

Há sempre um deus fantástico nas casas
Em que eu vivo, e em volta dos meus passos
Eu sinto os grandes anjos cujas asas
Contêm todo o vento dos espaços.

[Sophia]


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E a todos, homens ou mulheres, com ou sem problemas, desejo um feliz dia de domingo

quarta-feira, agosto 31, 2016

A room with a view
-- e o mar




Por mail, recebi um surpreendente e amabilíssimo convite para ir conhecer a casa e a família de um Leitor superlativamente simpático. 

E, em comentário ao post abaixo, recebi um desafio para ir visitar partes do Algarve que intuo maravilhosas (e que desconheço - com excepção da Carrapateira e de Monchique).

A ambos agradeço mas, por agora, não vai ser possível. A estadia é curta e eu estava mesmo a precisar de descansar. Os dias têm sido acordar, pequeno almoço, ida a pé para a praia, caminhada, banho de mar, estendermo-nos a secar, descansar um pouco, regressar a pé, estadia curta para leitura no jardim e breve banho na piscina, almoço no quarto, telefonemas e mails (de trabalho, malgré moi), depois curta sesta, ida a pé para a praia, descansar, ouvir o mar que ruge como um selvagem à solta, vê-lo e fotografá-lo

(e a minha filha que gozou por eu ter sido apanhada desprevenida por uma onda traiçoeira neste mar caprichoso -- o quê? Não me digas que te ias afogando com a água pelo joelho...? - pode ver nesta fotografia como é que ele fica quando o vento e as correntes o desencaminham; e não, não estava com a água pelo joelho, estava pelo peito e fiquei sem pé, enrolada, provavelmente às cambalhotas, nem faço ideia, só sei que fiquei sem saber de que planeta era - e agora estou com um ombro todo dorido. Mas, caramba, o mar é lindo!)

regresso ao quarto, banho, telefonemas familiares, contemplação da paisagem, fotografias e mais fotografias, tão bonita a vista a partir da varanda do quarto, deixar que o sol se inflame, o céu em fogo, até que escurece, depois saída para jantar, curto passeio e regresso ao quarto por volta das dez e tal. E depois, como é meu costume, aqui me deixo ficar, convosco.

Tenho que aproveitar bem estes dias de dolce fare niente, No fim de semana já temos compromissos familiares. 

Portanto, saibam que fico sinceramente sensibilizada com a vossa atenção mas fica para uma próxima. E fica já aqui assegurado que virei ao Algarve não para borregar ou praiar mas para conhecer os lugares só conhecidos pelos verdadeiros connaisseurs.

E porque o percurso sugerido pelo Caro HY me parece altamente sugestivo, para o caso de algum dos meus Leitores querer ir andando, aqui fica no frontispício do Um Jeito Manso.
Experimente ir a Barão de S João. Beba um copo num dos cafés locais, suba à mata. Peça que lhe indiquem a Pedragosa e vá ver as pinturas da casa redonda o Tó Alonso. Apanhe a estrada para Barão de S Miguel, vá às praias da Carrapateira e da Bordeira. Retome para Aljezur, apanhe para Monchique por Marmelete. Acabe na barragem da Bravura, por trás do Odeaxere. Verá que não se arrepende.
Não me arrependerei de certeza, Caro HY, e muito obrigada pelo desenho do percurso. E muito obrigada pelo convite para ir de visita à casa do Leitor que, inclusivamente sacrificava os filhos para nos aturarem. Gracias!

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E para a Leitora bea uma euforia de ouro e prata que brota das areias secas e que fotografei fascinada. Tem razão, bea: como é tal possível...?

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As fotografias foram feitas hoje. 
A música pertence à banda sonora do filme A room with a view e traz-nos O Mio Babbino Caro  na interpretação de Kiri Te Kanawa

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terça-feira, setembro 29, 2015

Eleições Legislativas 2015 - "Ensaio sobre a Cegueira" remixed? [Ou as sondagens estão todas maradas...?]






