Não vou falar daquele apertadinho que não sabe bem o que é isso de vinho e de mulheres. Como marrãozinho que quer fazer gracinha, falou do que não conhece. Pela carinha de quem comeu e não gostou ou de quem anda sempre com qualquer coisinha a tolher-lhe os movimentos, sempre lhe achei ar de quem não estava ali a trazer saúde às finanças da Europa. A pinókia e o seu láparo amestrado todos se derretiam mas eu, que sou boba, reconheci logo que aquele ali não é dos meus, àquele falta vida, falta cama desarrumada, falta escola de rua, falta tanta coisa. O homenzinho que levou uma corrida em osso nas eleições não aprendeu a lição e continua armado em coisa ruim, mostrando que, por dentro, é igual ao que é por fora: os neurónios todos enrodilhados.
Por isso, apenas lamentando que, na união europeia, os corredores do poder continuem abertos a bicheza de tão má raça, não vou dizer nada sobre o dito Dijsselbloem até porque por cá é o que não falta é gente que alinha pela mesma oratória, desde o cassândrico Oh Dr. Medina até à prima Teodora, passando pelo J.M. Fernandes, que até dá dó tanta indigência, e à desinfeliz Helena Matos que não dá uma para a caixa, e acabando no rebelde-populista escritor Meças de Carvalho (e o que me custa escrever isto; a sério que custa -- mas por todo o lado vejo afirmações dele que me deixam quase catatónica). Portanto, para que não venha algum holandês apontar-me o dedo à cara para que veja eu bem a tralha machista, azeda e fora de prazo que temos dentro de casa, deixo-me mas é ficar aqui muito caladinha.
Também podia falar do dinheiro russo que tem andado a ser lavado nos bancos alemães (e holandeses não...?) ou podia falar especificamente no Deutsche Bank, o brinquedo do mastim Schäuble, por onde parece que tem passado muito dinheirinho vivo que vai de pousio depois de ter sido colectado por gente que não se recomenda. Mas não falo nisso não vá o meu micro-ondas começar a ser usado pela Kelly Ann para me espiar para descobrir quem é que me passa a informação, ou para tirar a limpo se sei de fonte segura que, por ali (ali Deutsche Bank - atenção!), passou algum dinheiro que, na volta, ainda financiou a campanha de Trump.
(Todo o cuidado é pouco com gente paranóica. Do piorio.)
Finalmente, podia falar do romance entre o Diogo Morgado e a Joana de Verona mas não me arrisco. Primeiro, não sei quem ela é, segundo, não dá para perceber se, entre eles, apenas pintou ou se já rolou e, terceiro, aposto que Marcelo já os deve ter chamado a Belém para lhes dizer umas quantas verdades. Portanto, nem disso eu me atrevo a falar.
Um vazio, isto. Nada de que se consiga falar.
Só se for isto: fui comprar um livro para a minha mãe e, de caminho, noblesse oblige, trouxe um para mim, um que andava a namorar-me faz algum tempo. Cedi. Agora à noite, depois dos momentos poéticos e derivados, estava outra vez para me armar em intelectual mas, como agora sempre acontece, o meu intelecto diz que está bem abelha, prega-me uma rasteira e aí estou eu, de ko, a dormir o sono dos justos. Só agora é que voltei a acordar. Por isso, o Abel Barros Batista vai ter que esperar por mim. Mas eu acho que ele espera. E assim sucessivamente.
E, confiante nisso e noutras coisas, vou pregar para outra freguesia.
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Imagens da Casa Dior.
Natalia M.King diz que I Need To See You. Ela lá sabe.
Depois da Madame Cristas da Coxa Grossa ter surpreendido Passos Coelho com uma aparatosa chicuelina, antecipando-se à decisão laranja e avançando elle-même para a lide autárquica na capital,
e depois do Láparo ter andado em estado de estupor catatónico sem saber o que fazer, convidando estrelas da televisão ou do futebol que, uma a uma, lhe foram dizendo que fosse dar banho ao cão (ouvi Lobo Xavier, pessoa sempre muito bem informada, dizer, com ar condoído, que foram 24 os convites, 24 as negas. Duas dúzias de tampas nas fuças do láparo. É obra),
eis que a ressabiada criatura tira uma coelha da cartola, deixando enfurecidos os aparelhísticos correlegionários que juram fazer o ajuste de contas na noite eleitoral.
Madame Teresa Leal ao Coelho, Coelha de vasta folha de serviço e pernão tão garboso quanto o do partido adversário, vai ser a estrela da luta na lama que se antecipa. As eleições autárquicas em Lisboa são, pois, o palco em que as sex bombs vão degladiar-se.
Sabendo-se como a Assunção é permeável ao louvor via sms e que as mensagens redobram de entusiasmo quanto mais ela pisa o risco e solta a franga que há dentro dela, é de supor que os insultos à Madama do pernão laranja e pescoço gordo não vão fazer-se esperar.
E a Madama do pescoço gordo, que se enrola em echarpes para tapar o colo enquanto destapa o pernão, vai, certamente primar pelo contraste, vai armar-se em fina -- Madama Embaixatrix, noblesse oblige --, vai fazer de tudo para achincalhar a outra, coitada da Assunção que assina de cruz, tadinha dela, aproveitando para mostrar ao chefe que não descansará enquanto não vingar a afronta que a outra lhe fez. E, acima de tudo, ela quer que o láparo saiba que ela o tem sempre junto ao coração.
(E tão bem fornecida é de afectos que, como a imagem mostra, o leal coração até se lhe alastrou para a poitrine do lado).
E, no meio destas tricas todas, o povão que gosta é de ver ao que isto chegou pelas bandas dos PàFs, vai ficar à espera. Já se fazem apostas e a Madame Teresa Guilherme já esfrega as mãos de contente não podendo esperar para relatar, em directo, os puxões de cabelo e os apalpões mais indecentes entre aquelas duas.
Antecipa-se também que Rentes de Carvalho dará entrevistas a todos os jornais dizendo que, se votasse em Lisboa, votaria numa das três só para mostrar que não acredita na política e que, se pudesse mesmo, votaria era na própria lama.
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Está na hora de começarem os combates.
Da minha parte só posso garantir uma coisa: distanciamento para poder comentar com isenção os movimentos mais arrojados.
Falo, não falo? Falo, não falo? Não é por vezes o silêncio mil vezes mais ajuizado do que as palavras?
