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sábado, julho 09, 2022

Carecas há muitos...
-- Post de resposta a um comentário da Janita --
[Leitura desaconselhada a homens cabeludos]

 

Muito cedo se percebeu que o jovem e garboso oficial de marinha estava a ver o seu cabelo enfraquecido. Quando tinha entrado ao serviço tinha o seu cabelo muito preto, ondulado, pela nuca. Não me lembro mas, quando foi incorporado, deve tê-lo cortado. Creio que manteve a barba. Podia ir ali ver as fotografias mas não me apetece, tenho quase a certeza que a manteve. 

Quando saía, usava geralmente boné (que lhe ficava a matar). Lá dentro, no quartel, devia usar outra coisa, creio que se chamava bivaque. Atribuíamos o enfraquecimento capilar a isso, a usar sempre qualquer coisa na cabeça, o cabelo não devia respirar bem.

Gostava tanto daquele cabelo que era com uma certa pena que olhava para o que se avizinhava.

Uma vez, num fim de semana, tínhamos lá em casa uns amigos, uma das quais médica. Lembrei-me de lhe perguntar se havia algum tratamento que travasse a queda ou o enfraquecimento capilar. E, então, ela explicou que pode ser genético, pode ser por vários motivos mas que o mais frequente tem a ver com hormonas. Mais concretamente, pode ter a ver com ter bastante testosterona. Explicou cientificamente. E, estudiosa como era, a explicação pareceu-me credível. 

Claro que fiquei contente. Não apenas tinha um homem todo giro como estava comprovado aquilo que eu estava farta de saber: testosterona era coisa de cuja falta não podia queixar-se. Claro está que me marimbei para todas as outras causas e me fixei na mais sexy.

Também já aqui contei que, uma vez, por causa disto cometi uma gaffe que me perseguiu durante anos. 

Era ao fim da tarde, num daqueles momentos em que trocávamos uns dedos de prosa para nos despedirmos dos afazeres do dia. Falava-se de tudo. Éramos amigos, éramos bem dispostos, éramos desinibidos. Eram tempos épicos. Às tantas, no meu gabinete, eles começaram a falar de um shampoo de que lhes tinham falado para fortalecer o cabelo e nitidamente estavam contentes por ainda terem boa cabeleira. E, então, impensadamente, saiu-me a explicação da minha amiga, que a quantidade de cabelo tinha geralmente a ver, na proporção inversa, com a quantidade de testosterona. Lembro-me de um, admirado com o que eu tinha dito, ter balbuciado: 'Testosterona...?'. E eu, sem perceber que o que eles estavam era encabulados, esclareci um bocado a medo, já percebendo que estava a deslizar para terrenos escorregadios: 'A hormona da virilidade...' E eles, embasbacados, sorriso amarelo, meio em silêncio. Devem ter pensado que, afinal, se calhar, pelo menos a meus olhos, não tinham assim tantas razões para se gabarem... Lembro-me que um deles fez de conta que ia bater com a cabeça na parede. Percebi imediatamente a minha gaffe. Ainda tentei disfarçar, falar na boa alimentação, noutras causas. Mas o disparate estava consumado.

Passado algum tempo, um colega contou-me que tinha ouvido a secretária a dizer a outra que a calvície resultava essencialmente de uma testosterona bem servida. A outra estava na dúvida. E a primeira tinha certificado a qualidade da informação, dizendo que tinha sido eu que o tinha dito, como se, portanto, fosse cientificamente inquestionável. O que ele ria ao contar isto. 

Ou seja, a coisa tinha-se espalhado. Hoje dir-se-ia que tinha viralizado.