A consciência moral, que tantos insensatos têm ofendido e muitos mais renegado, é coisa que existe e existiu sempre, não foi uma invenção dos filósofos do Quaternário, quando a alma mal passava ainda de um projecto confuso. Com o andar dos tempos, mais as actividades da convivência e as trocas genéticas, acabámos por meter a consciência na cor do sangue e no sal das lágrimas, e, como se tanto fosse pouco, fizemos dos olhos uma espécie de espelhos virados para dentro, com o resultado, muitas vezes, de mostrarem eles sem reserva o que estávamos tratando de negar com a boca. Acresce a isto, que é geral, a circunstância particular de que, em espíritos simples, o remorso causado por um mal feito se confunde frequentemente com medos ancestrais de todo o tipo, donde resulta que o castigo do prevaricador acaba por ser, sem pau nem pedra, duas vezes o merecido.




Má para toda a gente, a situação, para os cegos, era catastrófica, uma vez que, segundo a expressão corrente, não podiam ver aonde iam nem onde punham os pés. Dava lástima vê-los a esbarrar nos carros abandonados, um após outro, esfolando as canelas, alguns caíam e choravam, Está aí alguém que me ajude a levantar, mas também os havia, brutos de desespero ou por natureza, que praguejavam e repeliam a mão benemérita que acudira a auxiliá-los, Deixe lá que a sua vez também lhe há-de chegar, então a compassiva pessoa assustava-se, fugia, perdia-se na espessura do nevoeiro branco, subitamente consciente do risco em que a sua bondade a tinha feito incorrer, quem sabe se para ir cegar uns metros adiante.





Diz-se a um cego, Estás livre, abre-se-lhe a porta que o separava do mundo, Vai, estás livre, tornamos a dizer-lhe, e ele não vai, ficou ali parado no meio da rua, ele e os outros, estão assustados, não sabem para onde ir, é que não há comparação entre viver num labirinto racional, como é, por definição, um manicómio, e aventurar-se, sem mão de guia nem trela de cão, no labirinto dementado da cidade, onde a memória para nada servirá, pois apenas será capaz de mostrar a imagem dos lugares e não os caminhos para lá chegar. Postados diante do edifício que já arde de uma ponta à outra, os cegos sentem na cara as ondas vivas do calor do incêndio, recebem-nas como algo de certo modo os resguarda, tal como as paredes tinham sido antes, ao mesmo tempo, prisão e segurança. 




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  • O texto é composto por três excertos não sequenciais de Ensaio sobre a Cegueira de José Saramago
  • As três primeiras imagens pertencem à Parábola dos Cegos ou Cegos conduzindo os cegos, obra datada de 1568 de  Pieter Bruegel the Elder
  • A última imagem é da autoria de Roberta Coni
  • Dame Kiri Te Kanawa interpreta "Vocalise" de Rachmaninoff
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Sobre a minha excentricidade, queiram, por favor, descer até ao post seguinte onde o meu irmão gémeo Raul mostra que é tal e qualzinho eu.

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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma bela terça-feira.
E desejo outra coisa: que não se encontrem entre os cegos que não sabem para onde ir, que quase preferem ficar aprisionados - e desejo isso para que, no próximo dia 4, consigam escolher o vosso próprio caminho, um caminho alternativo.

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sexta-feira, maio 15, 2015

"Expões-te tanto", dizem-lhe como quem diz "admiro a tua coragem". Frederico Lourenço não concorda. Pergunta: "Estamos no Irão? Aí sim, seria coragem" - até porque, como se sabe (acrescento eu), no Irão não há homossexuais.


Il n’y a pas d’homosexuels en Iran (Suisse) ©Laurence Rast




Por outro lado, o que está em causa no "expões-te tanto" poderá ser acima de tudo sintoma de uma maneira muito portuguesa de entender a tarefa do escritor: o poeta deve ser um fingidor; o romancista deve ser um efabulador, alguém com um talento extraordinário para criar mundos, realidades e personagens inventadas. (Não digo que não). (...)

No meu mundo literário não é assim. Em primeiro lugar porque não tenho talento para efabulador: quem escreve deve conseguir transformar as suas fraquezas em mais-valias; é o que me esforço por fazer. Em segundo lugar, constato que este escrúpulo lusitano de apagar do texto a realidade pessoal de quem o escreveu não é dogma vigente noutros mundos literários. (...)

Porque é que escrevo sobre mim? Porque é que escrevo sobre os meus pais, sobre a música que me põe a alma a falar, sobre os meus ridículos preconceitos, sobre as minhas infindas absurdezas, sobre a forma como amei os namorados cujo amor por mim determinou em tão grande medida quem sou?(...)

