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domingo, janeiro 28, 2018

A lua in heaven, a mantinha das tias, o livro de Emma, as árvores e as cinzas





Acabei O Livro de Emma Reyes. 
No final do livro, desvenda-se o pouco que Emma desvendou sobre as suas origens. Talvez tenha sido neta de Rafael Reyes, presidente da Colômbia entre 1904 e 1909. Foi abandonada (Emma não contou quem era o pai mas dizia que o tinha procurado uma vez mas que ele não quis voltar a vê-la) e deixada, na maior pobreza e abandono, aos cuidados de uma mulher que, poucos anos depois, também a abandonou, a ela e à irmã. Tendo sido encontradas abandonadas, foram então levadas para um convento onde viveu durante cerca de quinze anos num regime de absoluta clausura e exploração. Sofreu horrores. No entanto, apesar do sofrimento a que esteve sujeita e do analfabetismo em que vivia, soube conservar o brilho do seu espírito. Um dia, no fim da adolescência, fugiu. Andou de lugar em lugar, de país em país, até que encontrou o seu lugar no mundo. Tornou-se pintora, expôs, foi amiga de intelectuais. Casou duas vezes, a segunda das quais com o amor da sua vida. Viveu até 2003.
Como já referi anteriormente, o livro é extraordinário. São cartas nas quais contou a um amigo algumas memórias desse tempo. Deixou indicação de que apenas deveriam ser divulgadas depois da sua morte e as receitas que obtivesse deveriam ser entregues a um orfanato colombiano. O livro apenas foi publicado em 2012. Em Portugal, em 2017.

Apenas chegámos aqui, in heaven, depois de almoço. A casa fria, como sempre. Andámos a ver as árvores que deveriam ser ainda mais levantadas. A grande azinheira que está perto da casa e que adoro e que preservarei até ao limite da minha resistência, esteve outra vez no centro da polémica. Desbaste-se, levante-se mas eliminá-la é que não. E acabou por levar um belo desbaste.

Lá em baixo, os grandes cedros -- começam no chão e o mato cresce por baixo, enovelando-se nos ramos. Nunca quis que se desbastassem os cedros, acho que assim, afunilando em direcção ao céu e com as suas saias rastejantes e ondulantes é que ficam lindos. No entanto, o meu filho arranjou-nos, de novo, um documento sobre como preservar as zonas de floresta e está mais do que claro que deveremos minimizar as possibilidades de incêndio e, para tal, pôr de lado alguns dos meus puridos estéticos.

Portanto, alguns dos cedros já estão de perna ao léu. E ao cortarem-se as fartas ramagens de baixo, logo apareceram moitas compactas de tojo que se acobertavam sob as intimidades das belas e perfumadas saias rodadas das árvores.


Entretanto, o lusco-fusco baixou e o frio tornou-se mais cortante. Viémos para casa que também estava gelada. Agora já não, agora a sala já está quentinha. Na salamandra crepita um fogo viçoso. Tenho o computador no colo mas, entre ele e as pernas, tenho uma manta quentinha que, vejo na antiga etiqueta, é 100% mohair, escocesa, Glen Cree. Era de uma tia do meu marido de quem já, em tempos, aqui falei. A cadeira de palhinha, o aparador sobre o qual está a televisão, a escrivaninha e um candeeiro nesta sala em que estou também vieram de casa dela. No aparador, penduradas em camarões, estão as suas chávenas de chá e nas prateleiras está alguma da sua louça mais bonita.

No processo de separação dos seus bens, que foi tenebroso e do qual nem gosto de me lembrar, no meio da confusão que foi aquilo, ficámos com algumas coisas que trouxémos para esta casa. O meu marido não queria nada porque não gosta de ficar com reminiscências seja do que for. Mas ela sempre tinha dito que as suas coisas eram para distribuir pelos sobrinhos e, portanto, contra a vontade dele, lá passámos uns infindáveis fins de semana a mexer nas coisas que ela tanto estimou e que revelavam o que era o seu gosto, sóbrio mas refinado. E se o meu marido não queria móveis, muito menos queria roupas. Mas, à sua revelia, trouxe alguns lençóis finamente bordados, algumas toalhas muito bonitas e esta manta quentinha, com um pelo prensado e com um toque macio e quente. Não sei quantos anos terá esta manta. Se fosse viva, essa tia teria quase cem anos. Era a mais velha de quatro irmãos, solteira, e vivia com uma irmã mais nova e com o cunhado, ambos mortos antes dela. Viviam na casa dos pais, avós do meu marido. A balança que tenho no móvel da sala de jantar também veio de lá mas dessa lembrava-se o meu sogro de a ver em casa dos seus avós, que passou para os seus pais. Portanto, destas coisas nunca sei se fora aquisições das tias do meu marido, se dos avós ou bisavós. 


