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sexta-feira, maio 30, 2014

Sermão sobre a queda de Roma - dedicado a António José Seguro, Passos Coelho, Paulo Portas e todos os que acreditam que construíram edifícios eternos e que, com eles, querem eternizar-se.


Depois de, no post abaixo, ter deixado levar-me para caminhos onde apenas têm lugar o silêncio, a beleza, o voo livre, as palavras, a nudez dos corpos indomáveis e as almas sem dono, aqui agora, a conversa é outra. Ou talvez não.


Entremos na casa vazia





Escutai, vós que me sois queridos,

Roma foi tomada, e os vossos corações escandalizaram-se. 

Acreditavas que Roma não cairia. Não foi Roma construída por homens como tu? Desde quando julgas que os homens têm o poder de construir coisas eternas? O homem constrói sobre areia. Se quiseres segurar na mão o que ele construíu só seguras o vento. As tuas mãos estão vazias e o teu coração aflito. E se amas o mundo, perecerás com ele.





Ouve soluços abafados. Bem perto de si, encostada à balaustrada, uma jovem mulher ergue para ele os seus olhos velados de lágrimas. Começa por lhe l«lançar um olhar severo de pai zangado mas vê que ela lhe sorri estranhamente através das lágrimas e, precisamente antes de retomar a palavra, dirige-lhe um sinal de bênção e, é nesse sorriso que, vinte anos mais tarde, torna a pensar, estendido no chão de abside, enquanto uns clérigos de joelhos oram pela salvação da sua alma, da qual ninguém duvida.





Vós que me sois queridos,

Não vos perturbeis também com os ataques dos pagãos. Tantas cidades caíram que não eram cristãs, e os seus ídolos não puderam protegê-las. Mas, tu, é um ídolo de pedra que adoras? 



Roma caíu. Foi tomada, mas a terra e os céus nem por isso sofreram abalo. Olhai à vossa volta, vós que me sois queridos. Roma caíu, mas não é verdade que é como se nada se tivesse passado? O curso dos astros não está perturbado, a noite segue-se ao dia que se segue à noite, a cada instante o presente surge do nada e regressa ao nada, vós estais aí, diante de mim, e o mundo continua a caminhar para o seu fim mas não o atingiu ainda, e não sabemos quando o atingirá, porque Deus não nos revela tudo.

Os mundos passam, na verdade, um após outro, das trevas para as trevas, e a sua sucessão talvez não signifique nada.





Essa hipótese intolerável queima a alma de Agostinho, que solta um suspiro, jazendo no meio dos seus irmãos, e se esforça por se voltar para o Senhor, mas apenas revê o estranho sorriso húmido de lágrimas que em tempos lhe foi oferecido pela candura de uma jovem mulher desconhecida, para testemunhar diante dele o fim, e ao mesmo tempo as origens, porque se trata de um único e mesmo testemunho.







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"Talvez Roma não tenha perecido já que os Romanos não perecem"


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  • O texto é um conjunto de pequenos excertos do livro O Sermão sobre a Queda de Roma da autoria de Jérôme Ferrari numa tradução de Pedro Tamen.
  • A música é Empty House por Priscilla Ahn
  • As fotografias mostram Gisele Bündchen
  • As ruínas mostram Ayleid
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Relembro: desçam que o que se segue é bom e é para todos os gostos. Beleza sem a força da gravidade.

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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma boa sexta feira.

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sábado, maio 10, 2014

Nem sequer o amor que os ligava poderia salvá-los, visto que na ausência do mundo até o amor é impotente








À sua volta tudo é de um branco leitoso, não se distingue o chão, nem as paredes, e estas parecem flutuar como espectros na estranha bruma que em breve as engolirá e apagará.





Nós não sabemos de verdade o que são os mundos nem do que depende a sua existência. Algures no universo está acaso inscrita a lei misteriosa que preside à sua génese, ao seu crescimento e ao seu fim. Mas sabemos isto: para que surja um mundo novo, é preciso que, primeiro, morra um mundo antigo. E sabemos também que o intervalo que os separa pode ser infinitamente curto, ou pelo contrário tão longo que os homens têm de aprender durante dezenas de anos a viver na desolação para descobrirem infalivelmente que não são capazes e que no fim de contas não viveram.



Talvez possamos até reconhecer os sinais quase imperceptíveis que anunciam que acaba de desaparecer um mundo, não o silvo dos obuses por sobre as planícies esventradas do Norte, mas o ruído do obturador, que mal perturba a luz vibrante do Verão, a mão esguia e estragada de uma jovem mulher que fecha tudo suavemente, no meio da noite, uma porta sobre o que não deveria ter sido a sua vida, ou a vela quadrangular de um navio que sulca as águas azuis do Mediterrâneo, ao largo de Hipona, trazendo de Roma a inconcebível notícia de que ainda existem homens, mas já não o seu mundo.




Na insignificância das suas pobres presenças humanas quando o chão lhes fugia debaixo dos pés não lhes deixando já outra opção além da de flutuarem como espectros num espaço abstracto e infinito, sem saídas e sem direcções, do qual nem sequer o amor que os ligava poderia salvá-los, visto que na ausência do mundo até o amor é impotente.


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  • O que se lê são excertos do belíssimo livro O sermão sobre a queda de Roma de Jérôme Ferrari da Divina Comédia Editores numa tradução de Pedro Tamen. Este livro ganhou o Prémio Goncourt 2012

  • A música lá em cima é de Gabriel Fauré - Sicilienne, para violoncelo e piano, Op. 78

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Caso, depois disto, vos apeteça estragar tudo e ler sobre debilidades mentais, inconseguimentos fiscais em tempo de saídas apressadas, e sobre fácies que mostram bem a desgraça que lhes vai dentro, (des)aconselho o post seguinte.

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E, por agora, por aqui me fico. Desejo-vos, meus Caros Leitores, um belo sábado.

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