Poesia, por favor
João Villaret - Tabacaria de Fernando Pessoa
Depois de um sábado atribulado, eis que este domingo de tarde, por razões circunstanciais e imprevistas, fomos para os lados da Gulbenkian. Em boa hora.
Nem me lembrava da exposição do Fernando Pessoa mas o acaso tem destas felizes coincidências.
O dia estava todo ele uma ventania mas o vento quando sopra em sítios assim - sítios de um verde suave onde as crianças correm e gritam de alegria, sítios que são recantos a seguir a recantos, recantos em que a intimidade verde e fresca se acolhe, e regatos, lagos, patos e pombos, um alvoroço de sorrisos, arbustos floridos, plumas, imponentes árvores, uma subtileza permanente - em sítios assim, o vento é festa, é brincadeira, é vontade de abraços, de beijos dados às escondidas. E as pessoas festejam o lugar e a vida sem se importarem com o vendo ou, até, abençoando-o. E agora, ao ver esta fotografia, o que vejo é a quietude, a paz. O vento é apenas uma ideia que ficou dentro da minha cabeça.
Nos belos jardins da Gulbenkian tudo é, pois, perfeito e o vento não é senão música, dança, um sopro que nos conduz.
E, portanto, sem que eu tivesse disso ideia, o vento conduziu-me pelos jardins até que cheguei à Exposição Fernando Pessoa, Plural como o Universo.
Como transmitir-vos agora aqui o que senti naquelas salas escuras, em que a personalidade de Fernando Pessoa se desdobra em imagens, em poemas, em sons, em cores?
Pelos vários espaços e recantos, a tal intimidade que os recantos sempre nos reservam, e vozes que vão dizendo poemas ou, sem se perceber de onde vem uma outra voz quente e quase silenciosa dizendo poemas, poemas que se vão multiplicando, uma toada quase sem palavras, ou palavras soltas, palavras que nos vão soando mágicas, puras, muito puras.
E o ambiente é escuro, íntimo, variado. E o escuro é pontuado por elementos de uma luz azul, limpa, ou por uma luz amarela, quente, ou uma luz encarnada, vibrante.
E as pessoas, tal como eu, deslizávamos em silêncio, um silêncio perturbado, andando no meio dos vários eus e era a caligrafia de cada um, de Ricardo Reis, de Alberto Caeiro, de Álvaro de Campos e os eus continuam e é Bernardo Soares que depois escreve, e as vozes continuam, os recortes, a época, os jornais, os recantos, os poemas. E eu e as pessoas íamos deslizando, recortando-nos contra os painéis com os poemas e nem eu nem as outras pessoas éramos mais do que figuras recortadas, sombras andando no meio de palavras, silhuetas deslizando no meio das muitas palavras.

E o poeta que finge e o poeta sem amigos íntimos, o poeta que colhe flores e depois o homem, o homem que escreve cartas, que escreve, que escreve, que escreve, que fez das palavras a sua vida, o seu sentido de ser, e que precisou de ser muitos para poder dizer o muito que tinha para dizer, o guardador de rebanhos, o pastor que apascentava pensamentos, palavras, o engenheiro, o médico, o homem múltiplo, o homem antes do tempo, o homem grande, inteiro, o homem todo em cada coisa, o homem que pôs quanto foi no mínimo que fez.
E no fim ficou uma arca, uma arca de madeira lisa, uma bela madeira macia e dentro da arca havia milhares de papéis, milhares de palavras, de poemas, de frases, de lamentos. Dentro da arca havia fragmentos de vida, amores não ditos, sonhos por sonhar, palavras, tantas, ainda por dizer. E a arca lá está como arca sagrada num templo feito de palavras.
:::: algumas vozes, só algumas ::::
Alberto Caeiro,
O guardador de rebanhos:
O essencial é saber ver,
saber ver sem estar a pensar,
saber ver quando se vê
e nem pensar quando se vê,
nem ver quando se pensa.
Mas isso (tristes de nós que trazemos a alma vestida!),
isso exige um estudo profundo,
uma aprendizagem de
desaprender.
Bernardo Soares, Livro do Desassossego:
Criei-me eco e abismo, pensando.
Multipliquei-me
aprofundando-me.
De Álvaro de Campos:
Pertenço a um género de portugueses
que depois de estar a Índia descoberta
ficaram sem trabalho.
De Ricardo Reis:
Tenho mais almas que uma.
Há mais eus do que eu mesmo.
Existo todavia
indiferente a todos.
De Fernando Pessoa:
Não pertencer nem a mim!
Ir em frente, ir a segui
a ausência de ter um fim,
e da ânsia de o conseguir!
Viajar assim é viagem.
Mas faço-o sem ter de meu
mais que o sonho da passagem.
O resto é só terra e céu.
::::: Fernando Pessoa,
palavras ditas, palavras cantadas :::::
Poesia e música, por favor
Maria Bethânia declama poemas de Fernando Pessoa e canta o Doce Mistério da Vida
Música, de novo, por favor
Marisa interpreta Cavaleiro Monge, letra de Fernando Pessoa
Apontamento de ordem prática: por ser domingo a entrada foi gratuita. Percorrer os Jardins da Gulbenkian também não custa dinheiro. Afinal, vendo bem, há grandes prazeres que não custam dinheiro.
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Hoje, lá no meu Ginjal temos palavras que caminham em volta de Hélia Correia e de um gato (e tanto que Hélia Correia gosta de gatos) que tem um olhar orgulhoso. William Tell abre, por aquelas bandas, a semana que dedico a Rossini. Gostarei de vos saber por lá.
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E tenham, meus Caros, uma bela semana, a começar por esta segunda feira.