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sábado, maio 13, 2017

A incompreensível e efémera beleza das borboletas




Por vezes, tão auto-centrados nos encontramos que acabamos por não perceber que o mundo é múltiplo, vasto, grande parte dele invisível, outra grande parte incompreensível. E apenas um dos muitos mundos que existem. E que, dada a nossa frágil natureza e a nossa efemeridade, somos nada. Portanto, pobres de espírito os que acham que tudo sabem, os que tratam com desprezo os outros, os que julgam com facilidade e, sobretudo, os que condenam sem julgamento. O muito que alguns julgam que têm, sabedoria ou bens materiais, é nada. Poeira.


Estive a ver borboletas. Lindíssimas, uma perfeição rara. Uma variedade que impressiona, tal a diversidade.

Uma vez no campo estava a andar -- aqueles meus passeios em silêncio em que tento não perturbar a harmonia de quem lá vive, pássaros, coelhos, lagartixas e todos os outros que não vejo. E ao meu lado, seguindo-me, duas borboletas brancas. Fico sempre num estado de quase êxtase quando me acontecem coisas assim, quase arrepiada, quase como se estivesse a ser abençoada por viver um momento tão maravilhoso. Seria deliberado da parte delas ou, tão silenciosa eu ia, me tornei invisível? Lembro-me de ter falado nisto a uma pessoa que se limitou a comentar: 'são raras as borboletas brancas'. Não sei. Nada sei de borboletas.

Outra vez, também in heaven, entrou uma borboleta lindíssima na sala. Já não me lembro como, morreu. Peguei nela e vi-a de perto: as cores, o desenho das asas, a elegância. Coloquei-a numa tacinha de casquinha. Anos depois ainda lá está, intacta, igual, perfeita. Apenas sem vida. E eu olho-a sem perceber que tragédia se abateu sobre ela que a deixou assim, com o corpo igual mas sem poder sentir o prazer de voar, de estar viva. E pergunto-me se todas as borboletas do mundo ficarão assim, intactas e eternamente perfeitas, depois de morrerem. Milhões e milhões de borboletas parecendo vivas mas sem vida? Não faço ideia.


Ao ver as borboletas, lembrei-me de uma das pessoas fascinantes que tive o privilégio de conhecer. Um melómano. Uma família de músicos. Um dos vários filhos é um grande músico. Tirando músicos, outras artes. Uma casa especial, neto de um vulto maior das artes lusas. Conversávamos muito. E ele falava-me de mundos que eu desconhecia. Já falei aqui dele. Tinha um hobby: fazia bird watching. E eu não conseguia perceber: mas fazem o quê? Fotografam? E ele sorria e dizia que não. Então o quê? E ele sorria e dizia que nada, apenas olhava os pássaros. Naquela altura eu não conseguia perceber que prazer se poderia ter em ir para montes e vales, rios e pântanos, à procura de algumas espécies de pássaros só para olhar para eles. E, no entanto, como ele gostava de o fazer e com que júbilo falava do que via.


Um amigo meu, por razões que aqui não vêm ao caso uma pessoa incomum, tem alguns gostos muito diferentes dos meus e um deles é que é caçador. Diz que, para ele, o prazer maior e que, nos dias antes, nem o deixa dormir  é o pensar em estar no campo, ao começo ainda de noite, depois a luz a nascer ao de leve, ele escondido a ver surgir o dia, a ouvir os sons da natureza, a perceber um bater de asas, um bicho que corre. Diz que nem é tanto o perceber a altura certa para disparar mas o sentir da natureza, o adivinhar os sons, os movimentos invisíveis, a luz sobre tudo. E eu, ouvindo-o falar, quase me esqueço que, a seguir, ele dispara a matar.


A idade tem-me trazido a serenidade necessária para aceitar a existência de múltiplas camadas de sensações e percepções e para me sentir disponível para procurar, no fundo de tudo, a sua suprema simplicidade, núcleo identitário de cada coisa, de cada bicho, de cada pessoa.

Não sei nem quero saber se são legítimas as contradições que habitam os seres e as coisas. Sei, ou julgo que sei, que a tolerância, harmonia, a bondade e a elegância ajudam a que valha a pena viver o efémero momento em que a alma habita o nosso corpo.

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E, a propósito de contradições e da beleza fugaz, Nabokov

Um olhar de perto


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Algumas fotografias mostram visões de muito perto de asas de borboletas.

Lá em cima Polina Semionova dança Butterffly, composta e tocada por Yasser Farouk

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quarta-feira, dezembro 14, 2016

Vagas topologias





Na noite de segunda para terça-feira deitei-me sem estar perdida de sono o que significa que, como sempre que isso acontece, não adormeci de súbito e, portanto, espertei. O tempo a passar e eu a ver que já não tinha tempo de dormir. Por fim, adormeci para logo depois acordar, com medo de que o telemóvel não despertasse. Ou seja, praticamente não dormi.

Quando saí de casa, noite fechada, estava um nevoeiro cerrado, tudo molhado, parecia chover tanta a humidade. A música na rádio era boa e conduzir de noite, sem ninguém mais nas ruas, é bom. 

Contudo, como tinha hora marcada para me encontrar com o colega com quem faria grande parte da viagem, estava com medo de me atrasar. Mal se podia andar, mal se via. Cheguei ao pé dele em cima da hora, ainda de noite.