Não sei eu que sim?
Porquê, então, esta vontade de falar sobre o que talvez mereça silêncio?
Não sei.
Ainda por cima...
No fim de semana, ao andar junto ao rio, no meio da ventania, as lágrimas começaram a correr-me. Pensei que era apenas do vento. Depois comecei a ficar também com pingo no nariz. No domingo à noite sentia-me como se estivesse com alergia. Ora, nunca fui de alergias. Mas tomei um anti-histamínico. Pois, pois, Para mim é como se fosse um 'boa-noite cinderela'. O sacrifício que fiz para me manter acordada durante o dia... Vim para casa mais cedo. Cheguei a casa deviam ser umas sete da tarde, talvez um pouco depois. Mal me sentei no sofá, senti uma pancada de sono. Passado um bocado, acordei com um estrondo. Era o computador no chão. Lá acordei. Escrevi, então, sobre a sexy Betty Boop de carne e osso.
Agora estou de novo com o computador ao colo. Continuo com sintomas. Agora tenho o nariz entupido, outra première. Disseram-me que as alergias estão a aumentar exponencialmente. Muita árvore. Talvez o pólen. Ou terei apanhado frio e talvez isto seja apenas um resfriado. Não interessa. Ao jantar, a ver se me ponho normal, tomei outro anti-histamínico. Diz que é dos que não dão sono. Mas a mim até o ben-u-ron me põe KO. Por isso, quero escrever mas tropeço nas palavras, a cada espaço quase adormeço.
Na televisão, na RTP 1, um documentário sobre Malala. Agora discursa. Um discurso veemente, corajoso. É uma jovem com uma clarividência extraordinária. O pai a ouvi-la, orgulhoso. Comovo-me. Comovo-me. Ou talvez já estivesse comovida.
Por isso, porque hei-de eu agora falar de coisas que estão num outro patamar, cá mais para baixo, ainda por cima estando eu a precisar é de um chá quente e cama?
Mas, enfim, pode alguém ser quem não é?
Portanto, com vossa licença, vou falar de coisas que não entendo. Não entendo e não me agradam -- embora, em abono da verdade se diga, são coisas com as quais nada tenho a ver. É mais por uma questão de higiene pública. Parece que são coisas que contagiam, que poluem o ar.
Não sei explicar. Às vezes sinto que me faltam conhecimentos para poder entender melhor o que sinto. Depois, pensando melhor, acho que mais vale manter-me na ignorância.
Ora, então, sem mais delongas e sem ordem especial.
1. Leio que parece que Cristiano Ronaldo vai ser outra vez pai, desta vez de gémeos e, também ao que parece, de novo, de uma barrriga de aluguer.
Incomoda-me, isto. Acho uma aberração. Sempre com tantas namoradas e nenhuma lhe serve para mãe dos filhos? E que presunção ou aberração é esta de ter um filho desta maneira, como quem encomenda um carro de marca, como quem manda fazer um fato à medida?
Pensar numa opção destas por parte de um rapaz saudável e podre de rico é coisa que me revolve as entranhas. Parece-me uma forma extrema de desumanização. Pensar que miúdos de todo o mundo o tomam por exemplo e que ele faz isto arrepia-me.
2. Leio que abriu em Barcelona um bordel com bonecas sexuais. O que leio deixa-me estupefacta. A maneira como elas estão vestidas, a decoração, o ambiente. Até taças com morangos. Como se fosse um encontro com gente de verdade. Parece anedota. Oitenta euros por uma hora, preço de abertura. Depois sobe para cento e vinte. Depois de cada utilização, as bonecas são lavadas, desinfectadas. Leio que, não tarda, teremos os robots. Já falei deles, bonecas que falam, que sentem, que agem em função do 'clima', que reagem à química. Um nicho de mercado, dizem uns; um pesadelo, penso eu.
E, uma vez mais, o que sinto é o frio de uma desumanização que parece estar a invadir o mundo que habitamos. Nem consigo falar muito mais sobre isto. O que leva um homem (presumo que apenas homens frequentem tal lugar) a pagar para partilhar uma hora do seu tempo com uma boneca?
Que vertigem é esta a caminho da desmaterialização humana?
3. Rentes de Carvalho publicou um texto e deu pelo menos uma entrevista a uma rádio na qual anuncia que vai votar em Wilders, uma daquelas aberrações populistas que andam a minar as fundações da democracia.
No seu blog, dá uma trôpega justificação que eu leio com dificuldade. Custa-me assistir a uma coisa destas.
Mas, infelizmente, não é o único. Um pouco por todo o mundo dito desenvolvido, nas eleições as pessoas estão a escolher os mais impreparados, os mais irracionais, os mais perigosos e que, em comum, têm uma coisa -- dizem o que o cidadão mal informado gosta de ouvir. E que gente ignorante faça escolhas contra-producentes eu ainda consigo admitir: não sabem o que estão a fazer, não sabem que estão a enfiar-se na boca do lobo. Agora que uma pessoa como Rentes de Carvalho o faça deixa-me muito incomodada. Muito. Não desiludida que isso o fiquei quando soube que estava a escrever crónicas para o Correio da Manhã e quando, para minha estupefacção, vi que adaptava o estilo e escolhia os assuntos à medida dos leitores de tal pasquim.
O mundo deve estar a girar ao contrário e provavelmente caminhamos para o fim dos tempos, fazendo-nos pequenos, ínfimos, comprimindo as nossas mentes, destruindo as nossas almas, até cabermos todos naquele pequeno nada que um dia, faz muitos anos, explodiu.
4. No meio disto, e depois do que já aqui escrevi, ler que Kellyanne Conway -- a loura burra que anda por cima dos sofás da Sala Oval a tirar fotografias aos convidados do Presidente -- diz que este pode ter sido espiado pelo micro-ondas até quase me parece uma coisa normal.
E, se não é uma coisa normal, é uma coisa alternativa que, por estes dias, são coisas que quase se equivalem. Este é, de facto, um mundo apalhaçado que destrói a esperança de quem preferia acreditar nos altos desígnios da espécie humana.