Outra vez, numa reunião formal, com muita gente, um falou numa pessoa de uma certa empresa. Um outro não estava a ver quem era, pediu-lhe para descrever. O primeiro descreveu e, no meio da descrição, veio que era careca. Ao ouvir isso, um outro, do outro lado da mesa, exclamou: 'Ui... careca...? Aqui a doutora tem uma teoria sobre isso...'. Isto numa mesa cheia de homens. Fiquei passada. Os outros, a olharem para mim, à espera. E eu, entalada, sem ter como explicar aquilo ali, no meio de tanto cabeludo... Só visto. Ainda hoje me lembro dele com ar gozão, os outros todos à espera e eu sem saber como sair daquela.

Durante muito tempo, se eu falava de algum homem dizendo que tinha cabeleira farta, logo alguém fazia um ar malicioso, olhava para mim e dizia ou fazia um gesto com o polegar para baixo, significando que eu acharia que se trataria de alguém de fraca macheza.

E agora estou a escrever isto e a pensar que deveria era estar caladinha. Não sei da poda o suficiente para estar para aqui a botar faladura. Se calhar quem tem a testosterona a bombar terá mesmo uma certa queda para a ausência capilar. Mas se calhar também há casos em que a cabeleira é tão forte e de tão boa qualidade que bem pode a testosterona tentar estrangular os cabelos que eles não caem nem por mais uma. E também pode haver carecas que têm uma testosterona toda aguada, fraquinha, fraquinha, mas que padecem de outra coisa qualquer que lhes dá cabo do cabelo. Portanto, nada de foguetes antes de tempo nem desmoralizações precipitadas.

Mas isto para dizer que, quando digo que o meu marido é careca, não o faço por maldade. Faço-o pois é o que ele é. E eu gosto. 

Gosto mesmo. O pouco cabelo que tem, grisalho, usa-o quase completamente rapado e muitas vezes sou eu que o rapo. Usa barba, agora também grisalha. Tem uma cabeça bonita, bem desenhada, fica bastante bonito. Gosto bastante.

Aliás, não se costuma dizer que é dos carecas que elas gostam...?

Claro que há alguns cabeludos de que também gosto. Mas, se fizer uma estatística mental, tenho ideia de que estão em minoria.

Agora uma coisa tenho aqui que esclarecer: dos carecas eu gosto dos orgulhosamente carecas. Não posso com carecas de capachinho nem carecas de cabelinho repuxado dos lados e colado no topo, se calhar para fazer de conta que nasceu ali em cima. Ná. Isso nem pensar.

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Já agora, o charme de Malkovitch e de Patrick Stewart a dizerem poesia. E que bem que a cabeça lisa lhes vai com o tom de voz.


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Desejo-vos um sábado bom

Ar fresco. Muita água. Saúde e paz.

terça-feira, outubro 19, 2021

Oito filmes razoavelmente eróticos

 



Segunda-feira nunca é um bom dia. É daqueles axiomas que é bom que ninguém ouse questionar. Segunda-feira é o início do que pode vir a ser uma sucessão de dias carregados de chatices. Numa segunda-feira as tréguas do fim de semana ainda estão longínquas. 

[Os Leitores reformados, ao lerem isto, esfregam as mãos de contentes: para eles todos os dias são fim de semana. Bem sei. São uns sortudos. Mas lá chegaremos, nós os pobres coitados que por aqui ainda andamos a trabucar.]

Enquanto não, tenta levar-se o melhor possível embora haja quem não se aguente sem moer a paciência aos outros. Para mim o pior é quando olho para a agenda e penso que tenho ali um buraquinho que virá mesmo a calhar para repousar a minha beleza e, acto contínuo, logo recebo uma chamada a pedir que arranje um bocadinho para uma reunião urgente. E uma pessoa tenta que não mas, às tantas, não tem como não e lá se vai o buraquinho à vida. 

[A língua portuguesa é traiçoeira, também sei]

Agora tenho aqui uma coisa a chamar por mim. Ainda antes de ir para a cama terei que ver e despachar esse assunto. Não me apetece nem um pouco pois estive a trabalhar até há pouco, estou mais do que saturada. Mas, quando o dever me chama, parece que não consigo entregar-me ao desfrute da escrita mesmo se de uma colecção de frioleiras postas em palavras se tratar.  Podia saltar por cima disto, do blog. Pois podia. Mas, enfim, ficar sem escrever também não consigo. Addicted to writing.