Nevoeiro pelo caminho. A reunião, a centenas de quilómetros, começava às dez mas, apesar de tudo, como damos folga para todos os imprevistos, chegámos antes. Beijos e abraços, há algum tempo que não via algumas das pessoas. Mais tarde, a seguir ao almoço, veria algumas pessoas pela primeira vez.


Cheguei a casa cedo, antes das oito da noite. Mas estava num tal estado que me deitei no sofá e adormeci profundamente. Despertei cerca de meia hora depois, o meu marido já ao pé de mim, mas eu ainda a precisar de dormir mais. A custo, lá consegui acordar. Passado um bocado, chamou-me para jantar. Quando ia começar, ligou-me a minha filha, admirada por eu não lhe ter ligado. 

Depois de jantar, ligou-me o meu filho. 

Sentei-me agora aqui mas estou com pouca energia. Não é pelo dia, que não foi cansativo, é pela noite passada, não dormida.

Ao começar a escrever pensei que podia fazer dez posts diferentes. Talvez uma credível materialização da topologia possa ser qualquer coisa como esta: uma pessoa passar o dia num sítio e viver ou antever situações tão díspares e de natureza tão distinta que pode parecer que não se tocam, que não aconteceram no mesmo espaço/tempo, como se dentro dele coexistissem diferentes dimensões, realidades que não se intersectam. Uma realidade imaterial de contornos difusos que se desdobra noutras que não se reconhecem entre si.


A dada altura, de tarde, emocionei-me. Disfarcei. Nessa altura, vi um outro também emocionado, identicamente a disfarçar. Ao mesmo tempo, outras pessoas riam abertamente e quase todos batiam palmas, incluindo eu.

Noutra altura, enquanto ao meu lado ouvia conversas sobre negócios em geografias remotas ou projectos inovadores e sustentáveis, actividades com ebitdas periclitantes e outras mais seguras, mantinha eu uma conversa com uma pessoa, magra, cansada, que tem a mãe com Alzeihmer, que já apenas a conhece a ela, dando-lhe, por isso, a responsabilidade adicional de, todos os dias, dê por onde der e custe-lhe o que custar, ir vê-la para que a mãe veja alguém que consiga reconhecer.

Pelo meio, recebo mails e sms e respondo e participo e interesso-me. Mas a verdade é que, frequentemente, sinto a necessidade de me deslocar para as silenciosas e benignas pregas do espaço/tempo onde reconheço traços de humanidade ou onde me parece que as coisas verdadeiramente acontecem.


Não quero nem posso cometer indiscrições pelo que nada posso contar. Mas direi que me aconteceu, como tantas vezes me acontece, sentir um distanciamento que me leva a ver coisas que mais ninguém parece ver.

Quando na viagem de regresso, vimos os dois a comentar o que se passou, muitas vezes parece que estivemos em lugares distintos.

Depois conversamos sobre séries ou filmes, sobre gente conhecida, sobre lugares bons para se passear, sobre a família. De vez em quando dá-me sono, sinto que, se fechar os olhos, adormecerei. Não fecho, prefiro vir acordada e fazer companhia a quem vem a conduzir, tão cansado como eu.

Agora na televisão vejo que Mário Soares, o velho leão, está sem forças. Tenho pena. Mas de nada serve acreditar que a eternidade está ao alcance dos mortais. Não está. Somos frágeis, perecíveis. Sobrevive-nos a memória que de nós conservarão os que um dia nos amaram. Para uma minoria, para os que têm a sorte de ser tocados pelo sopro divino, sobrevive a sua obra. 

Hoje foi a enterrar o irmão de um amigo meu, mais novo que ele, alguém de quem tanto ouvi falar ao longo de anos. Pelo que o meu amigo contava, parecia que o irmão tinha uma vida que jorrava de uma fonte inesgotável. Afinal esgotou-se. Imagino a tristeza do meu amigo. E eu não pude ir dar-lhe um abraço.


Tudo tão relativo, tão frágil. Tudo tão precário.

É um lugar comum, mais do que comum, dizer que não vale a pena gastarmos um minuto da nossa vida com azedumes, a aborrecer os outros ou a deixarmo-nos entristecer com a maldade alheia. Eu tento não fazer mal a ninguém e tento perdoar a todos os que, talvez até involuntariamente, me fazem mal. Nem sempre é fácil. Mas tento. Sabemos lá nós o que a vida guarda para nós...? Não quero desperdiçar um segundo da minha vida com o coração envolto em tristeza, e tomara eu conseguir levar a alegria da generosidade àqueles que parece que têm o coração fechado.

Mas também não era sobre nada disto que eu queria falar. Aliás, não queria falar de nada. Sabe-me bem estar aqui na sala quase às escuras, a escrever sem assunto, alheada de tudo, a ouvir música, em paz.

No outro dia, para acomodar na sala, nomeadamente neste sofá, as numerosas claques que vieram para o futebol, todos os livros que por aqui andavam, foram para outras paragens. E eu gosto de, no meio das palavras que escrevo, de vez em quando abrir um livro e ler o que o acaso me mostra. Agora não os tenho perto de mim. Podia ir buscá-los mas estou assim como me vêem, sem grande energia. Então, abro blogues. Abro ao acaso. Leio palavras limpas, outras imprevistas, outras talvez pensadas, umas talvez com destinatário, outras não, palavras soltas como pássaros livres, num lago, num bosque, voando ou vagueando sem pressa. Ou como flores, quase sem corpo, quase só alma. Ou com saudades. Ou apenas tingidas pelo vazio.