Poderá nesse caso perguntar-se a este auto-exposicionista inveterado: escreves então essencialmente sobre aquilo que mexe contigo, não é? Ao que o próprio auto-exposicionista responde com outra pergunta: teria algum interesse que eu escrevesse sobre aquilo que não mexe comigo?


Il n’y a pas d’homosexuels en Iran


Uma vez perguntei a um colega meu na Faculdade de Letras de Lisboa por que razão não comprava uns óculos de sol. É que estávamos à porta da Faculdade, estava uma luz afiada e cortante como só existe em Lisboa; e eu, mesmo com óculos de sol, mal conseguia abrir os olhos. A resposta do meu antigo colega deixou-me bastante perplexo: o pai tinha-lhe dito em tempos que usar óculos de sol era "prova" de se ser paneleiro. Coisa bastante sensível para quem, como esse meu colega, não sendo de todo homossexual, toda a vida se debatera com essa fama, sem nunca ter tido o proveito (coitado).

Seja como for, se há coisa divertida são as provas "iniludíveis" que tantas pessoas pensam ter da orientação sexual de outrem.Tantas vezes tais provas não provam rigorosamente nada. Os próprios gays nem sempre têm o seu "gaydar" apurado e enganam-se redondamente ao tentar adivinhar se este ou aquele "será". 


Il n’y a pas d’homosexuels en Iran 


Pessoalmente não "escolhi" ser homossexual: sei apenas que sempre fui. Mas tenho a certeza absoluta de que, se me fosse dado escolher, escolheria ser como sou. Gosto profundamente da minha sexualidade, sempre convivi com ela de forma saudável e não levem a mal se eu transcrever aqui um grafito que, quando eu era estudante, me intrigava numa das casas de banho dos rapazes na Faculdade de Letras de Lisboa: "ser gay é genial". Suponho que quem escreveu essas palavras usou "genial" no sentido de "bacana". Ser gay é bem bacana. Ser heteressexual também (imagino). O sexo, desde que praticado entre consenting adults, é bacana e (porque não?) genial. Eu acho.

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(...) o Apolo que Benoît quer encontrar no mundo da noite gay é o sósia da imagem do deus, tal como imaginado por Boucher, no quadro, actualmente na Wallace Collection de Londres, The rising sun.
Neste quadro, pintado em 1753, o deus é visto nos termos habituais da corporalização da masculinidade perfeita, mas há uma nuance que tira esta imagem da categoria beefcake, ainda que não da eye candy. A nuance é dada pela veste vaporosa que salvaguarda a modéstia do deus, veste que Boucher tingiu com a cor dos dedos róseos de Aurora.
(da crónica Em demanda de Apolo)
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* Todos os textos fazem parte do livro 'O lugar supraceleste' de Frederico Lourenço, das Edições Cotovia. Os que acima não se encontram assinalados pertencem, respectivamente, às crónicas:

  • Expor-me

  • Óculos de sol

  • Orientação sexual enquanto tema filosófico


* Lá em cima a música é Capriccio de Richard Strauss numa interpretação de Kiri Te Kanawa

Mas na ópera há também (...)  "la joie d'aimer sans vouloir le dire". E a personagem operática mais expressiva desta maneira não-verbal de amar é a Madeleine de Capriccio (...). Esta vivência, por parte de Madeleine, da alegria de amar sem querer dizê-lo não é inteiramente resultado da discrição aristocrática da personagem (uma condessa), mas sobretudo da circunstância de ela estar apaixonada por dois homens.   
Excerto da crónica O som do amor (3)

* As fotografias fazem parte de uma série do fotógrafo suíço Laurence Rasti sobre o tema tabu da homossexualidade no Irão: Il n’y a pas d’homosexuels en Iran. Ao dar-lhe visibilidade, Laurence Rasti pretende assinalar os riscos que os homossexuais iranianos ainda correm, tendo que viver a sua sexualidade às escondidas pois arriscam, inclusivamente, a pena de morte.


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E por cá? Todos os homossexuais já vivem a sua sexualidade com naturalidade, sem serem vítimas de preconceitos? É possível falar e brincar da homossexualidade com sentido de humor e descontracção? O tema já não é tabu? O léxico, desde o mais científico ao popular ou vernáculo, já é olhado com naturalidade e não como insulto?
Pergunto.
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A pessoa que amamos é a metade que nos falta para nos sentirmos completos?
(...)