E, então, pensei escrever sobre uma coisa que li na Vogue francesa: as cenas mais eróticas do cinema. Fui conferir, curiosa. Como é costume nestas coisas, parece que quem escolhe os melhores livros, os melhores filmes, as melhores cenas faz de propósito para deixar os outros a sentirem-se ignorantes. Dos oito filmes, apenas conheço três. E das cenas que consegui ver, talvez por descontextualizadas, não achei grandes espingardas. Além disso, agora acontece uma coisa que me encanita solenemente: ao seleccionar um vídeo que contenha alguma ceninha mais encaloradita, o Youcoiso pede que comprove que sou adulta. Não estou para isso, era o que me faltava. Portanto, como não estou para fornecer comprovativos, marimbo-me para as ditas cenas. 

A beatice vai alastrando. Claro que há que acautelar que as coisas não sejam vistas por crianças. Mas, caneco, parece que preferia as salas de cinema em que a barragem era feita à porta. Agora aqui...? Não basta a publicidade em cima de tudo senão ainda isto...? Que seca, caraças.

Por isso, com tanto entrave e chachada, desisto das listas alheias. Acontece que, para listas próprias, tenho um problema do escambau: não as tenho anotadas, não as tenho de cabeça e, pior ainda, a cabeça não está formatada para fazê-las.

Posso aqui enunciar algumas cenas ou alguns filmes que tenho a certeza que amanhã me ocorrerão outros, provavelmente mil vezes melhores. E não estou certa de que o algoritmo que é mais lápis azul e beato que fedorentozinho de antanho me deixe abrir o vídeo para conferir. Vou tentar mas, acreditem, não garanto que seja muito para levar a sério. E são oito apenas porque não posso ficar aqui a noite toda a puxar pela cabeça ou a tentar encontrar vídeos que expliquem o critério. 

.  1  .

Lady Chatterly, na versão de Pascale Ferran, com Marina Hands e Jean-Louis Coulloc'h um filme belo demais. Mas, mais do que caliente, é belo, belo demais. As cenas mais eróticas apenas são disponibilizadas a quem provar que é adulto. Portanto, vai o trailer.


.  2  .

Dangerous Liaisons de Stephen Frears com Glenn Close, John Malkovich e Michelle Pfeiffer, um filme sensual da cabeça aos pés, passando pela insolente língua de Malkovich (e isto já para não falar do olhar, da voz, das mãos, do andar dele, o descaradão e perverso do Visconde de Valmont)


.  3  .

The Horse Whisperer de Robert Redford com ele e com Meryl Streep, envolvente demais


.  4  .

Damage de Louis Malle com Juliete Binoche e Jeremy Irons. Tem a chatice de não acabar bem mas, antes de acabar, é bom até dizer chea, a começar e a acabar na voz do Jeremy Irons


.  5  .

The Unbearable Lightness of Being de Philip Kaufman com Daniel Day-Lewis, Juliette Binoche, Lena Olin, um filme para sempre, com cenas inesquecíveis (a Lena Olin ficará para sempre na minha memória com aquele seu chapéu)


.  6  .

Closer de Mike Nichols com Julia Roberts, Jude Law, Clive Owen
[Larry : You like him coming in your face?; Anna : Yes!  Larry : What does it taste like?; Anna : It tastes like you but sweeter!]



.  7  .

La vie d'Adèle de Abdellatif Kechiche com Léa Seydoux e Adèle Exarchopoulos
O azul definitivamente a cor mais quente


. 8  . 

The French Lieutenant's Woman de Karel Reisz com Meryl Streep e Jeremy Irons. 
Intemporal, belo.