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Todos os dias recebo vários mails. Não consigo responder a todos mas leio-os. Posso não agradecer mas saibam que me sinto agradecida.

Hoje tinha um com um vídeo que, há uns anos, já tinha visto mas que revi com prazer, talvez mais ainda agora do que na primeira vez.

Partilho-o convosco. Parece que as palavras que neste momento estou a escutar de novo me tocam de uma forma especial.

Dignidade e elegância. A importância dos acasos. A beleza da generosidade. As diferentes dimensões da gratidão.

Discurso de Leonard Cohen ao aceitar o Prémio Príncipe das Asturias.




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E dançar no meio da noite.

Beleza e paixão. A pele e o corpo. O toque.

E a tragédia dos fins que não se desejam. O adeus. O sangue sem fim, o lamento sem voz. 

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Aqui já acima, The Borodin Quintet & Alexander Buzlov (violoncelo) interpreta o Adagio do Quinteto de Cordas de Franz Schubert. Polina Semionova e Vladimir Malakhov dançam-no segundo a coreografia Caravaggio de Mauro Bigonzetti¨.

Lá em cima Camille Thomas interpreta El Cants Dells Occels de Casals.

As fotografias são de Zsolt Kudich um dos vencedores do The 2016 National Geographic Nature Photographer Of The Year.


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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma boa quarta-feira.
Saúde, sorte, afecto, alegria -- para todos.


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segunda-feira, setembro 19, 2016

O que viam os que não viam. Maria Theresia von Paradis e Jorge Luis Borges.
O que viam os que viam todas as cores. Monet e Bukowski.
E um improvável encontro. Polina Semionova, Vladimir Malakhov, Bjork e Caravaggio





Finalmente a aceitar que estou de volta aos dias normais, a mala desfeita, a roupa arrumada, outra a lavar, a sopa feita, escolhida a toilette para a rentrée, as coisas no sítio e os livros amontoados ali a olharem para mim, fazendo-me sentir em porto seguro, em paz comigo e com o mundo, sento-me aqui e de tal forma estou em estado zen que não faço ideia do que hei-de escrever.

Na cozinha, um mistério. Ouve-se um grilo. Se estivessemos no campo seria natural. Aqui é inédito. Já o procurámos e não o descobrimos. Como chegou ele até cá, não sabemos. Terá vindo com os figos?

Parece que estou num hiato, suspensa entre dois mundos. 

Acabei de receber um mail de trabalho. Alguém diz que sabe que estou a regressar de férias e quer lembrar-me um assunto. A minha primeira reacção foi enviar-lhe uma resposta torta. Mas depois deu-me vontade de rir. A isto chama-se não brincar em serviço e já me apetece é enviar um mail irónico. Mas nem para isso agora tenho disposição. Amanhã logo vejo o que lhe digo até porque o interesse em falar com ele também é meu. Mas é quando estiver a trabalhar, não na véspera em que ainda estou aqui a ambientar-me à ideia.

Entretanto, a minha mente vagueia por um mundo suave, habitado por música, cores, flores, águas refletindo imagens gentis, palavras inteligentes e irónicas, vozes que me dizem poemas, corpos que se envolvem entre cores, evocações, acordes e uma voz que canta -- e não consigo preocupar-me em encontrar coerência entre o que me ocorre. Tomara que não haja. Ou que seja tão secreta que ninguém a descubra.

E penso, mas com leveza. Quase como num sonho bom penso, sobretudo, naqueles a quem quero bem. Quero que estejam bem. Gosto de os saber bem. Gostava que estivessem sempre bem. 

Não consigo pensar em frases muito elaboradas ou em raciocínios bem desenhados para agora aqui escrever.

De propósito, nem espreito as notícias não vá alguma despertar-me deste estado de doce encantamento em que me encontro, ouvindo melódicos acordes ou a voz rouca e pesada que diz poesia. Gostava que todos os dias fossem dias bons para todos.


Frases de Borges 
(algumas de entre algumas desconcertantes)


A gente publica para não passar a vida corrigindo o que escreve. A verdade é que se publica para se libertar do livro e pensar em outro. Quanto a mim, reli muito pouco do que escrevi. Ainda que de vez em quando me releiam passagens do que escrevi e às vezes elas me agradam. E digo: de onde tirei tudo isto? Na certa deve ser plágio, porque é bom.

Não releio, esqueço facilmente, mas tudo o que publico supõe dez ou doze versões, sendo que a última acrescendo um descuido evidente para que pareça espontâneo.

Não sou modesto, apenas fico assombrado por ser conhecido. Deixei de ser um homem invisível aos cinquenta anos, e pode-se descobrir a qualquer momento que sou um impostor.

Ulisses: não foi escrito para ser lido, foi escrito para alguma coisa muito superior, foi escrito para que o autor ficasse famoso, fosse analisado, figurasse na história da literatura.

O aborrecimento é mais terrível do que a violência.

Todos falam dos supostos benefícios que a saúde traz ao indivíduo, mas eu acho que a saúde é um estado precário que não pressagia nada de bom.

Ironia: uma coisa que aprecio e reconheço, e de que sou totalmente incapaz.






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Lá em cima, no violoncelo, Lynn Harrell interpreta de Maria Theresia von Paradis a Sicilienne

As imagens mostram pinturas de Claude Monet.