Quando nos apaixonamos por alguém, faz parte da sintomatologia própria da paixão percepcionarmos a pessoa amada como a peça que faltava para nos sentirmos inteiros.
(...)

Nada nos traz mais próximos de nós mesmos do que amar outra pessoa.
(...)



(Excerto da crónica O ganho de uma perda
- ou como o amor e a paixão são iguais seja na hetero seja na homossexualidade)

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Para terminar:

É possível tocar Bach em piano com supremo bom gosto (Maria Tipo) 

- Frederico Lourenço dixit na crónica A centelha


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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma bela sexta-feira, com muito afecto, com muita paz.

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terça-feira, abril 07, 2015

Ainda ninguém a conhecia. Sabia-se apenas que vivia retirada em práticas piedosas.








Era uma multidão de soldados empurrando-se uns aos outros. Já não tinham medo. Recomeçavam a beber. Os perfumes que lhes escorriam das testas humedeciam-lhes com grandes gotas as túnicas em farrapos e, apoiados nos dois punhos assentes nas mesas que lhes pareciam oscilar como navios, passeavam os grandes olhos ébrios, para devorarem com a vista o que não podiam agarrar. Outros, caminhando pelo meio das travessas sobre as toalhas de púrpura, partiam a pontapé os escabelos de marfim e os frasquinhos tírios de vidro. As canções misturavam-se com o estertor dos escravos que agonizavam no meio das taças partidas. Pediam vinho, carnes, ouro. Gritavam por mulheres. Deliravam em cem línguas. Alguns julgavam-se nos banhos públicos, devido à humidade que flutuava à sua volta, ou então, vendo a vegetação, imaginavam-se à caça e corriam atrás dos seus companheiros como se eles fossem animais selvagens. Passando de uma para outra, o incêndio atingia todas as árvores, e os altos maciços de verdura donde se escapavam longas espirais brancas pareciam vulcões que começassem a fumegar. O clamor redobrava de intensidade; os leões feridos rugiam na sombra.

O palácio iluminou-se de repente no terraço mais alto, a porta do meio abriu-se, e uma mulher, a filha de Amílcar em pessoa, coberta de vestes negras, apareceu no limiar. Desceu a primeira escadaria que ladeava obliquamente o primeiro andar, e depois a segunda, e a terceira, e parou no último terraço, ao alto da escadaria das galés. Imóvel e de cabeça baixa, contemplava os soldados.





Atrás dela, de ambos os lados, dispunham-se duas longas teorias de homens pálidos, envergando vestes brancas com franjas vermelhas que lhes caíam a direito até aos pés. Não tinham cabelo nem sobrancelhas. Nas mãos faiscantes de anéis tinham enormes liras, e todos cantavam numa voz aguda um hino à divindade de Cartago. Eram os sacerdotes eunucos do templo de Tanit, que Salammbô muitas vezes chamava a casa.

Por fim, ela desceu a escadaria das galés e os sacerdotes seguiram-na. Avançou pela avenida de ciprestes, e caminhava lentamente por entre as mesas dos capitães, que recuavam um pouco ao vê-la passar.





O cabelo polvilhado de uma areia violácea, e apanhado em forma de torre em conformidade com a moda das virgens cananeias, tornava-a mais alta. Tranças de pérolas coladas às têmporas desciam-lhe até aos cantos da boca, rosada como uma romã entreaberta. No peito trazia um conjunto de pedras luminosas, que imitavam na variedade das cores as escamas de uma moreia. Os braços, ornados de diamantes, saíam-lhe nus da túnica sem mangas, estrelada de flores vermelhas num fundo todo preto. Trazia entre os tornozelos uma correntinha de ouro para lhe regular a marcha, e arrastava atrás de si a grande capa de púrpura escura, feita de um tecido incomum, que formava a cada um dos seus passos uma larga vaga que a seguia.

De vez em quando os sacerdotes dedilhavam nas liras uns acordes quase abafados; e nos intervalos da música ouvia-se o débil ruído da correntinha de ouro com o estalido regular das sandálias de papiro.

Ainda ninguém a conhecia. Sabia-se apenas que vivia retirada em práticas piedosas. 





Alguns soldados tinham-na avistado de noite, no alto do seu palácio, de joelhos diante das estrelas, no meio dos turbilhões dos incensórios acesos. Fora a Lua que a tornara tão pálida, e qualquer coisa dos Deuses a envolvia como um vapor subtil. Os olhos pareciam fixos no longe, para além dos espaços terrestres.