Um primo do meu marido, dificultou um pouco esse processo de separação das coisas. Muito extrovertido, algo histriónico, transformava aqueles fins de semana num circo. De cada vez que descobria alguma coisa mais insólita chamava toda a gente, fazia uma festa, especulava, falava muito alto, ria; por ele, passava o resto da tarde a lembrar-se de coisas ou a efabular. O meu marido via o tempo a passar e aquilo a nunca mais acabar e dava mostras de estar à ponto de explodir. O irmão, que é em tudo o oposto dele, por seu lado via cada papel ao pormenor, cada peça quase à lupa, um vagar entediante. Era capaz de estar uma tarde inteira só com uma gaveta. O meu primo tinha acabado de se separar mas a ex-mulher, grande amiga da tia e, na verdade, de todos nós a que mais a assistiu no fim dos seus dias, também lá estava. As picardias entre ambos, volta e meia degeneravam e o ambiente ficava ao rubro. A minha cunhada, que tem por hobby desfazer-se de tudo (já contei como o meu cunhado uma vez não sabia do fato de banho e, ao chegar à quinta, viu o jardineiro a regar o jardim aperaltado com o dito fato de banho, generosa oferta da minha cunhada) despejava as coisas de qualquer maneira, dividia as coisas sem preceito ou lógica, desirmanando conjuntos ou despejando para o lixo o que calhava. Eu tentava que ela, antes de despejar o conteúdo de gavetas ou carteiras, ao menos desse uma vista de olhos mas o meu marido, que espumava de impaciência, mal me deixava falar pois queria era pirar-se dali para fora a toda a velocidade. No meio daquilo, eu tentava manter-me mais ou menos neutra mas também já não conseguia suportar mais fins de semana fechada numa casa enorme, com estantes, móveis, gavetas, arcas, infindáveis bibelots e num ambiente em que imperava a irracionalidade pois uns pareciam querer estar lá até ao fim dos seus dias e outros não se importavam de deitar para o lixo o que tinham sido os tesouros de pessoas que toda a vida tinham acarinhado os seus pertences.

Por acaso, soube há dias que esse primo do meu marido teve uma inundação em casa e que os belos móveis das tias ficaram completamente danificados. Como se tinha separado e estava a construir uma casa, mobilando-a de raiz, ficou com a maior parte dos móveis e escolheu os mais bonitos. Essa sua escolha acabou por gerar algum mal estar mas ele esteve-se nas tintas e ficou mesmo com as melhores peças. Se, afinal, tudo se estragou, valeram bem todas aquelas trocas de palavras em torno disso...


Ao pensar naquelas duas tias de quem gostei bastante, ou do marido de uma, um cavalheiro que amava a sua biblioteca e que punha uma capinha de papel vegetal a proteger cada livro, e naquela casa que parecia uma arca do tesouro escondida num andar alto de um prédio numa das mais emblemáticas avenidas de Lisboa, ocorreu-me a surpresa que tive hoje. Quando cheguei ao pé do bidão onde fizemos no domingo passado uma queimada que durou horas e onde foram derretidos montes e montes de mato, disse que devíamos tirar a cinza lá de dentro para a espalhar na horta (que está viçosa de dar gosto!). Não sabia era como transportar tanta cinza. O meu marido destapou-o e perguntou: 'Qual tanta cinza?'. Espreitei. Para aí um palmo de cinza, se tanto. Fiquei perplexa. Tantas, tantas, tantas ramagens, tanto, tanto, tanto mato, montes e montes e tudo reduzido a nada. Extraordinário.

É esse o destino de tudo o que é vivo: ser nada. Por isso, que seja infinito enquanto dure porque o destino é apenas um: pó.

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Ilustro este post com fotografias que nada têm a ver com o que escrevi. A lua hoje esteve branca e rendilhada crescendo num céu muito azul e eu, encantada, andei a fotografá-la por entre as árvores.

E, para fazer companhia à lua, a voz surreal de uma menina que canta como se já tivesse vivido muitas vidas. Eu às vezes penso que também já vivi muitas vidas.