5. E que, no fim do prazo estendido para concluirem um processo de acusação que dura há séculos, tenham ouvido Sócrates (apenas!) pela terceira vez e que, face à suruba que para ali está armada, suspeitos para todos os gostos e, ao que parece, já para cima de 20 (vinte!), digam que provavelmente não vão conseguir cumprir mais um prazo também já quase me parece uma coisa normal. Desde o princípio que aquela gente funciona em série e não em paralelo. Far-lhes-ia bem ter umas lições de teoria dos grafos, por exemplo. Assim, mais parecem aqueles lelés desnorteados que vão enleando as lãs, os fios todos ensarilhados uns nos outros e, às tantas, já nem distinguem as causas das consequências, nem que coisa é o ovo, que coisa é a galinha e que coisa são os macaquinhos que se infiltraram no sótão. Digo eu.
Por isso, para dizer a verdade, o que verdadeiramente me surpreende já não é isso. A isso já eu estou acostumada.
O que me surpreende é outra coisa: ao fim de mais de seis horas de interrogatório, depois de anos de perseguição, prisão, escutas, destruição de uma vida normal, ainda nos aparece ele, fresco, o tal animal feroz pronto para a luta, verbo afiado, cabeça erguida, a dar o peito às balas. Eu estaria de rastos, de gatas, exausta, meia morta, com fome, com sede, com vontade de ir à casa de banho, com vontade de me meter debaixo de um chuveiro, com vontade de me atirar para cima de um sofá, sem energia, sem palavras. E ele ali, lúcido e fresco daquela maneira. Isso é que me espanta.
Diz que as acusações são estapafúrdias, que não recebeu dinheiro nenhum, que nem sequer beneficiou aqueles de que dizem que o corromperam, e que ao longo do interrogatório continuaram a não apresentar provas, a não apontar factos. E ele, ali, ainda combativo, ar satisfeito de quem assistiu na plateia à confusão de quem o quer apanhar.
Acredite-se ou não nele, tal resiliência é de se lhe tirar o chapéu. E acredite-se ou não nele, uma coisa é certa: esta nossa Justiça actua de forma miserável, sem respeito pelos cidadãos. Marcelo diz que se sente desconfortável. Desconfortável é pouco. Tem que se sentir agoniado, revoltado. Tem que tentar fazer alguma coisa que isto assim é de susto. Um pobre coitado que caia nas malhas da justiça, está feito, está desgraçado.
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Pronto. Calo-me já. Até parece que, com toda esta conversa, me passou o sono. Só visto.
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E para não darem a visita por perdida, uma coisa que vale a pena.
De novo, Khatia Buniatishvili, desta vez com uma valsa de Chopin.
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Caso queiram continuar na companhia da Betty Boop de carne e osso, a virtuosa pianista sexy, é só descerem um pouco mais.
Depois de poemas que me tiram do sério, coisa a meio caminho da anedota ou do desalento, conforme o caso, ficou a apetecer-me falar de prosa. Prosa prosuda. E vem isto de que o António Guerreiro, crítico literário que eu respeito e aprecio, inteligente, de uma lucidez tantas vezes cortante, deu uma desanda pouco meiga no último livro do Patrão da Barca, J. Rentes de Carvalho de seu nome, autor do dito O Meças.
Pois não vou tirar teimas nem meter-me por aí que a minha sapiência é pouca para tão altas cavalarias e, ademais, ainda não li o livro.
O que posso dizer é que, se calhar porque a idade anda a dar cabo da minha bondade ou paciência, já não são muitos os livros-romances que me prendem do princípio ao fim sem que a vontade de saltar o muro apareça para me tentar. Ou é a história que me soa frouxa ou é a escrita que me parece não ter a tessitura da verdadeira literatura. Ou, se calhar, sou eu que me estou a tornar de má boca (literária).
Guto Stresser
Dantes devorava livros como quem devora pãezinhos quentes pela manhã, presa ao enredo, enlevada pela fraseologia, pela semântica, pelo trabalho bem acabado, sem alinhavos à vista (como o ALA gosta de dizer nas entrevistas). Agora, que perdi a inocência dos verdes anos, minha nossa, quase tudo me parece pão de véspera, culinária de brincadeirinha. Muita gente metida a escritora, muitas vacas sagradas, muito ungimento. E, eu, cansada, olho para a obra e não lhes sinto a mão, parece que não detecto arte ou aquele je ne sais quoi que faz a diferença. Escritores portugueses dos que ainda escrevem, então, poucos, poucos.
Emiliano di Cavalcanti
Ultimamente, para aí nos últimos meses, que me lembre, de romances encantei-me com alguns mas não de cá. John Williams com o Stoner e o Butcher's Crossing, Jean Giono com O Grande Rebanho. Veja-se bem o que recuei. Também Mathias Énard com o Fala-lhes de Batalhas, de Reis e de Elefantes, este recente.
Como tenho dito, agora prefiro ensaios, cartas, diários, entrevistas, apontamentos. Parece que a escrita me soa mais genuína, que se alcança melhor a alma (mas não me perguntem: a alma de quem?) e a arte de escrever parece estar mais limpa.
Quanto aos críticos a coisa também está desengraçada: muita cagança, muita cátedra e pouca vida. Ou sou eu que não os acompanho devidamente. Dantes lia o Rogério Casanova mas tornou-se tão egocêntrico que, em vez de falar dos livros, só falava dele próprio. Gostava de ler a Ana Cristina Leonardo ou o Pedro Mexia mas como deixei de ler o Expresso agora não sei como estão. Aliás, a ela já quase lhe tinham tirado o pio, o que lamentei. O José Mário Silva não apreciava, nunca vi ali verdadeiro rasgo. O Eduardo Pitta escreve em jornais que não leio, nem sei como são agora as suas críticas. Aliás, também já não compro a Ler. Aquilo já não me interessava. E o António Guerreiro escreve no Público e eu não raramente leio o Público. É o que digo: ando arisca, um dia destes hiberno, fujo do que as outras pessoas gostam, deixo de saber de que falam quando falam da actualidade.
Mas o que estou a dizer não tem a ver com o tema: como disse, sobre a contenda referida que fale quem leu o livro que eu cá não gosto de falar de cor nem sou de clubes ou religiões e, por isso, não vou dizer se o António Guerreiro se passou e embarcou nas suas próprias palavras ou se o Mestre da Barca desta vez não chegou a bom porto.