Encontrei as frases de Borges na Revista Bula

Tom O'Bedlam diz Roll the Dice de Charles Bukowski

Polina Semionova e Vladimir Malakhov dançam Caravaggio coreografado por Mauro Bigonzetti, aqui ao som de Prayer Of The Heart numa interpretação de Bjork

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sábado, março 26, 2016

O que é a arte? Para que servem os poetas?
-- Se alguém sabe, de fonte segura, que não me diga que eu, por muito que pense ou que leia, não sei nem quero saber.
É que, para mim, a beleza da arte ou da poesia residem na sua injustificação


Perante a beleza desmedida de uma paisagem traçada pela arquitectura, ou perante a grandeza de uma escrita feita catedral, ou a atracção de uma pintura feita de cores, luz e coisa nenhuma, ou uma música que se transforme na alma que me comanda, detenho-me, muitas vezes fecho os olhos. Não quero esgotar o que me é dado, então, viver. Não quero racionalizar, não quero retalhar o todo nas partes que o compõem porque, para além das partes, há o espírito que as liga e há a forma como o sinto e o todo é sempre mais e muito diferente da soma das partes. O que em mim se altera pela emoção que me é despertada deve permanecer inexplicável, reacção mágica, indefinível. Só não analisando a arte que em mim toca as cordas da emoção poderei defender-me da indiferença ou da arrogância, só assim as minhas células permanecerão disponíveis para serem impressionadas em vezes futuras. 



Sendo um tema que me interessa, é daqueles que deliberadamente afloro como um pássaro que voa e pousa com ligeireza para logo voar e depois se acolher e depois voar e depois pousar para sentir a aragem na plumagem e sempre sem pensamentos profundos, apenas a leveza de quem gosta de viver em liberdade, sem seguir tendências, sem se prender a teorias, sem dever fidelidades.

Começo a ler o que parece ser esclarecedor e vou by the book, uma linha depois da outra, uma página a seguir à outra. Mas não dura muito o meu bom comportamento. É que logo depois já estou a espreitar páginas para a frente, depois quero ver qual o rumo que o raciocínio está a levar e leio a última página, depois leio do fim para o princípio e depois, se me parece inútil, salto páginas e voo até que as palavras chamem por mim e, assim vou, regressando à casa da partida. 

Se tiver sorte, terei permanecido na mesma ignorância que antes, apenas percebendo que, na longa parede ao longo da qual caminho, há portas de que antes não me tinha apercebido, penso que talvez um dia entre em alguma pela curiosidade de ver o que há do lado de lá. Mas evitarei isso porque, de cada vez que entrar por uma porta, ficarei fechada num compartimento em vez de continuar a percorrer o atraente caminho por onde gosto tanto de andar -- e de me perder.
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Procura ainda a vida que
podes viver quando reflecte
da floresta a sombria folha
que

no primeiro capítulo foi perdida.
Procura a proporção do que
cresce dentro e fora da casa –

o corpo,
no seu existir dia a dia
similiter tui domine
deus. Procura

a vibração do mar e da terra e
desce
na cavidade medida
o mais profundo golpe.


São coisas muito frágeis – uma sede
a transformar-se em água ou num sorriso
aberto à flor dos lábios,
a música de um corpo enquanto é verão
e sobretudo a chama de um olhar
que se entrega à primeira alegria,π
ao primeiro desejo.

Ele sabe, sempre soube que é difícil ser
fiel ao esplendor de tudo isso, à
melodia ou ao rumor do sangue. É um
segredo roubado à terra ou à infância
como se a voz dançasse.

Confidente das aves quando chegam
do sul
ou cúmplice da luz que se demora
à passagem do vento,
mal o vejo daqui
e a sombra que se move entre os seus olhos
é a lição do dia quando morre,
esse rasto de lume que o sol deixa
a arder no mar.

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E para que serve a música? E para que serve a dança?

(E o corpo, para que serve? E nós, para que servimos nós?)


Roberto Bolle e Polina Semionova dançam 'Passage', uma música de Fabrizio Ferri

Os poemas pertencem ao livro 'Aproximações a Eugénio de Andrade'. O primeiro é 'Naufrágio que le Prince Charmant sofreu ao tempo do Livro de Navegações de São Brandão' escrito para Eugénio por João Miguel Fernandes Jorge, que refere que foi o único poema que escreveu em 1999. O segundo é de Fernando Pinto do Amaral – “Para um retrato de Eugénio”

As fotografias foram feitas hoje rente ao Tejo.

Lá em cima Catrin Finch interpreta Blessing de John Rutter

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Convido-vos, ainda, a virem de visita até ao meu Ginjal onde hoje vou, feliz, no barquinho de Kabir

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Já cá volto mas, entretanto, desejo-vos um bom sábado.



quinta-feira, novembro 12, 2015

Só para provar que não é maluquice minha: as mulheres têm asas, sim!


Acho que hoje não vou conseguir falar de acordos -- assinados de pé? que coisa horrível! -- nem das agências de rating -- governo apoiado à esquerda? oh sacrilégio! -- nem dos debates a toda a hora, em todo o lado -- calem-se todos, please... -- nem de nada disto.

O dia não foi famoso, o sono é algum, e a mim só me apetece é ligeireza para ver se descanso a minha beleza.

A propósito de beleza: volta e meio falo em voar (até porque, às vezes, sonho mesmo que voo) e tenho vontade de apanhar o ventinho de feição, levantar os braços e deixar-me ir pelos ares. Quando digo isto ao pé do meu marido ele ou não diz nada ou encolhe os ombros e diz que sou maluca. Não sei, vocês aí, o que acham. Se calhar também acham que não bato bem da bola. Pois bem, para os cépticos, aqui fica a prova provada que as mulheres têm asas. Não sei se são todas as mulheres que as têm ou apenas algumas - mas não interessa. Se calhar quem as não tem é uma questão de tempo, um dia as asas nascer-lhes-ão.





