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segunda-feira, dezembro 27, 2021

Domingo de chuva com uma aula prática sobre como combater a neura e a ansiedade

 



Estive como se estivesse de férias. Choveu todo o santo dia, em especial de tarde. Pouco fiz. Tenho várias coisas para fazer esta semana mas a vontade é pouca. Vi o Dont't look up e vi a Emily in Paris. Estou anestesiada com a ligeireza em doses mais do que duplas.

Praticamente não vi televisão. Não ouvi a mensagem de António Costa mas, quando à hora de almoço ligámos a televisão, apareceu um ilustre desconhecido -- nem sei de que partido -- a criticar; mas o que dizia não fazia qualquer sentido. O meu marido disse que não estava para ouvir parvoíces (acho que não usou a palavra 'parvoíces') e que o melhor era desligar. E eu assim fiz. Portanto, estou fora.

Não sei porque é que as televisões insistem em dar palco a gente que não tem nada para dizer senão dizer mal. Gente assim é um veneno. E as televisões espalham veneno. Portanto, quanto menos se vê, melhor.

A meio da manhã fizemos a nossa caminhada à chuva, numa altura em que era apenas uma chuvinha. O urso peludo molhado e feliz. Gosto de levá-lo à trela. Vai de trela curta, alinhado, bem comportado. Quando ando assim com ele até crio a ilusão de que consigo controlá-lo e torná-lo bem comportado. O pior é quando tem aqueles picos de energia, especialmente em dias como os de hoje em que está maioritariamente dentro de casa, sem poder gastar energia. Mas, na caminhada, ia feliz embora pingando. Os jardins também pingando. Muitas casas têm decorações de natal no jardim. Mas as decorações de natal parecem tristes assim à chuva, nos dias escuros.

Esta pandemia é bem capaz de modificar a nossa maneira de ser. Se calhar acabaremos todos um bocado mais afastados uns dos outros. Mas não sei. Uma porcaria de um vírus, uma coiseca ruim, desalmada e descerebrada, dá conta da nossa vida. 

O ar que respiramos é a fonte dos contágios. Espaços fechados são ratoeiras. 

A civilização levou a que as empresas se concentrassem longe das zonas habitacionais, torres energeticamente eficientes, sem trocas de ar com o exterior para evitar que esfrie ou que aqueça e se gaste mais dinheiro a manter a temperatura ideal. Ratoeiras.

Levou a que o comércio se concentre em grandes superfícies em enormes espaços fechados em que todos respiram o ar de todos. Ratoeiras.

Claro que agora, com isto, algumas empresas, alguns espaços -- os mais conscientes, os mais endinheirados -- já adaptaram os seus sistemas de climatização, extraindo o ar respirado e injectando o ar do exterior. Mas basta que haja avarias ou que a manutenção não seja correcta para que o burro esteja nas couves. 

Não iremos voltar à saudável vida no campo pois a agricultura de subsistência é mantimento para umas famílias, não para comunidades.

A vida nas cidades é cara, há muitos transportes a pagar, muita despesa a fazer, e toda a gente quer comprar tudo a baixo custo. 

Em todo o lado as empresas, sejam de que ramo forem (excepto as que comercializam produtos de luxo ou as que se dedicam à ficção, às miragens, ou seja, aos unicórnios para enganar os pategos), defrontam-se com a impossibilidade de vender produtos ou serviços de qualidade pois quase ninguém os quer pagar, toda a gente quer saldos, borlas, fancaria. Podem ser produtos fabricados em lugares remotos em que se explora mão de obra infantil ou escrava, podem ser serviços em que se recorre a imigrantes que fazem qualquer coisa para sobreviverem ou a mão de obra desqualificada e precária. E não vale a pena apontar ao dedo ao vizinho do lado. Somos todos assim. 

Foi para isto que caminhámos.

Não sei se há pandemia que nos volte a colocar nos eixos. Creio que não. Agora é este corona, outro dia há-de ser outra porcaria qualquer, depois são os vendavais, as chuvas diluvianas, as temperaturas avassaladoras, incêndios descontrolados. 

Mas os humanos são mais burros que os mais descerebrados e invisíveis vírus: não aprendem nem por mais uma. Só se prendem com ninharias, só gostam de maledicência, são egoístas e parvos. 