Seja como for, não gosto de ver violência nas palavras, especialmente quando dirigida a trabalho honesto. Que eu seja virulenta quando falo do láparo parece-me compreensível pois acho que o Passos Coelho deu cabo da vida de parte da população portuguesa e comprometeu muito do futuro do país; mas já me parece desajustado que se invista com agressividade e pouca elegância contra quem se afadiga a escrever, fazendo-o de gosto e não devendo nada a ninguém.
Emiliano di Cavalcanti
Mas, porque não li o livro, avanço na conversa e, se me permitem, desloco-me de novo para territórios mais gerais.
E uma coisa vos digo: por vezes tenho saudades de quando pegava num daqueles brasileiros que me prendiam a atenção da primeira à última palavra. Tenho ali uma estante com umas prateleiras deles. Era eu pequenina e um dos meus tios solteiros, que era todo dado às literaturas, andava a ler 'Olhai os lírios do campo'. Andava entusiasmado, falava muito no livro. Mais tarde, eu já adolescente, foi um dos que li. Mas não sei porquê, talvez porque já vinha com a cabeça feita, o livro não me trouxe uma grande novidade. Mas li outros dele e do Jorge Amado, do Guimarães Rosa, do Gilberto Freyre, do José Lins do Rego -- traziam-me mundos de longe, vozes cantadas, expressões muito de gente humilde ou transbordando vida, uma sensualidade que nascia da intimidade entre as pessoas e a terra ou o mar. Eu vivia imersa naquele mundo enquanto lia.
Não sei como seria se hoje voltasse a pegar naqueles primeiros livros. Talvez já os achasse coisa pouca. Não sei. Se calhar não, se calhar mantinha-se a sensação de estar a olhar para uma imensa catedral feita de palavras.
Mais tarde vieram Rachel de Queiroz, Lygia Fagundes Telles e o deslumbramento da Clarice Lispector. E a pujança de João Ubaldo Ribeiro. E a salgada, viril e vadia carne de Rubem Fonseca.
E não foram só os brasileiros que me abriram a porta para outros mundos.
Os russos. Ainda hoje tenho presente os dilemas terríveis de O Jogador e a escrita sublime que me consumia as entranhas. Ou os contos do Allan Poe que me arrepiavam, irresistíveis e medonhos. Ou Hemingway que me levava pelos montes, pelos mares, que me tomava nos braços com a paixão com que uma virgem deve ser abraçada. Ou Erich Maria Remarque que me conduzia através da guerra, que me dava a conhecer outros amores, outros horrores. Eu lia e outros mundos vinham até mim.
Inimá de Paula
Agora é raro. Por exemplo, gosto dos corpos suados e da linguagem popular e cubana de Pedro Juan Gutierrez mas a emoção dos primeiros não existiu ao ler o último livro que por cá se publicou. Mas acredito que é capaz de ser meu, o mal.
Geralmente agora o que é posto à minha disposição parece-me fraca história, servida por uma prosa deslavada ou presunçosa. Muitas vezes penso: estarei a tornar-me preconceituosa? Ou apenas mais velha? Será que daqui por uns anos só sou capaz de ler aforismos ou haikus? Quiçá, até, páginas em branco?
Mesmo a Ferrante. Escreve bem, claro. E a história vai, anda, é boa escrita. Mas se me atrai, página atrás de página, ou se me detenho a degustar a elegância da frase, a criatividade da composição? Não. Parece que falta ali oxigénio. Por isso fiquei-me por dois livros. Pode ser que um dia compre os dois últimos. Mas não agora. Cansei-me daquela densidade à qual me parece faltar algum fulgor.
Estava a passear pela internet e vi, na Revista Bula, uma selecção feita depois dos leitores e colaboradores terem escolhido os melhores inícios de livros brasileiros. As escolhas são o que são e sei lá se são os melhores ou se andam, sequer, por lá perto. É tudo tão subjectivo, Mas gostei de ler. Transcrevo apenas alguns.
Tarsila do Amaral
A Lua Vem da Ásia, Campos de Carvalho
Aos 16 anos matei meu professor de lógica. Invocando a legítima defesa — e qual defesa seria mais legítima? — logrei ser absolvido por cinco votos a dois, e fui morar sob uma ponte do Sena, embora nunca tenha estado em Paris. Deixei crescer a barba em pensamento, comprei um par de óculos para míope, e passava as noites espiando o céu estrelado, um cigarro entre os dedos. Chamava-me então Adilson, mas logo mudei para Heitor, depois Ruy Barbo, depois finalmente Astrogildo, que é como me chamo ainda hoje, quando me chamo.
Tarsila do Amaral
O Jardim do Diabo, Luis Fernando Verissimo
Me chame de Ismael e eu não atenderei. Meu nome é Estevão, ou coisa parecida. Como todos os homens, sou oitenta por cento água salgada, mas já desisti de puxar destas profundezas qualquer grande besta simbólica. Como a própria baleia, vivo de pequenos peixes da superfície, que pouco significam mas alimentam. Você talvez tenha visto alguns dos meus livros nas bancas. Todo homem, depois dos quarenta, abdica das suas fomes, salvo a que o mantém vivo. São aqueles livros mal impressos em papel jornal, com capas coloridas em que uma mulher com grandes peitos de fora está sempre prestes a sofrer uma desgraça.
Tarsila do Amaral
(auto-retrato)
Dom Casmurro, Machado de Assis
Uma noite destas, vindo da cidade para o Engenho Novo, encontrei no trem da Central um rapaz aqui do bairro, que eu conheço de vista e de chapéu. Cumprimentou-me, sentou-se ao pé de mim, falou da Lua e dos ministros, e acabou recitando-me versos. A viagem era curta, e os versos pode ser que não fossem inteiramente maus. Sucedeu, porém, que, como eu estava cansado, fechei os olhos três ou quatro vezes; tanto bastou para que ele interrompesse a leitura e metesse os versos no bolso.
Tarsila do Amaral
O Ventre, Carlos Heitor Cony
Positivamente, meu irmão foi acima de tudo um torturado. Sua tortura seria interessante se eu a explorasse com critério — mas jamais me preocupei com problemas do espírito. Belo para mim é um bife com batatas fritas ou um par de coxas macias. Não sou lido tampouco. A única atração que tive por livro limitou-se à ilustração de um tratado de educação sexual que o vigário do Lins fez o pai comprar para nosso espiritual proveito. Só creio naquilo que possa ser atingido pelo meu cuspe. O resto é cristianismo e pobreza de espírito.