Até a nossa menina, a Sara Sampaio, as tem


As meninas bonitas com as suas belas asinhas desfilaram para a Victoria's Secret (uma marca de lingerie - para os distraídos que não sabem).

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Há também as mulheres que têm asas na voz, na alma. Sora, é uma jovem coreana que resolveu interpretar o hit Hello da Adele. E a sua interpretação tem tal força, intensidade (ou leveza?) que impressiona. Já vai a caminho dos 10 milhões de visualizações no youtube e não admira.




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E há as que dançam como se o seu corpo fosse alado. 

Quando eu era pequena fazia ballet e o que eu gostava de dançar, o meu corpo tinha uma flexibilidade que me espantava. Era tão bom dançar.

Polina Semionova e Vladimir Malakhov sobre  Prayer Of The Heart Bjork - Caravaggio

(Coreógrafo: Mauro Bigonzetti )


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E há as que têm asas na voz, nas palavras, nos dedos que desenham poesia.

Maria Bethânia - Poema Azul de Sophia de Mello Breyner



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E as que têm asas na alma e nas mãos e todas elas são asas.

Paula Rego, que há muito voa bem acima das incertezas miúdas, pintou esta mulher terrena com asas brotando do coração



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Mais provas? É preciso mais? Então as mulheres têm ou não têm asas?

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Desejo-vos, meus Caros Lleitores, uma excelente quinta-feira.

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sábado, outubro 31, 2015

Traz de novo, meu amor, a transparência da água - dá ocupação à minha ternura vadia


Enquanto escrevo ouço a chuva a bater com força na minha janela. A noite está densa, um manto escuro cobre o rio, quase cobre a grande cidade. Ouço a música, ouça a chuva. De vez em quando o som torna-se mais pesado, parece que se abate um dilúvio, uma queda constante e torrencial. Depois abranda, fica a chuva mais mansa e as gotas que caem no parapeito são ritmadas. Ouço também o vento. Penso nos que estão longe dos que amam, dos que sentem o frio da saudade. O tempo assim traz tristeza.




Magoa-me a saudade 
do sobressalto dos corpos 
ferindo-se de ternura 
dói-me a distante lembrança 
do teu vestido 
caindo aos nossos pés 
Magoa-me a saudade 
do tempo em que te habitava 
como o sal ocupa o mar 
como a luz recolhendo-se 
nas pupilas desatentas 




Seja eu de novo tua sombra, teu desejo 
tua noite sem remédio 
tua virtude, tua carência 
eu 
que longe de ti sou fraco 
eu 
que já fui água, seiva vegetal 
sou agora gota trémula, raiz exposta 


Traz 
de novo, meu amor, 
a transparência da água 
dá ocupação à minha ternura vadia 
mergulha os teus dedos 
no feitiço do meu peito 
e espanta na gruta funda de mim 
os animais que atormentam o meu sono 



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 George East fotografou as Skeleton Flower.  
Joni Niemelä fotografou as gotas de água.
Mia Couta escreveu Saudade.
Polina Semionova e Roberto Bolle dançam Dancing in the Rain que Marco Pelle coreografou

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Desejo-vos, meus Caros Leitores, um bom sábado.

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quarta-feira, dezembro 31, 2014

Isto é para si aí, longe, e, no entanto, tão próximo de mim. Não quero acabar 2014 nem aproximar-me de 2015 com palavras de pesar ou mágoa. Quero entrar em 2015 cercada de beleza e na vossa companhia.


No post abaixo falei ao de leve naquilo sobre o qual não queria debruçar-me: o BES. A televisão estava a transmitir as gravações do Conselho Superior do GES e, sem querer, dei por mim a ouvir parte da conversa entre aquelas vozes nuas, geladas de angústia. E, mais do que atentar na aflição que transparecia, senti vergonha por estar a ouvir conversas que deveriam ter permanecido reservadas. Quem pegou nas gravações e as ofereceu ou vendeu portou-se como um traidor e isso eu acho uma imperdoável baixeza moral, lama que parece alastrar sobre a frágil sociedade portuguesa.

Mas, enfim, disso falo no post seguinte.

Aqui, agora, a conversa é outra.

Vamos com música, se estiverem de acordo.







E que prossigam os momentos de beleza porque, apesar da compaixão que me merecem os que sofrem e aqueles que vêem sofrem pelos que amam, o ano não pode resumir-se aos que sucumbiram às garras da má sorte, aos que se viram destroçados ou aprisionados, aos que pereceram numa maca de um hospital sobrelotado como cães abandonados numa qualquer escura vereda, ou às estatísticas dos que morreram na estrada, ou aos que, em geral morreram em 2014 (por muita falta que todos os que partiram façam aos que ficaram), nem às falências, às guerras, conflitos, catástrofes naturais, forces majeures, acts of god.

No outro dia ouvi o director do DN, o respeitável André Macedo, a dizer que nesta altura do ano não há notícias pelo que as más notícias são boas notícias para os meios de comunicação social. E, de facto, por esta altura parece que, para consolo dos jornalistas, uma qualquer força centrípeta afasta da superfície da terra aviões e navios que desaparecem ou se incendeiam, ou tsunamis, tremores de terra, vagas de frio, cheias que tudo arrastam, coisas que devoram vidas sem dó nem piedade.