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terça-feira, janeiro 09, 2018

Memória por correspondência





O dia de férias in heaven durou até mais tarde do que devia pois, no regresso, encaixámos-lhe uma ida a casa dos meus pais e, para desespero do meu marido, ainda uma ida à Zara para ver se, nos saldos, arranjava algumas peças de vestuário para os miúdos. Contudo, tendo encontrado tudo já muito escolhido, a demora foi maior pois gosto de ser igualitária no que lhes dou. Ora, aquilo estava mesmo muito esgotado.  Encontrando algumas coisas para alguns, em especial para ela (há sempe mais coisas para meninas), para não ser desigual, tive que me empenhar muito, rebuscar tudo, uma e outra vez, para ver se não vinham três ou quatro coisas para ela e nenhuma ou uma ou duas coisas fraquitas para outros. O meu marido não percebe estes meus cuidados. Por ele, chegava lá, encontrávamos quatro ou cinco coisas aproveitáveis, pagava e estava feito. Se eram três coisas para ela, uma para um e outra para outro, ficando dois sem nada, não é coisa que lhe causasse apreensão ou que ficasse com necessidade de se explicar: era o que havia de jeito e ponto final. Mas eu não sou assim. Não faço isso.

Veio de lá meio furioso e o 'meio' está aqui apenas para aligeirar a prosa.

Acresce que, ao entrarmos na rua, que é estreita, estava um camião a descarregar nem sei o quê. Tivemos que ficar na fila de carros que se formou. E ele cada vez mais furioso. Depois perguntou-me o que era o jantar. Respondi que eu ia comer fruta. Ainda mais furioso ficou. Disse-lhe que lhe fazia o jantar que ele quisesse. 'O quê?', a voz passada. E eu: 'O que quiseres'. Furioso: 'Já percebi tudo'. Não percebi o que é que ele tinha percebido mas nem respondi. Eram dez da noite. Fui para a sala separar as roupas dos miúdos por sacos, juntando os talões de troca já que a jovem que estava na caixa não os agrafou a cada peça. Ele fez arroz e comeu com atum e salada. Eu comi um dióspiro e amêndoas. Tinha-me prevenido. Antes de entrar para a Zara, fui comer uma empada de galinha. Ele não quis. Disse depois que nunca imaginou que nos demorássemos tanto. Como se a culpa da dificuldade em arranjar roupa aproveitável no fim dos saldos para cinco crianças fosse minha.

Bem.

E estive a arrumar as sobras do fim de semana já que deixamos sempre o frigorífico desligado. Também estive a passar a ferro a blusa que vou vestir amanhã já que tenho uma reunião bem cedo, não tenho tempo para isso de manhã. 

Com este programa de festas, só consegui chegar à sala já tarde. E, tendo ido ver os mails, encontrei um que me deixou impressionadíssima. Fiquei um bocado sem nada fazer, como se nem fosse capaz de assimilar o que tinha lido. Li e reli e depois, a custo, emocionada, consegui responder. Mas respondi com a convicção que não estava a encontrar as palavras certas. Mas não sei se há palavras certas, seja para o que for, quanto mais para situações limites. 

E fiquei sem vontade para inventar motivos para escrever sobre outra coisa qualquer. Há alturas em que percebemos como as nossas palavras podem soar fúteis para quem, aí desse lado, se defronta com problemas verdadeiramente sérios.

Por isso, não levem a mal, mas hoje não vou desenvolver qualquer ideia. Estou sem ideias.


Comecei a ler um livro e estou a gostar muito. Não é ficção. São memórias de um tempo inenarrável na vida de uma mulher, quando criança. Memória por Correspondência, O Livro de Emma Reyes, Emma Reyes.

Vinha com ideia de escrever sobre o que tinha lido, talvez até transcrever um ou outro excerto. Contudo, agora não sei do livro. Mas não me apetece ir à procura. Até pode ter ficado no carro. Mas nem é isso. É que estou sem palavras. A vida por vezes tira o chão a algumas pessoas e eu, quando sei de algumas dessas situações, ficou tão impressionada que acho que as minhas fracas palavras não contêm a sabedoria ou a sensibilidade para poderem ser de préstimo para quem aqui vem procurar alguma companhia ou distração. O que sei é que a coragem de que se calhar todos somos capazes não sabendo disso antes de sermos postos à prova é uma coisa que me impressiona muito. Ou se calhar não é coragem, é resiliência. Não sei.


Do que entretanto já soube, a história de Emma Reyes é também a extraordinária história de uma mulher muito corajosa, uma mulher de uma fantástica resiliência. E, por isso, por uma curiosa coincidência, talvez não seja despropositado que, não tendo palavras ajustadas para o que estou a sentir depois do mail que recebi, aqui deixe referência ao livro de memórias por correspondência de uma mulher que teve uma infância muito estranha e muito difícil e que, através da escrita, encontrou a melhor forma de exorcizar a recordação desses seus tempos tão duros.

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Um dia feliz a todos quantos por aqui passarem.

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