Tarsila do Amaral
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Grupo Corpo - Parabelo
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Lá em cima era Antonella Ruggiero interpretando "Kyrie" (Missa Luba)
As imagens não têm nada a ver mas, uma vez que falei bastante de brasileiros, apeteceu-me ter aqui pintores também brasileiros.
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E, por agora, por aqui me fico.
Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma sexta-feira muito feliz.
Caminhava rente às margens do Minho, e mais logo já vos mostrarei como tem razão o Leitor que, em comentário lá mais para baixo, diz que, por esta altura, o Minho em geral ganuha umas tonalidades tão suaves e fica com um ar tão puro que até é um crime não ir lá no inverno.
Ouvia cânticos religiosos, uma Ave Maria e outros, e, de vez em quando, uma voz feminina isolava-se e era só a sua voz que se ouvia, e tudo aquilo parecia impossível, o rio belíssimo, os pássaros, só nós dois, e aqueles cantares como se descessem dos céus para banhar aquele momento perfeito.
Mais tarde ouviu-se o que pareceu ser a voz de um padre e percebemos que deveria ser alguma missa transmitida para toda a vila ou talvez estivessem a cantar as janeiras. Não sei. O que sei é que pensei que jamais poderia descrever o que se estava ali a passar. Ninguém, ninguém por ali. As margens do rio, lindas, e, não sabemos de onde, cantares como que entoadas por anjos.
Até que, de uma das margens de um estreito braço do rio, naquele lugar chamado Lovelhe perto de uma praia chamada Praia da Lenta, reparei num arco verde, parecia-me que com florzinhas, não percebi bem. Quando passei para o outro lado, aproximei-me, espreitei, fotografei.
Trepadeiras envolviam o arco e as trepadeiras estavam floridas. E, no chão, vasinhos, pequenos arranjos de flores, pedras e pedrinha mais pequeninass, pequenos seixos coloridos, caixinhas com florzinhas, uma pequena candeia.
Presas no arco outra pequena candeia, e mais bonequinhos, passarinhos a fingir, uma coisa amorosa que ali, num lugar daqueles, no meio da natureza, parecia quase inquietante.
Em cima, um nome, Carla, e uma data, 24-07-2011. Mais à frente descobri um senhor que apanhava couves, a única presença humana para além de nós dois. Dirigi-me a ele e perguntei o que era aquilo. Levantou-se para me falar e explicou-me:
Há uns anos, numa madrugada, um carro com dois casais de jovens embateu num poste -- e apontou um poste envolto em ramos de flores:
e a rapariga que ia a conduzir não conseguiu segurar o carro, despistou-se e, com tamanha falta de sorte, aqui que há árvores a toda a volta, passou pelo meio delas, e foi entrar no rio. Um rapaz e uma rapariga morreram, afogaram-se, a rapariga que ia a conduzir e outro rapaz salvaram-se. E desde aí, todos os meses, alguém vem aqui pôr flores e juntar coisas, o que vê.
Sorria enquanto me contava isto mas era um sorriso triste, quase de perplexidade inquieta. Eu, nestas alturas, quando fico perturbada, disfarço a perturbação com perguntas práticas, despropositadas. É involuntário e acontece sempre. E, portanto, sem querer, perguntei: Mas o rio aqui deve ser baixo, como aconteceu isso, afogarem-se? Esclareceu-me que não, que o rio aqui não é nada baixo, que é até muito fundo, que é perigoso.
Afastei-me, inquieta. Deve ser terrível, uma coisa mesmo terrível, estar num automóvel com outras pessoas, sofrer um acidente deste tipo, assustador, o carro virado dentro de água, noite escura, que aflição medonha; e, depois, saber que alguns dos que lá estavam morreram. Para quem ia a conduzir, então, deve ser um pesadelo, um inferno. Presumo que só com forte acompanhamento psicológico se sobreviva a um peso esmagador como este, se consiga ir em frente.
Fui agora à procura da notícia. Encontrei-a. Ao ouvir o senhor a contar-me, e ao ler agora a notícia, ocorreu-me que deve ser a rapariga que ia a conduzir e que sobreviveu que ali vai relembrar os que perderam a vida nessa noite terrível. Mas não sei dado que há ali uma placa com um único nome. Pode ser a mãe ou o namorado da rapariga espanhola que morreu, Carla. Seja quem for, fá-lo com um carinho imenso, parece querer fazer agradinhos à pessoa que um dia amou e que ainda vive no seu coração. Mês após mês, e já lá vão quase cinco anos, vai deixar lembrancinhas para quem perdeu naquele lugar tão belo mas tão perigoso. É muito triste, muito comovente
Hesitei em mostrar as fotografias e em falar disto: foi um acidente trágico e na ternura de quem vai ali deixar aqueles pequenos objectos parece haver uma dor funda, muito íntima. Mas, uma vez que está ali à vista, num lugar público, de passagem, e como a notícia veio nos jornais, resolvi superar a minha hesitação e trazer aqui este tema. Faço-o com pudor, a medo, mas faço-o quase como solidariedade, para dizer que me tocou a dor, a tristeza, que compreendo a vontade de manter viva a memória dos que se foram, compreendo e gostava de saber escrever aqui a palavra certa para que, quem me leia e esteja nas mesmas circunstâncias, de ter perdido seres amados, se possa sentir confortado por saber que não está só. Mas, como não sei, com o devido respeito dou a palavra a quem o sabe.
E mostro uma outra fotografia. Para a fazer tive que passar, de novo, para a outra margem e usar, em força, o zoom. Só agora, ao escolhê-la para aqui, reparei no halo que, misteriosamente, não aparece em mais nenhuma fotografia.
No local onde o carro se terá afundado, sobre as águas havia um manto de limos verdes. Sobre esse manto, dois pássaros, muito serenos, encontravam-se pousados, quase imóveis, como se olhassem com tranquilidade o tempo que passa, como se estivessem a velar a memória dos dois jovens cuja vida se perdeu naquela noite terrível, como se dissessem que a vida ressurge, transforma-se, pode aparecer no corpo dos pássaros, pode aparecer no voo que desenham quando alcançam os grandes espaços, pode aparecer na luz que os banha, pode aparecer no canto mágico que, dos céus, de vez em quando, desce para os envolver. Não sei. Mas gostava de acreditar que sempre viverão aqueles que têm quem os guarde no coração e os recorde com carinho, quase como se, quem se foi, vivesse agora dentro de um sonho bom, muito bom, muito apaziguador.