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A primeira pintura que ilustra o texto é Salammbô de Adrien Henri Tanoux, datada de 1921

A segunda é Salammbô de Alfons Mucha,1896

A terceira é Salammbô de Gaston Bussiere, 1907

As ilustrações de Salammbô são de Lobel Riche


O texto é um excerto do Capítulo 1: O Festim, de Salammbô de Gustave Flaubert numa tradução de Pedro Tamen.


Lá em cima, Dame Kiri Te Kanawa com a London Symphony Orchestra and Chorus interpretam "Aria from Salammbo"


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Para quem não for dado à literatura e prefira rapazes nus a dançarem com uma toalhita acrobática é só descer até ao post seguinte. Uma graça.

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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma bela terça-feira. 


quarta-feira, março 04, 2015

Um tigre azul deixou-me uma rosa azul


No post abaixo já falei de Passos Coelho, essa triste figura que nunca deveria ter sido Primeiro-Ministro. Mas foi e está à vista o que fez ao País. Portugal está hoje pior conforme todos os indicadores o comprovam. Mas, pior que isso, pior do que o drama da dívida, pior do que o colapso da economia, pior do que o desemprego elevado, pior do que a preocupante emigração, é a devastação na esperança, na moral, na honra dos portugueses.

Os últimos dados conhecidos revelam também que é um cidadão relapso, sem vergonha, despreocupado com os seus deveres. E a sua última actuação nas jornadas parlamentares do seu partido revela-o também cobarde.

Dificilmente os portugueses lhe perdoarão este tipo de comportamentos. Por isso, para bem dele e, sobretudo, dos portugueses, Passos Coelho deveria demitir-se. Já.

Mas, enfim, sobre isso falo no post seguinte. Aqui, agora, a conversa é outra. Rêverie de novo.

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Estou vestida de negro, apenas com uma capa de veludo azul escuro por cima. Tenho os cabelos presos. Tenho o coração apertado. Tenho a minha cabeça num outro lugar. Quando todos dormem e contra toda a prudência, eu penso naquele que está num outro lugar, longe, longe. Contra toda a prudência quero responder ao chamamento silencioso que dele se desprende. 

Nada sei dele, não sei onde vive, não sei como se chama, não sei o que faz, nada. Mas sei que ele me chama.

Espreito pela janela. O rio corre, negro, lá ao fundo. Nem uma luz. A cidade dorme. Apenas eu vagueio, inquieta.

Então esgueiro-me e saio de casa. As ruas estão desertas, escuras. Sinto um frio, um tremor, e sei que é medo. Penso que é perigoso. A madrugada vai alta, o frio está húmido. Penso que deveria, talvez, correr. Mas não sei para onde.

Então vou andando, cosida às paredes, atravessando as ruas desertas, escuras, esperando que o chamamento silencioso que ecoa no meu coração me transporte.

Mas é para o rio que os meus passos me levam, o rio, sempre o rio. Lá chegada, assusto-me com as correntes de ferro que rangem, com as pancadas dos navios no cais. Estreito-me contra as casas em ruínas, sou uma sombra silenciosa que atravessa a escuridão. Por vezes parece-me ver sombras, vultos, e o meu coração bate, descompassado, e eu tremo, tremo muito. Tenho medo. Mas continuo.

Penso que estou cada vez mais longe, a noite não me deixa perceber até onde os passos já me levaram. O cheiro da maresia, o marulhar leve das ondas deixa-me perceber que continuo perto do rio.

Depois começo a perceber que os meus pés pisam terra macia, erva. Já não sei onde estou.

E, então, sinto respirar. Perto de mim. Arrepio-me. Ah mas arrepio-me tanto. Transida, a respiração suspensa, quase paralisada. Já não sei se estou parada ou a andar, a todo o momento espero ser atacada. Não consigo olhar para trás, tanta a inquietação. Uma respiração quente, um bafo. Não ouço passos, só sinto um respirar denso perto de mim. Arrepiada, sinto que os olhos se me enchem de lágrimas, e não é medo, é uma perturbação muito forte, é como se alguém pudesse entrar em mim, entrar na minha pele, tomar o lugar do meu corpo. A respiração aproxima-se, sinto-o, tão arrepiada.