Um dia ainda vem um asteroide, um pedregulho gigante ou uma coisa qualquer destravada do universo na nossa direcção e acontece uma coboiada como a que se pode ver no Don't look up: palhaçada atrás de palhaçada, cada uma mais incrível e parva que a outra, até que vamos todos desta para melhor.

...

E vou mas é acabar de escrever pois até parece que estou apocalíptica, a anunciar o fim do mundo -- todos com um big calhau na tola. 

Mas acho que não, isto é mesmo de ter estado o dia todo sem fazer nada, um dia escuro, sempre a chover. Tanta roupa que tenho para lavar. Mas lavar roupa com um tempo destes...? Como é que seca? E também me chateou que às quatro e tal da tarde já tive que acender a luz para conseguir ler, parecia quase de noite, um tempo da treta.

Agora lembro-me que se calhar também fiquei um bocado blue por ter visto no Emily in Paris um restaurante onde almocei há não tanto tempo quanto isso, um restaurante especial, e onde gostaria de voltar mas onde agora, com tudo isto que não se vê jeito de acabar tão cedo, não sei se voltarei.

Quando penso em Paria, agora penso em ir de carro, se calhar até com alguns dos meninos. Mas como metermo-nos a viajar com a porcaria do ar todo embruxado, tanta gente a bufar coronas pelas goelas e pelas ventas...? Gaita.

Bem. Passa das duas da matina. Vou-me deitar que esta segunda volta a ser dia de trabalho. As minhas short férias só duraram este domingo.


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Pinturas de Leonora Carrington ao som de River por Joni Mitchell

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Mas, para combater a ansiedade, a pancada, a neura ou a chatice nada de meter para dentro, nada de ficar a remoer, a repisar. Pelo contrário, o melhor é deitar cá para fora. Sobretudo, lutar contra isso. Mostro como -- e recomendo que o exercitem, de preferência se tiverem algum comentador televisivo pela frente.


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Estamos na última semana deste ano. Espero que, apesar de se inserir num dos anos mais estúpidos de todos os tempos, seja uma boa semana.

Saúde, peace and love e boa sorte. 

sexta-feira, outubro 01, 2021

A vida e o amor dos pouco normais

 



Quando deixei o ensino e entrei no mundo das empresas sofri um choque monumental. Vinha fresquinha da faculdade e do mundo civilizado e fui parar a um antro de velharias. Havia gente nos escritórios em número que me parecia irracional, trabalhavam de maneiras que me pareciam irracionais, falavam uma língua que, toda ela, me parecia irracional. 

Do terreno, de manhã cedo, chegavam resmas de papel com os 'apanhados' do dia e noite anterior. Os papéis eram distribuídos por aquela gente toda que os 'tratava' noutros mapas. Tudo manual. 

Para mim tudo aquilo era um pesadelo. O ambiente era óptimo, muita gente nova, mas os novos encaixavam naquela máquina trituradora a que os mais velhos se tinham fortemente apegado. Toda a gente a fazer 'mapas' à mão, quanto muito com a ajuda de máquinas de calcular. Os 'mapas' finais eram enviados para a dactilografia para seguirem em letra de forma para os escritórios centrais. 

Quando me viam mais aborrecida com aquele atraso de vida, diziam-me que era mesmo assim mas que, rapidamente, eu seria transferida para os escritórios centrais onde me esperava um daqueles desafios que aparece uma vez na vida, aquele para o qual tinha sido contratada. 

Nessa altura conheci pessoas incomuns. Uma das mais estranhas era o Doutor Figueiredo. Avisaram-me que era uma pessoa difícil, que não valia a pena contar muito com ele. Mas, para um determinado assunto, só ele me poderia elucidar. 

Fui ao gabinete dele. Era um homem estranho. Amorfo. Um vago sorriso. Praticamente não falava. Pedi que me explicasse o assunto. Fazias pausas longas e desconcertantes, falava de forma vaga, outras vezes entrava num pormenor tão exaustivo que se perdia a noção do que se estava a falar. Ao fim de horas, exausta, saí dali sem perceber qual era o problema dele.