Uma vez, teria eu uns 16 anos, fui a Madrid sem os meus pais. Ao regressar, quis trazer-lhes uns recuerdos. Acho que para a minha mãe trouxe um leque de renda e umas castanholas pretas que tinham umas bailarinas pintadas, para o meu pai, trouxe uma garrafa já não me lembro exactamente de quê, apenas me lembro de a ter achado invulgar (estou a pensar que seria de cortiça mas não estou certa). E, para a casa - mas a pensar em mim - trouxe o Dom Quixote. Ainda lá está em casa dos meus pais, na língua original, capa de pele castanha, folhas de um papel fino, quase transparente, e com umas ilustrações muito bonitas.
Na altura, tentei lê-lo mas, do que me lembro, não avancei muito, não era bem a minha onda da altura.
E, para dizer a verdade, esqueci-me, nunca pensei em ter um Dom Quixote cá em casa.
Mas, no outro dia, ao ouvir o Patrão da Barca chamada Tempo Contado, J. Rentes de Carvalho, dizer que, depois de, em tempos, ter deixado este livro pelo caminho, se está a redimir - e transcrevo:
(...) Felizmente ainda conheço ocasiões de redenção e continuo a procurar o que ignoro ou desleixei, de modos que me deitei às quase mil páginas da edição comemorativa da D. Quixote. E em boa hora o fiz, logo cativado pelo texto de Cervantes, pela excelente tradução de Miguel Serras Pereira, e a abundância e riqueza das notas.
Com um entusiasmo que devia ter tido na adolescência vou já no capítulo X, onde se conta Do que mais sucedeu a Dom Quixote com o biscainho e do perigo em que se viu com uma caterva de iangueses.
Por feliz acaso, e porque sempre leio mais do que um livro, tinha também começado a leitura do fenomenal The Narrow Road To The Deep North, (*) de Richard Flanagan (1961) vencedor do Man Booker Prize 2014, quando dei com a frase seguinte, a qual, numa ocasião assim, e pela coincidência, quase me fez pensar que, lá do Além, Cervantes mandou que eu a encontrasse, dando-me motivo para "reler" a minha alma:
"A good book leaves you wanting to reread the book. A great book compels you to reread your own soul".
lembrei-me que deveria suprir esta minha falha. E hoje, ao passar pela livraria, lá vi o livro que ilustrava o post do Tempo Contado. Trouxe-o. Estava a um preço imbatível, 10 euros e, como tenho cartão, menos 1 euro.
Apenas me poderei atirar a ele daqui a um bom par de anos mas, até lá, irei espreitando, lendo aos poucos (e escusam os brincalhões de me enviar comentários jocosos por causa disto: vejam, se fazem favor, o post já aqui abaixo para verem a forma como Borges diz que lia).
O arranque do Capítulo 1 é conhecido:
Num lugar da Mancha, de cujo nome não quero lembrar-me, não há muito vivia um fidalgo desses de lança no cabide, adarga antiga, rocim magro e galgo corredor.
Para quem goste de ouvir ler, sugiro o vídeo Don Quijote de la Mancha. Capítulo 1
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Já agora:
Don Quixote trailer (The Royal Ballet)
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Ou seja, para quem possa, é de aproveitar esta edição da editora D. Quixote.
No post abaixo, partilhei um vídeo em que, em pouco mais de um minuto, se diz tudo o que de importante há a saber sobre o verdadeiro motor da dívida dos países: o lado sinistro da Banca descrito em meia dúzia de palavras.
Mas isso é mais abaixo. Aqui, agora, a conversa é outra.
Bibliotecas, terra de perdição, memórias maravilhosas, sonhos longínquos, labirintos onde ainda quererei perder-me. Apenas algumas das mais belas.
E livros que me acompanham, aqui junto a mim, presenças materiais que toco e leio de quando em vez. Apenas alguns.
Se estiverem de acordo, vamos com música, uma música muito límpida.
John Taylor - Middle Age Music
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Biblioteca Joanina, Coimbra
Portugal’s João the Magnanimous astonished the rector of the University of Coimbra by telling him that his request for help towards library facilities was too modest; the lavish result was financed with gold reserves that had been recently discovered in Brazil. - THE TELEGRAPH
E quando a professora afirmava, com indiscutível autoridade, "O nosso país tem tudo" ou "Salazar é a Grande Luz", eu e os outros, tenros de idade, facilmente impressionáveis, sentíamos uma satisfação igual à que sentem os ricos e os protegidos.
Por sobre essa grandeza do tamanho havia a da História, Portugal nascera do conselho que Deus, em boa disposição, dera num dia de 1139 a Afonso Henriques, o primeiro rei. E desde então, cada vez que, por descuido ou boa-fé, o país se encontrava à beira do desastre, a intervenção divina nunca se tinha feito esperar, o Senhor aparecendo pessoalmente aos reis ou, como em 1917, delegando Nossa Senhora de Fátima para proteger Portugal, e através dele o Mundo, contra o dragão comunista.
J. Rentes de Carvalho in A Flor e a Foice
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Biblioteca do Palácio de Mafra
Since its opening in 1771, the Mafra Palace Library has been home to a colony of tiny bats; they roost behind the cases in winter, and in the orchard outside in the summer, swooping in during the night to eat insects which would otherwise damage the books. - THE TELEGRAPH
Quando o leitor estiver a ler esta carta as favas já terão sido plantadas numa leira mesmo aqui ao lado. Fizemo-lo precipitadamente no final da semana passada porque a meteorologia anunciava chuvadas torrenciais e, ficando tudo empapado de água, o tractor não poderia arrastar a frese que misturava as favas de semente com a terra. É claro que as favas já deviam ter sido plantadas há um mês. Toda a gente sabe que a fava se planta "entre os Santos", quer dizer, entre o dia de Todos-os-Santos, 1 de Novembro, e o dia de S. Martinho, 11 desse mesmo mês. Toda a gente sabe mas já ninguém o faz. Todos procuram adiar o plantio tanto quanto possível porque "isto agora é assim", como dizem os mais velhos, ou seja, porque agora é frequente haver ainda geada sobre os campos na época tradicional de floração das favas, Abril, e a geada mataria as plantas. Foi a ameaça de chuva a cair durante vários dias que obrigou a plantar imediatamente.