Depois uma serenidade estranha começou a invadir o meu corpo, a respiração quente torna-se ofegante, inquieta e eu cada vez mais calma. Espero. Tiro a minha capa de veludo azul. Sem a ver, apenas pelo tacto, deito-me sobre ela. Não vejo nada nem ninguém. Apenas a respiração está cada vez mais próxima.

E então, arrepiada embora estranhamente tranquila, a pele emocionada, sinto que um vulto macio se deita ao meu lado. Aproximo-me e sinto a sua pele macia, muito macia, a respiração agora muito suave, e deixo que o seu corpo morno se encoste ao meu.

Não sei quanto tempo ali estive. Nem sei explicar que paz tão infinita invadiu o meu corpo. Como se nunca antes tivesse sentido uma felicidade tão absoluta.

Depois o dia começou a querer alvorear. Senti vontade de adormecer. E acho que adormeci. Sonhei então com um tigre imenso, assustador, sonhei com uma gruta negra por onde uma luz azul entrava escorrendo como água muito escura. Sonhei que o tigre medonho se tingia de azul e eu escondida, com medo, perseguindo o tigre e o tigre perseguindo-me a mim, espiando-nos, descobrindo-nos, assustados os dois, sentindo um desejo aflito, sentindo o perigo, querendo senti-lo. O olhar do grande tigre azul penetrava o meu, e o meu coração não aguentava tanta emoção, tanto medo, tanto querer e eu sentia que o meu olhar brilhava no escuro e que o tigre não desviava o seu olhar do meu. Arrepiada, assustada, sem vontade, com vontade.




Depois acordei. O céu começava a iluminar-se. Senti-me sozinha. Sentei-me e olhei em volta, procurando aquele que, na noite escura, se tinha deitado ao meu lado. Ninguém. Depois ouvi um rumor, um leve mexer de folhas, ou uns passos, ou um murmúrio. Procurei com o olhar.

E então pareceu-me ver. Ou imaginei, não sei. Era como se, de longe, um tigre azul me olhasse com infinita tristeza. Como se estivesse parado a olhar para mim. Fiquei em suspenso, a respiração parada, a olhar o olhar triste daquele que eu apenas adivinhava.

Senti que as lágrimas se soltavam dos meus olhos. Não sabia se estava a adivinhar uma separação, um amor impossível, se a percepção de que o perigo era um abismo do qual não poderia fugir.

Desviei o olhar, levei-o até ao rio que corria lá em baixo. A madrugada aproximava-se. Levantei-me. A capa de veludo estava húmida e eu gelada. O meu corpo tremia.




Coloquei a capa sobre os ombros. Olhei de novo. Por detrás de um arbusto, pareceu-me ver o tigre escondido, olhando-me. Tive vontade de me aproximar, saber se era mesmo, se era um sonho, se era loucura. Mas respeitei-o, respeitei o silêncio que senti que se desprendia do seu olhar inventado.

Quando comecei a andar, senti que os meus pés pisavam qualquer coisa. Baixei-me sem ver bem e tacteei o chão. Senti que eram talvez folhas, talvez pétalas lisas, macias. Apanhei-as, trouxe-as comigo. Pareceu-me que, de longe, o tigre azul me espiava, cúmplice.

Apressada, vim-me embora.

Cheguei há pouco a casa. A primeira coisa que fiz foi vir até aqui, acender a luz. Vim ver o que trazia nas mãos. E, então, comovida e trémula, vi que são rosas azuis, quase negras, muito belas, carregadas de noite. São rosas que tenho aqui comigo, perfumadas, macias como veludo. Não sei se foi milagre, se foi magia, não sei quem as pôs junto a mim. Não sei, não quero saber, não quero encontrar explicações para tudo o que acontece na minha vida. Sei apenas que me sinto estranhamente feliz e, talvez pela emoção tão incompreensível mas tão intensa, sinta que os meus olhos se estão a cobrir de lágrimas. E vejo agora que, numa das pétalas da mais bela de todas as rosas, brilha também uma lágrima. Uma lágrima azul.




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Dame Kiri Te Kanawa interpreta "Vocalise" de Rachmaninoff

Jorge Luis Borges também passou por aqui.

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Caso queiram experimentar o efeito da sauna, passando do calor para o frio, permitam que sugira que desçam até ao post seguinte onde um verdadeiro balde de água fria vos espera.

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Desejo-vos uma bela quarta-feira.

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