Mostrar mensagens com a etiqueta Anthony Hopkins. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Anthony Hopkins. Mostrar todas as mensagens

sexta-feira, abril 30, 2021

Um homem de 83 anos.
A demência. A normalidade.

 

Gosto das interpretações de Anthony Hopkins. Não conheço muitas mas as que tenho visto são superlativas. É um grande actor. Sendo contido é, no entanto, o máximo. E tem boa pinta e, estou em crer, é boa onda.

Tenho ideia que a grande bolada que me atingiu foi a sua interpretação n' O Silêncio dos Inocentes. Ainda não vi este, O Pai. Nem sei se o verei de bom grado. Talvez em casa, num dia em que esteja especialmente bem disposta. A demência assusta-me. Assusta-me muito e mais ainda se pensar que a pessoa pode ter consciência que está a caminhar inexoravelmente no sentido da perda das suas capacidades cognitivas. Deve ser aterrador. 

Quando a minha mãe esteve a recuperar de uma cirurgia, esteve numa residência assistida cujas condições, creio eu, são superiores às normais. Dir-se-ia um hotel de muitas estrelas com a vantagem de ter médico todos os dias e enfermeiros em permanência. Acontece que havia ali uma concentração considerável de pessoas com demência. Todas as que conheci nessas condições pareciam normalíssimas. Dir-se-ia o cenário de um filme: nada era exacatamente o que parecia. Uma seria sensivelmente da minha idade. Bem arranjada, bonita. Estava sentada a uma mesa com o que parecia ser o marido. Viu-me, sorriu-me, cumprimentou-me como se me conhecesse. Pensei que me conhecia e fiquei a pensar quem seria. Ela disse-me mais qualquer coisa e eu aproximei-me. Contudo, o que admiti ser o marido fez um gesto discreto que percebi que quereria dizer que eu não parasse, que não fizesse muito caso. Fiquei muito intrigada. Contou-me, depois, a minha mãe que era sempre assim, cumprimentava sempre com afabilidade toda a gente. E era mesmo o marido. Ia lá todos os dias para tomar as principais refeições com ela. Numa das vezes que a minha mãe tomou o pequeno almoço com ela, despejou o iogurte no guardanapo e comeu a partir do guardanapo. No fim, ia limpar a boca com o guardanapo e, não sei como, lá conseguiram trocar-lhe as voltas. Tudo com muitos bons modos, gestos de quem sabia estar à mesa. E contava a minha mãe que as proezas se sucediam. Sempre bem disposta, sorridente, amistosa, como se tudo estivesse normal com ela.

Havia uma outra que parecia uma diva de Hollywood mas do tempo do mudo. Uma pessoa com uma pose extraordinária. Aparecia vestida como se fosse para um cocktail chic de fim de tarde numa Embaixada. Casaco comprido de verão (isto passou-se no verão), belas e vistosas jóias, saltos altos, carteira a condizer, cabelo muito bem penteado. Não sei que idade teria mas era seguramente mais velha que a minha mãe. Se a minha mãe estava sentada nos sofás perto dos elevadores (e era onde estava quando estava à nossa espera), ela, ao passar por ali, vinda do seu quarto num dos pisos superiores, perguntava à minha mãe se tinha visto a mãe dela. A minha mãe respondia com naturalidade que não. E ela dizia: 'Ah, disse que vinha aqui ter comigo... Estranho... Vou ver se está ali...' e lá ia, com aquela atitude de grande diva.

A minha mãe contava-nos peripécias das suas 'vizinhas', coisas extraordinárias. Eu gostava de ouvir. Ouvia com um misto de curiosidade e de inquietação. A demência assume várias formas e frequentemente dissimula-se sob a ténue capa da 'normalidade'. Ao princípio a minha mãe assistia com alguma estranheza e muita benevolência e generosidade a todas essas demonstrações. Contudo, ao fim de algum tempo, começou a achar muito deprimente o convívio com a degenerescência. Se calhar, começou a recear que alguma vez lhe tocasse a ela. Felizmente, estava recuperada e pode voltar para casa.