Todos os dias a meio da manhã e a meio da tarde juntávamo-nos na copa e era uma risota, um mundo de histórias para comentar. Os mais novos animavam o grupo mas por lá passavam todos, incluindo os mais velhos. Quem nunca lá punha os pés era o Dr. Figueiredo. Chegava de manhã, estava fechado no seu gabinete até à hora do almoço, depois ia almoçar ao refeitório, sempre sozinho, regressava ao gabinete e saía sempre à mesma hora. 

Enquanto lá trabalhei, raramente o via. Ninguém falava dele. Penso que toda a gente se esquecia da sua existência. 

Anos depois, quando alguém me falava daquelas instalações da empresa, eu perguntava: 'Que é feito do Dr. Figueiredo?'. E a resposta era sempre a mesma: 'Lá está'. Mil reestruturações se faziam, mudanças, promoções, transferências. Toda a gente, de uma maneira ou de outra, toda a gente mudava. Excepto ele. Acho que se esqueciam da sua existência. 

No outro dia uma ex-colega ligou-me. Falámos de mil coisas e, às tantas, diz-me ela: 'O sogro do meu filho é que teve Covid. Ninguém sabe como ele a apanhou pois nunca sai de casa e não se dá com ninguém.' Depois lembrou-se: 'Se calhar, lembra-se dele. É o Dr. Figueiredo' Fiquei banzada. 'O Dr. Figueiredo? Mas casou-se? Teve filhos? Como foi isso possível?' Ela riu-se: 'Agora está viúvo. Mas a mulher ainda era pior que ele... Uma coisa mesmo estranha... Quer dizer... a gente acaba por se habituar àquilo... Mas tiveram uma filha. A minha nora. Uma rapariga inteligente, bem disposta. É professora.'. Eu estava pasmada: 'Não falava, não interagia. Como arranjou mulher?' Ela ria. Confirmou: 'Um mistério. Não fala, nisso está igual. Mas havia de vê-lo com os netos. Brinca, deixa-os arranjar o jardim com ele. Os miúdos gostam muito dele'. Disse-lhe: 'Nunca percebi como é que uma pessoa tão estranha foi capaz de tirar um curso'. Ela disse: 'Tirou. E lê muito. E, sabe lá, toca muito bem piano'.  Ainda fiquei mais espantada. 'É autista?'. Ela confirmou: 'Sim. Mas não há muito tempo que se sabe disso. Sempre passou por ter um feitio esquisito. Diziam que era autista mas era no gozo, sem saberem o que diziam. Afinal é mesmo.'.

Como a prima silenciosa do meu pai. Nunca falava. No verão, juntavam-se os primos no Algarve. Toda a gente falava, eu e os outros miúdos faríamos barulho, era uma animação. Grandes mesas com comida feita no fogão de lenha, uma alegria. E ela, sorrindo, muda. Cresci a pensar que ela não falava mesmo. Toda a família pensava que era atrasada. Foi mais tarde, quando teve cancro e esteve internada na Palhavã (como, na altura, se designava o IPO), que, indo a minha mãe lá visitá-la, ela a surpreendeu, falando. Afinal falava, afinal não era atrasada. A minha mãe disse que o que ela era, era autista e que nunca ninguém quis saber de procurar saber alguma coisa sobre o assunto. Achavam que ela era diferente, esquisita, e aceitaram isso sem querer aprofundar o assunto. Vivia fechada dentro dela própria. Mas sorria, um leve e ausente sorriso, ouvindo as conversas.

E uma coisa é certa: se tantas vezes não nos entendemos a nós próprios, se temos reacções que nos surpreendem, se tantas vezes não entendemos as voltas que a mente dos que nos são próximos dão, se o cérebro é ainda um território por descobrir, imagine-se a dificuldade em perceber os que preferem não comunicar. 

Claro que o autismo já não é hoje o mistério que era há uns anos. Mas, ainda assim, não deixa de ser difícil lidar de perto com quem não segue o padrão de comportamento dito normal, sendo, tantas vezes, emocionalmente inalcançável.

O vídeo abaixo, que muito vivamente recomendo, é emocionante, em especial nos momentos em casal. Há ali uma comovente fragilidade mas, ao mesmo tempo, uma extraordinária força. 

Que sabemos nós do que é ser ou não ser 'normal'? 

How Autism Feels, From the Inside


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Pinturas de Leonora Carrington ao som de Brightside pelos The Lumineers

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Desejo-vos uma sexta-feira à maneira. 
Tudo de bom. Dia de borga.
Peace and love.