Mas se disso se ocupam ad nauseam os noticiários, não preciso de trazer esses temas para aqui. Não eu.




É que há o que não é notícia.

O que é belo não é notícia. As palavras cuidadosamente cerzidas na intimidade da noite ou ditadas por insones deuses, os acordes experimentados no silêncio dos sonhos, os gestos transformados em cor, os sorrisos e os movimentos fixados em imagens como se o tempo parasse para eternizar o momento, a liberdade dos corpos enquanto anjos de longas e esguias asas, as luminosas descobertas alcançadas depois de horas de intermináveis insucessos, as vozes que atravessam os imensos espaços com a intemporal poesia - nada disso é notícia ou, se o é, dirige-se a minorias. E, no entanto, nisso deveria estar a tónica, nisso e não no fracasso, nos aparentes e efémeros sucessos, na malvadez emergente, na doença sem dono, na morte, no fim da linha.


Tantas vezes aqui tenho vontade de me atirar aos chacais que invadem as ruas, às hienas que riem rodeadas de carniça, aos papagaios que repetem mentiras e ampliam perfídias. Muitas vezes cedo e nisso me desgasto como se das minhas denúncias e revoltas pudesse resultar alguma clarificação. Mas, quando me detenho, acho inútil. Pior: acho que faço mal. Melhor fora que desprezasse os que vivem do lado nefasto da vida e me entregasse ao louvor do que é belo e bom.




E me deixasse estar a escrever. Ou a transcrever as palavras lisas como elegantes linhas. Assim, por exemplo:

Escrevo como se corresse num jardim, ou num deserto iluminado de areias ____

____ escrevo
para que o romance não morra.
Escrevo, para que continue,
mesmo se, para tal, tenha de mudar de forma,
mesmo que se chegue a duvidar se ainda é ele,
mesmo que o faça atravessar territórios desconhecidos,
mesmo que o leve a contemplar paisagens que lhe são tão difíceis
de nomear


Sento-me num tronco nos limites da clareira, fechando os meus olhos fitos no seu centro, deixando que tudo corra, mesmo na sua imobilidade. E dou-me conta de que corre uma aragem pelas árvores da clareira, tal como um murmúrio, que me suscita a palavra murmuragem. A murmuragem das copas das árvores, como digo a murmuragem que sou.

o encontro inesperado do diverso
é assistir ao belo a comunicar com o silêncio;
a fraccionar a imagem nas suas diversas formas;
ajudá-las a levantar o véu para que se mostrem mutuamente
na beleza própria




era uma noite no meio da lavoura
e da tarde

amorosa como um punho fechado
amena como um estudo de noite.

era uma correnteza de aves fundas
a constituir família.
a palavra era branca como só o branco
e o molde dos insectos era branco como ela
o sangue no tear era branco como ela
o pão escuro o homem pela sombra
era branco como ela.

ela e ele brancos como só a palavra.




E tanta a beleza quando os corpos se entregam ao voo e ao aconchego do corpo do outro.


 

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E tanta a beleza quando as palavras nos chegam dirigidas a nós e nós, de coração, as entregamos àqueles que tão generosamente nos visitam.




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-  A música no início era Anna Prohaska interpretando 'Der Vollmond strahlt auf Bergeshöhn' (de 'Rosamunde', Franz Schubert), com Eric Schneider no piano

-  As fotografias retratam a beleza quase irreal de plantações de arroz e foram obtidas aqui.

-  O primeiro conjunto de poemas/palavras em itálico pertence a Maria Gabriela Llansol e foram extraídos do belo livro 'O encontro inesperado do diverso' com Ilda David e Duarte Belo

-  O segundo conjunto de poemas (2) pertence a 'Marsupial', um livro de Catarina Nunes de Almeida

-  A pintura é de Caravaggio (1602): A Sagrada Família com S. João Baptista

- O bailado mostra Polina Semionova e Vladimir Malakhov em CARAVAGGIO numa coreografia de Mauro Bigonzetti ao som de Prayer Of The Heart de John Tavener numa interpretação de Bjork.

-  Os poemas ditos pelo talentoso Benedict Cumberbatch, senhor de uma voz maravilhosa, são Words for You:
1. The Seven Ages Of Man (também conhecido por The World's A Stage) da peça As You Like It de William Shakespeare
2. Jabberwocky de Lewis Carroll
3. Divine Comedy de Dante Alighieri
4. Ode To A Nightingale de John Keats
5. Kubla Khan de Samuel Taylor Coleridge
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Permitam que relembre: sobre as gravações dos membros da família Espírito Santo e sobre a decadência moral mais do que financeira que rodeia tudo isto, falo no post já a seguir a este.

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E o que vos desejo, meus queridos Leitores, é o mesmo que desejo para mim e para os meus: que 2015 nos deixe crescer, nos deixe ter esperança, nos dê razões para nos sentirmos felizes e que nos deixe espaço para apreciarmos toda a beleza que nos rodeia.


E, claro está, também saúde, sorte e desafogo financeiro. 
E afecto seja lá de que forma for e venha ele de onde vier. 
E que nos vamos encontrando por aqui.

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quinta-feira, abril 05, 2012

Entardeceres de assombros e gemidos. E, apesar de não me apetecer, lá falo do desgoverno, da descoordenação e da incompetência de que estamos a ser vítimas - a propósito de Passos Coelho e do Gato Gaspar e da restituição dos subsídios de férias e de Natal (talvez, aos poucos, lá para 2015, talvez, aos poucos, lá para perto das eleições... ou nem isso). Do PS, do Tozé Seguro e do gatinho assustado Zorrinho nem falo. Só acho graça à Isabel Moreira que anda a dar com eles em doidos.