Mas, voltando ao filme que trouxe o Oscar pra melhor actor deste ano a Anthony Hopkins, tenho mixed feelings em relação a vê-lo. Gosto de ver filmes com finais felizes e, quando a demência se instala, não há tal coisa. O final é sempre o corolário de um caminho cada vez mais curto, cada vez mais sombrio. Não sei se para a vida há finais felizes mas, enfim, queremos sempre sonhar com um fim que seja breve, pouco doloroso, em que possamos manter intacta a nossa dignidade e consciência. E, em casos como o deste filme, é tudo ao contrário disso: é um pesadelo. Um pesadelo às tantas mais para os que lhe são próximos do que para o próprio que, por fim, perde a consciência de si.

Anthony Hopkins - O pai


 A dança como celebração

(com Salma Hayek)


Oscar - o discurso da vitória


____________________________________________________________

A primeira fotografia é, obviamente, de Sir Anthony Hopkins. A segunda é Gloria Swanson.

________________________________________________________

Uma happy friday

terça-feira, dezembro 15, 2020

Devagar, despreocupadamente, caminhamos para o fim da luz, para o fim dos tempos?

 



Acho que o mundo está a entrar num caminho estreito. E não sei se, no fim desse caminho estreito, há uma saída.

Não é só isto da pandemia 

(embora também o seja, pois não podemos desvalorizar uma pandemia que faz colapsar a economia em todo o mundo e em que, ao fim de quase um ano, ainda permanece o mistério sobre como funciona este vírus, transmutando-se e escolhendo uns e não outros e matando uns e não outros), 

é também tudo o que aí vem com as alterações climáticas e, não menos grave, o que está por vir com a dependência total de tecnologias omnipresentes, ubíquas, baratas, ao alcance de todos... e não apenas desreguladas como impossíveis de regular.

Esta segunda-feira vários serviços da Google estiveram em baixo. O impacto que isto tem na vida de muita gente é incalculável. Claro que grande parte das pessoas nem pára para pensar que tem parte da sua vida alojada e processada em computadores longínquos, geridos por gente que ninguém sabe quem é... e que, ao não pagar um tostão por nada disso, dificilmente pode algum dia reclamar o que quer que seja. Mesmo que o queira fazer vai ter a maior dificuldade em saber a quem se dirigir e de que forma o poderia fazer.

E não estou a falar só de gmail, hangouts, blogger, youtube, etc, que, para muita gente não é apenas coisa lúdica mas sim profissional, social, familiar. Estou a falar também de uma miríade de equipamentos, dispositivos e toda a espécie de objectos que, sem nos apercebermos, estão ligados sabe-se lá onde. Um carro que recebe actualizações automáticas e que está permanentemente a ser localizado para poder ter o gps a funcionar ou para receber informações do trânsito, por exemplo. E nem falo dos telemóveis: ligados a tudo, apps a ferver ligadas a bancos, a fnacs e bertrands, a supermercados, a cartões de tudo e mais alguma coisa, a todo o lado. Falo de fábricas, falo da alimentação eléctrica das cidades, falo de painéis de sinalização de autoestradas, falo de tudo. Tudo automatizado, tudo ligado a tudo... e cada vez mais. A internet das coisas. Tudo automatizado, tudo com inteligência, tudo com algoritmos. Machine learning. Ah pois é. E tudo tem o seu inegável lado bom, óptimo. Mas está à mão de semear para quem o queira usar para o mal. E o pior é que não há como controlar. Por perversidade, por brincadeira, por pirraça, por dinheiro, por descaso... tudo está aí à disposição de quem queira fazer o que lhe apetecer como, por exemplo, deixar um país às escuras, fazer os carros irem uns de encontro aos outros, atirar com fábricas pelos ares. E não digo mais para não dar ideias.

Não falo apenas de ataques cibernéticos, dos hackers que entram onde não devem muitas vezes a soldo de Estados que praticam ingerência noutros Estados, não falo de espionagem industrial em larga escala, não falo em sabotagem cuidadosamente orquestrada. Não falo porque tudo isto é real, existe, é conhecido. Falo, sim, porque é o que mais preocupa, de quando as máquinas se programarem a elas próprias, de quando os humanos se tornarem redundantes face à fiabilidade dos algoritmos, falo de quando os sistemas ficarem descontrolados e os humanos, indefesos, isolados, sem saberem como sobreviver.