Paulo Varela Gomes in Ouro e Cinza
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Library Parabola, a sala de leitura da British Library
Library Parabola is the reading room of the British Library and is said to be the birthplace of the Communist Manifesto - THE TELEGRAPH
Na biblioteca da universidade vagueava por entre as estantes, por entre os milhares de livros, inspirando o odor bafiento a couro, tecido e papel ressequidos como se fosse um exótico incenso. Por vezes parava, tirava um volume de uma prateleira e segurava-o um instante com as suas mãos grandes, que eram tomadas por um formigueiro perante essa sensação ainda nova da lombada, da capa cartonada e das folhas de papel que se lhe ofereciam sem resistência. Depois, folheava o livro, lendo um parágrafo aqui e ali, os seus dedos hirtos virando as páginas cuidadosamente, com medo de, desajeitados, rasgarem e destruírem aquilo que tinham descoberto com tanto esforço.
Stoner não tinha amigos e, pela primeira vez na vida, tomou consciência da solidão.
John Williams in Stoner
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The Theological Hall, Strahov Abbey, Praga, República Checa
The Rococo ceiling of the Theological Hall at Strahov Abbey was added 40 years after the room was initially completed; the masonry vaulting offered a degree of protection from fire – a huge problem in medieval and Renaissance libraries as coal or wood fires were used for heating.- THE TELEGRAPH
E entregara-se a ele, totalmente. Dera-lhe tudo, de boa vontade e com pleno consentimento, sentindo a alegria de dar tudo o que se tem a quem se ama... Dar... e nunca mais ver o que tinha visto no primeiro encontro depois de ter voltado dos campos de batalha: um Olivier frágil, trémulo, como um cavalo doente; um Olivier esfomeado e sedento, um homem todo marcado pela morte e pela violência nos campos de batalha. Madeleine era o pão. E disse para ele: "Come-me!" Entregara-se toda, o seu corpo como pão devorado por um homem esfomeado, sentindo os lábios a arder e o corpo todo aberto.
Jean Giono in O grande rebanho
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Admont Abbey Library
The books in the abbey's original collection were rebound in white at enormous expense to match the rest of the decorative scheme. The bronze sculptures are actually made from wood. - THE TELEGRAPH
O segredo tem, aqui, realmente o seu domínio activo. O potentado, que dele se serve, conhece-o exactamente e sabe muito bem avaliá-lo em função da sua importância no momento. Sabe aquilo que está espiando, quando quer obter alguma coisa, e sabe quem, entre os seus auxiliares, emprega para espiar. Tem muitos segredos, pois quer muita coisa, e reúne-os num sistema em que se acautelam uns aos outros. Confia a um isto, a outro, aquilo, e zela para que eles nunca se possam juntar.
Todo aquele que sabe alguma coisa é vigiado por um outro que nunca sabe, porém, aquilo que efectivamente vigia no outro.
Elias Canetti in Massa e Poder
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Rijksmuseum Research Library, Amsterdam
Livro a livro, dia a dia, verso a verso se teceu de mais noite o que antes fora dia. Mas antes de morrer olha o que foi disperso de tudo o que amaste e que a ti te fazia. Olha os dias de inverno quando eras tão novo que nem frio nem morte se lembravam de ti. As montanhas à roda e um grito de novo a nascer do olhar e do amor que não vi. O peso da memória? Não, antes leveza de uma cidade viva só nesta glória que chamo quem conheça a cantar na certeza que vivemos os anos por detrás da História.
Luís Filipe Castro Mendes in A Misericórdia dos Mercados
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E a dança, os corpos em festa: Fica no Singelo de Clara Andermatt
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Permitam que relembre: já a seguir há um vídeo curtíssimo mas muito objectivo na descrição de quem está nos bastidores a provocar dívida e a controlar quem cai na armadilha.
No post abaixo falo de duas histórias incríveis. Ambas têm animais no seu centro e ambas mostram como os animais são capazes de compaixão e afecto. Muito gostaria que vissem os vídeos pois, em qualquer dos casos, é uma coisa que só vista.
Mais abaixo ainda relato uma de um dos meus pimentinhas a propósito de os flamingos darem leite (refiro-me ao meu menininho de seis anos que - deixem que aproveite a boleia para me babar - recebeu agora a ficha de avaliação do seu 1º período do 1º ano e que nos deixou à beira das lágrimas tais as coisas que lá dizem dele. Bem, estou a dar a entender que ficámos todos emocionados mas tenho que fazer uma ressalva. O meu marido, face às manifestações a que assistiu da minha parte e ao que a minha filha dizia no mail no qual enviava a ficha, resmungou: 'O que é que tem de especial? O puto é esperto. Qual a surpresa?'. Pronto, gosta de se armar em seco, nada a fazer.)
Mas, enfim, isso é a seguir.
Aqui, agora, a conversa é outra. Se concordarem, vamos com música.
La fleur que tu m'avais jetée
[Jonas Kaufmann com a Orquestra Filarmónica de Berlim]
Escrevo aqui sem saber para quem, sem saber como me interpretam, se levam à letra tudo o que escrevo, se ficam escandalizados, se ficam enternecidos, se ficam zangados.
Muitos Leitores me têm contactado desde que por aqui ando e com alguns tenho vindo a estabelecer relações de proximidade, admiração ou afecto. Mas muitos outros não faço ideia quem sejam. Vejo, nas estatísticas, que a maioria é de Portugal mas há muitos do Brasil e de vários outros países, alguns longínquos e inesperados.
Por exemplo, neste preciso instante, se a maioria dos Leitores está em Portugal, estão a visitar esta minha casa também pessoas da Alemanha, França, Espanha, Angola, Rússia, da Ucrânia, dos Estados Unidos e República Checa. Pelas mensagens que estão a ser vistas, estabeleço relação com os países (talvez quem esteja a ler sobre Valérie venha de França, talvez os que lêem sobre os Vistos Gold venham de Angola ou Rússia - mas sei lá se é).