Música, por favor

Paul Simon e Art Garfunkel - Bridge over Troubled Water



De vez em quando o rio agita-se. 

Quando a noite cai sobre dias assim, frios, ventosos, os barcos atracados roçam no cais e ouve-se um ranger dorido, um choro aflito. A velha rua, então inóspita, quase deserta, é atravessada por estes lancinantes gemidos. Se outro barco chega ou parte, a ondulação acentua-se e os barcos atracados atiram-se contra o cais e há estrondos, quase parece que se vão despedaçar. Os incessantes gemidos misturam-se, então, com as pancadas metálicas. Agressão e dor na beira de um rio escurecido.

Em momentos assim não há gaivotas, já se abrigaram, nem gatos. De vez em quando lá há um que assoma assustado, olhos abertos num assombro verde, e ali fica, expectante.



então é a luz

não se mete nos olhos mete-se nos olhos por dentro
entranha-se no corpo

a mistura do silêncio e do fogo


E quase ninguém, talvez uma ou outra sombra que algum corpo deixou para trás. Quanto muito algum casal que conversa dentro de um carro. Vistos do exterior parecem duas pessoas silenciosas fechadas dentro de um aquário vazio. Ali abrigados, conversarão talvez, ou talvez se amem apenas.



a seguir ergo-me no espaço e respiro
sobre tudo o clima das nuvens

desço as palavras
até aos pés do rio
leite correndo ao longo do mel
as margens sinuosas

uma pré-noite

passa o silêncio por baixo

Gosto de passear à beira do rio, em entardeceres assim. Há uma solidão no ar, uma solidão quase palpável, uma solidão que se mistura com desespero, com murros contra a parede, lágrimas que escorrem em silêncio, gritos surdos. E está frio, vento, e escurece, e à vinda, já é quase noite e a solidão é ainda maior.

Ao longo do percurso vou tirando fotografias.

Depois, em casa, quando as vejo fico surpreendida.



de barco é que vejo a cidade

enquanto remo fujo e me esqueço
com um espelho que inverte o que escrevo

Tudo me parece belo, em harmonia, as cores parecem-me alegres, não ouço o ranger das cordas, os gemidos, os embates violentos, não sinto a solidão. E as pessoas que, no início do passeio, quase dia ainda, saíam dos barcos, apressadas, quase fugindo de um cais que balouçava, metálico, ruidoso, um som de choro  pungente, quase me parecem tranquilas. E o relógio que ali está quase parece um adereço elegante e lógico. E, no entanto, está parado, indiferente ao avanço das horas, indiferente ao tempo que passa.



entro (...) com a sensação de que alguns dos meus amigos vivem algures
semeados pela terra branca de cal
(e que) vieram de propósito para (...) olhar o relógio inverso

(...) trazem presas sobre os ombros armaduras delicadas 


Mas o homem que, sozinho, num anoitecer escuro, frio, desolado, se sentava absorto num banco junto ao rio, entregue ao assombro e aos gemidos, de frente para uma Lisboa que se tinha, entretanto, começado a iluminar, continua aqui, na fotografia, a parecer-me um homem solitário numa noite bela e desolada.



os gritos
os ritos
as misericórdias
as flâmulas azuleantes
o céu de fogo enfurecido
o lume a queimar as lájeas

o tempo
a loucura erguia uma instalação
a cidade uma performance


'Dá-me essa escrita, a língua. Estas palavras é que são o meu poema.'


«« \\\///  »»

E agora uma outra música, por favor e com vossa licença, que esta, por ser música de fundo para o nosso Governo, é das boas

Rosinha - Mete mais um dedo
(Desculpem-me os meus leitores, mas não descobri música mais apropriada)


Depois do que escrevi com tanto gosto, faz agora ainda sentido estragar o ambiente e falar da descoordenação, da desvergonha, da incompetência deste Governo? Deste Governo que, conforme aparece aos nossos olhos, esconde, encobre, manipula, mente, desmente, diz, desdiz? 

Pois... se calhar não... Mas tem que ser.

Um dia dizem que a supressão dos subsídios de férias e natal é coisa pontual, provisória, só mais um ano, depois outro diz que é mais ou menos isso mas não é bem, depois um funcionário europeu diz que isso é coisa ainda a ver. Vem o Relvas e diz que é só mais um bocadinho, vem o putativo gato Gaspar e, muito devagarinho e ainda mal refeito da surpresa que é para ele este desemprego galopante, diz uma baboseira qualquer - que ninguém retém porque ninguém retém nada do que ele diz, já toda a gente sabe que não acerta uma - e, no final, rematando à baliza, vem o pasteleiro de Massamá e, numa entrevista, diz que talvez lá para 2015, aos poucos, aos bochechos.

E, já para não falar, que novas medidas, novo golpe de mão se começa a desenhar - porque tudo o que andam a fazer está a dar mau resultado e, como ainda não perceberam que o remédio está a fazer mal à saúde, vá de reforçarem a dose...! Que medo...!