Claro que o Marcelo andar a meter-se onde não deve é uma chatice e um déjà-vu sem os quais passávamos bem, claro que o Marques Mendes ser a alcoviteira do regime é daquelas para as quais já não há paciência, claro que haver um populistazeco de meia tigela a subir nas sondagens e levado ao colo pelo PSD e pela comunicação social é uma daquelas chatices que corre o risco de vir a acabar mal, claro que o meu País ter um serviço onde se pratica a tortura e o desrespeito pela dignidade e pela vida humana é insuportável, inaceitável e, se isso acontece, alguma coisa de muito grave se passa e, mais do que apenas pedir a demissão do ministro, deve haver garantia de que coisas assim jamais poderão voltar a acontecer (exames psicológicos e rastreio de álcool e drogas aos agentes, vigilância dupla, não sei), claro que, nesta altura, os professores andarem a falar em greve pela reposição do tempo de serviço é deslocado e despropositado, claro que tudo isso e muito, muito mais é verdade. 

Mas a gravidade e a urgência do que está por vir é de uma outra magnitude, ultrapassa o circunstancial. 

O tsunami múltiplo de desaires que está à espreita é global (tal como esta pandemia é avassaladoramente global), incontrolável e com tudo para ser dramático, talvez de consequências irreversíveis. E para isso ninguém parece estar atento. E o pior é que, mesmo que, aos poucos, alguns comecem a estar atentos, não sei se se vai a tempo. E quando falo em 'alguns' não falo em mim ou nuns quantos cidadãos mais preocupados e mais informados que eu. Estarmos ou não estarmos atentos e apreensivos é igual ao litro, não dá em nada. 

Falo, sim, que deveria haver uma urgência política reconhecida como a grande prioridade do mundo, falo numa espécie de abalo colectivo de tipo 'pára tudo!' que leve os Estados a encarem de frente, muito a  sério, os riscos e darem ordem expressa para que todas as baterias lhes sejam apontadas. 

E mais do que isso: um travão às quatro rodas, repensar tudo, criar mecanismos de não dependência absoluta das tecnologias. 

Mas não sei se vamos a tempo. 

O tempo de reacção política é um tempo lento, feito de cautelosas diplomacias, de demoradas negociações, de concessões, de sucessivos nivelamentos por baixo. E o tempo da tecnologia é o oposto, é o tempo do imediato, o tempo de quem age por si, o tempo de quem tem todos os meios à disposição, a baixo custo, o tempo de quem age por gozo ou por malvadez ou por mercenarismo ou por ambição, sem freios. De um lado está a malta do sistema, os totós que se acham o máximo e que não vêem um palmo à frente do nariz querendo apenas zelar pelos interesses mais próximos. Do outro estão os serviços de inteligência, os bandidos, os jogadores, os aventureiros, os novos piratas, os que desconhecem as leis ou conceitos tão abstractos como o bem ou o mal. 

Não sei se vamos a tempo.

_________________________________________________

---------------------

E, assim sendo, com estas preocupações em mente e com um dia cheio de manobras para pôr uma máquina em movimento, pouca disponibilidade física e mental me sobrou para ficções ou ilusões.

Cirandei pelo jardim mas pouco, fotografei, tentei que a cor das flores animasse o dia tão cinzento, tão escuro (tal como agora o faço, incluindo-as para que o post não fique demasiado sombrio), observei pela janela, enquanto falava ao telefone, os pequenos pássaros, tão frágeis, aparentemente tão despreocupados. Ao fim do dia estive a ler Adélia Prado, uma lufada de ar fresco. A cada frase espanto-me, surpreendida pela graça, pela irreverência da escolha das palavras, pela leveza dos pensamentos que dançam tão inocentemente sobre assuntos tão íntimos. Gosto muito. Gostava de ser capaz de decorar para agora, aqui, sem consulta, vos contar sobre algumas passagens -- mas não sou capaz e, ao mesmo tempo, não o tento. Sempre achei que quem decora muito e sabe tudo dificilmente se deixa encantar pelo que, de novo, for descobrindo. Esforço-me por preservar a minha ignorância e desprendimento.

______________________________

Desejo-vos um dia feliz.
Saúde. Boa disposição.