Sei que há ferramentas estatísticas que permitem identificar os endereços electrónicos dos leitores ou saber exactamente quanto tempo cada um está em cada página. Eu não uso nada disso pois essas coisas parecem-me uma intrusão na privacidade das pessoas, prefiro ignorar quaisquer aspectos dessa natureza. Acho que a beleza de se estar aqui neste vasto universo reside na possibilidade da liberdade total, na possibilidade de navegar sem bússula num meio desconhecido, imenso. Que os meus Leitores sejam novos, velhos, coxos, trapezistas, que vivam na minha rua, em Marte ou na Cochinchina, a mim tanto me dá. São todos muito bem vindos e só desejo que se sintam bem por aqui, que tenham vontade de cá voltar.
Muitas vezes, olhando pela janela enquanto escrevo, imagino que estas minhas palavras se soltam de mim, atravessam a noite, sobrevoam o rio, conquistam o oceano, atravessam países ou continentes e chegam a casas desconhecidas onde alguém, tomando-as nas mãos, se sente próximo de mim, como se pudesse ver as minhas mãos, ouvir o meu riso, ver os meus olhos embaciados pelas lágrimas.
Mas não sei.
Há pessoas que me escrevem e dizem que eu sou a família que não têm, ou que, lendo-me, sentem uma energia que as faz acreditar que é possível. Acabo de ler no post abaixo um comentário de alguém que diz que me descobriu e que gosta de ver a forma como falo sobre as coisas e, claro, fico feliz. Outras pessoas pedem-me conselhos ou dizem-me palavras que me deixam emocionada e agradecida. Mas também recebo palavras zangadas, pessoas que não concordam com o que digo e que o manifestam de forma agressiva ou ameaçadora.
De certa forma, embora seja sensível a todas essas palavras, tenho que me abstrair de tudo isso para poder continuar a ser eu, escolhendo os temas de que me ocupo em liberdade, escrevendo ou dizendo o que me apetece. As únicas vezes em que me contenho é quando penso que posso incomodar os meus filhos. Claro que eles conhecem-me, dão o devido desconto, mas, ainda assim, não quero chocá-los para além da conta e, por isso, por vezes apago algumas frases ou dou a volta ao texto. Mas, tirando isso, não quero deixar-me influenciar por nada ou ninguém pois acho que só faz sentido uma pessoa estar aqui se for para deixar o seu cunho autenticamente pessoal (passe a redundância). Por isso, nem escrevo com a preocupação de agradar nem com receio de incomodar. Escrevo para dizer ou partilhar o que me apetece - e, no entanto, que bom se as minhas palavras forem bem interpretadas e apreciadas, que bom se eu puder tocar aqueles que, aí desse lado, as recebem.
Estou a escrever depois de ler o que J. Rentes de Carvalho escreveu, Who's On Your Site?:
Sem que daí venha proveito ou benefício, mantenho este blogue gastando nele horas que roubo a outros afazeres. Em contrapartida, porém, é através dele que realizo um sonho de menino: o das garrafas que tanto quis, mas nunca deitei ao mar, as que levariam mensagens para a gente exótica que se sentiria feliz ao descobri-las nas praias de mares longínquos. Fantasias.
Sorri ao ler estas palavras. Compreendo-o muito bem. E daqui, deste país complicado que também é o de J. Rentes de Carvalho, lhe digo que não há dia em que tendo ele deitado uma das suas garrafas ao mar, uma delas não chegue até mim. Fazem-se ao mar, elas, atravessam o oceano, entram neste rio que eu tanto amo, depois, chegadas à margem, destapam-se das águas, sacodem as penas, e voam até pousarem aqui na minha janela. Apanho-as, então, com desvelo, e tomo-as para mim.
Ia escrever sobre essas palavras que aqui me chegam de um Tempo Contado, ia dizer que são palavras irónicas, por vezes, amarguradas, outras, provocadoras, etc, mas depois voltei atrás e apaguei o parágrafo. Quem sou eu para poder falar sobre a escrita de quem tão escorreitamente as escreve? Que presunção a minha. Por isso, apaguei o que escrevi.
E estou agora a lembrar um seu outro post, Má ideia, na qual diz J. Rentes de Carvalho que:
Levado pela proximidade dos festejos do nascimento em Belém, andei uns dias a remoer a ideia, dizendo-me como dentro do espírito natalício seria agradável distribuir cumprimentos a uns quantos blogues. Este e aquele de gente conhecida, outros de anónimos que me divertem, com quem tenho aprendido ou por vezes me levam a rever a justeza de alguns dos meus cavalos de batalha. (...)
Mas, mais adiante, acrescenta:
Ainda bem que, acalmado o entusiasmo, e recordando Henry David Thoreau (1817-1862) autor que bastante contribuiu para a minha formação na adolescência, encontrei nele a razão de não levar a ideia por diante. Porque de facto, quem raio sou eu, que autoridade me dou para distribuir cumprimentos?
Afirma esse meu antigo mentor (...):
(Devido à pretensão que implicam, os cumprimentos e a lisonja provocam muitas vezes o meu desdém; pois quem é esse que supõe poder lisonjear-me? Cumprimentar implica com frequência uma pretensão de superioridade por parte daquele que cumprimenta. É, de facto, um subtil desapreço).
Portanto, sigo-lhe o exemplo e abstenho-me também de lhe tecer elogios, limitando-me a dizer que sim, me sinto feliz ao ler as palavras que, como um menino, coloca em garrafas e que generosamente atira ao mar.
Acredito que, mais coisa menos coisa, somos todos assim, meninos inocentes que, nos nossos sonhos, lançamos garrafas ao mar, lançamos flores, lançamos pontes - e ficamos felizes quando sabemos que algures no mundo há gente que as segura, as leva nas suas mãos, as guarda dentro de si.
E o que desejo é que estejamos sempre disponíveis para isso, para recebermos as palavras que nos chegam e para ouvir os ventos que sopram e fecham os caminhos entre as nuvens e que contemplemos as ninfas celestiais antes que elas terminem de dançar e retornem aos céus.
Pode até ser que um dia, quando menos o esperarmos, um anjo chegue e fique junto a nós para nos proteger, para nos ajudar, para nos fazer ver o mundo de uma outra forma. Sabemos lá.
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As fotografias que usei para ilustrar este post foram feitas este domingo na Gulbenkian. As duas últimas referem-se à bela exposição sobre caligrafia japonesa (da qual extraí as expressões em itálico do penúltimo parágrafo).
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Permitam que relembre que nos dois posts a seguir há histórias que enternecem.
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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma bela semana a começar já por esta segunda-feira.
E muita saúde, boa disposição e sorte é o que vos desejo, entre outras coisas boas.