E eu ouço-os, vejo a baralhada, vejo o descalabro, vejo a confusão e o descontrolo e, mais uma vez, penso que não sabem o que andam a fazer, não sabem, são mesmo muito incompetentes. Pode ser que andem a cumprir a agenda de interesses instalados e ocultos, dos grandes interesses financeiros, pode ser isso tudo mas penso que, acima de tudo, o que há é incompetência pura. É que mesmo que andassem a mando de interesses sinistros, de negócios orquestrados à distância, poderiam fazê-lo com inteligência, com alguma elegância. Mas  não. São incompetentes em toda a linha. A economia está a ser destruída, os portugueses estão a ficar pobres, falidos, desesperados - às mãos de um conjunto de pessoas sem competência para governar nem uma chafarica, quanto mais um País .

E, enquanto isso, o que faz o maior partido da oposição...?

Pois bem, com o País a desagregar-se, o PS auto-regurgita em circuito fechado (seja lá o que isto queira dizer). Às mãos de fracas figuras, gente medrosa e nervosa, os socialistas discutem estatutos, reprimendas, uns demitem-se, outros aconselham outros a demitir-se, o tal sobrinho de uma qualquer tia velha e bafienta, Tozé Seguro de seu nome, vai para a TVI ter um chilique em directo, a fazer biquinho, que foram maus para ele e mais não sei o quê (e foram, Marcelo foi a velha víbora do mamar doce que já se sabe - mas, oh caraças, o Tozé não sabe que quem está na política tem que ter poder de encaixe...? Então, de cada vez que lhe pregarem uma partida, vai desatar a fazer beicinho? E em público, ainda por cima...?). A esta hora em que estou a escrever, ouço na televisão que ainda estão todos reunidos, o Tozé e os deputados.

Uma tristeza. Em vez de estarem a desmascarar a incompetência do Governo andam nisto.

Isabel Moreira, a indómita criatura que anda a agitar as águas no PS

No meio desta chachada, a única coisa a que consigo achar graça é aos desmandos da deputada independente Isabel Moreira que anda a dar cabo da cabeça daquela malta toda. Aquela é das que marra a direito (e que me desculpem os meus leitores pelo plebeísmo da expressão). E nem olha a quem. Coitados do Zorrinho e do Tozé.

E por aqui me fico, que hoje nem queria falar disto, estava numa de peace and love. Mas poderia lá eu deixar de comentar tanto disparate pegado?

«««»»»

Bom. Adiante que se faz tarde.

As fotografias foram todas feitas no Ginjal e as legendas são excertos ad hoc do poema 'O longo texto da noite, com Lisboa' de José-Alberto Marques in British Barthes.

Por falar em poesia, já sabem que gosto muito de vos ter lá no meu outro blogue, no Ginjal e Lisboa. Hoje temos palavras em volta da revolta de Inês Lourenço e, a acompanhar, Uma Lágrima de Mussorgsky.

»»»»««««

Para limpar os ares poluídos da conversa política/partidária ali de cima, aceitem por favor esta última sugestão:

Paul Simon e Art Garfunkel - The Boxer


E tenham, meus Caros, uma boa quinta feira.

quinta-feira, dezembro 08, 2011

Estou acima das nuvens, bem junto ao céu, somewhere over the rainbow. Comigo estão os pássaros e Polina Semionova e Vladimir Malakhov, magníficos em Caravaggio


Depois de abaixo ter escrito sobre as dívidas de Sócrates e sobre as dívidas de meio mundo, agora é altura de colocarmos um pouco de música para acompanhar o que se segue.

Podem carregar no play, por favor, e seguir em frente?


Pois é, meus queridos amigos. Sou urbana, executiva, supostamente eficiente e cosmopolita - às vezes. Outras, sou rural, camponesa, podo árvores do campo, construo caminhos, e sou fazedora de tapetes, ou pintora acidental.

Outras sou eremita, bicho do mato mais profundo. É assim que estou agora - recolhi-me à montanha, procurei as alturas, o Portugal mais antigo, mais isolado, mais no meio de nada. Aqui em cima sou o pássaro que gostava de ser, estou perto do céu, longe do ruído, longe da confusão. Aqui há um silêncio absoluto, há uma luz límpida, cristalina, um ar frio e puro, selvagem.

A cerca de 1.100 metros de altitude, hoje acordei e o que vi foi isto.


Um mar de límpido algodão a meus pés. Nem queria acreditar. Parecia uma sucessão de lagos brancos e macios e, no meio, os cumes dos montes, azuis, perfeitos, quase abstractos.



Por cima, um céu azul, limpo, nu, imaculado. Só então percebi que estava acima das nuvens. Somewhere over the rainbow skies are blue. Ah aqui não há crise do euro, não há merkel, durão, passos, nada disso.

Aqui há pureza, rochedos imensos, árvores orgulhosas, gente verdadeira, oxigénio, aviões que deixam um risco branco no céu, um frio que limpa os pulmões.


E este branco limpo que parece gelo e não é, que é o mundo visto de cima das nuvens, um mundo transparente, secreto, em que as aves passeiam e cantam junto a nós, e depois levantam voo. E eu voo com elas, livre, liberta.

Mais tarde, as nuvens desfizeram-se, talvez tenha chovido lá em baixo - não aqui. Aqui esteve sempre sol. E então a paisagem revelou-se de novo, mulher despida, sem vestes de veludo branco.


E, para terminar, apetece-me dançar, voar.

Fiquem comigo um pouco mais. Convido-vos a ver Polina Semionova e Vladimir Malakhov (Staatsballett Berlin) em Caravaggio, qualquer coisa de sublime.




Tenham um bom dia, meus Amigos.