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Desejo-vos uma boa terça-feira
Saúde. Alegria. Boa sorte.

sábado, janeiro 18, 2020

Sobre a masculinidade nos tempos correntes





Estive a ver o mais recente vídeo de Iman Amrani sobre a masculinidade nos tempos que correm. E fiquei com vontade de dizer de minha justiça. Sou uma apreciadora de homens. Não quero, com isso, dizer que sou especialista em homens até porque não sei o que é ser-se especialista em homens. O que sei é que gosto de os observar, de os conhecer. E gosto de conviver com homens. Desde que me conheço que convivo muito mais com o sexo masculino e que tenho como melhores amigos homens, (tal como em criança, com meninos e, em adolescente, com rapazes). Não sou nem nunca fui maria-rapaz e, no entanto, o meu gosto em conviver com o sexo feminino é marginal. 

E a forma como os homens, de qualquer idade, confiam em mim e me confidenciam aspectos absolutamente pessoais nunca deixará de me surpreender. Mas isso acontece também com mulheres. 

Esta semana um jovem que trabalha comigo veio ao meu gabinete, puxou uma cadeira e sentou-se perto de mim e, sem que eu pudesse esperar tal coisa, começou a contar-me o que o afligia, as suas inquietações. Com as lágrimas a aflorarem, olhando-me, ficava, por vezes, em silêncio. Ouvi-o, fiz-lhe perguntas, aconselhei-o. Mas ele estava com necessidade de falar, de ouvir, de companhia. Demorou-se. É um belo rapaz e, nem por um instante, achei que, lá por estar a expor de forma tão desarmada a sua vulnerabilidade, havia ali algum défice de virilidade.

Onde eu vejo fraca virilidade é nos homens que alimentam o culto do corpo. Homens que querem ter músculos muito trabalhados ou tudo muito vistoso ou que vão em modas e se depilam, desde pernas, axilas, peito ou, mesmo, sobrancelhas, esses é que eu acho que são inseguros, pouco másculos. Pode ser preconceito meu, claro, mas tenho para mim que homem que é homem mantém o seu estado natural (ou quase natural). Homem que é homem sabe que o que atrai uma mulher é coisa de outra natureza.

Por acaso até gosto de homens bonitos, com um bom corpo, com um andar convicente, com um sorriso irrecusável, com um olhar descarado se bem que educado, com umas mãos capazes de tudo e até de trabalhos físicos, sejam eles arranjos domésticos, cortar lenha, atear uma boa fogueira, dar uma boa massagem.

Mas, a par disso, aprecio a inteligência, a insubmissão, a delicadeza, a compreensão, a irreverência, o sentido de humor, a elegância na exposição dos seus sentimentos. E a sua generosidade, e a sua segurança, e as suas maneiras sejam elas, por vezes, boas, sejam elas, por vezes, indesculpáveis. E os seus conhecimentos que devem ser sempre superiores aos meus e a sua capacidade de surpreender e a sua disponibilidade para agradar. E deve ser capaz, quando menos se espera, de dizer um poema.

E deve ser capaz de, em momentos especiais, tirar-nos o tapete, deixar-nos sem chão. Mas deve, de seguida, amparar-nos, segurar-nos nos braços. E rir connosco. E deve ser capaz de nos fazer sentir melhores do que somos. E deve estar para nós, sempre, incondicionalmente.

E deve saber falar-nos numa voz que ora seja encorpada, com a densidade de quem tem uma alma com muitas faces, ora seja suave e silenciosa como uma carícia.

Coisas assim. Nada de mais.

Ora, em tudo isso, para quê um corpo musculado ad nauseam?

Penso que os homens que se arranjam muito, que prestam muita atenção ao corpo, que fazem questão de exibir músculos avantajados, que ligam muito à marca das camisas ou das gravatas, aos relógios ou aos carros, ou que vaidosamente desfiam os lugares em que estiveram, os restaurantes ou hotéis da moda, ou que citam autores a granel o fazem para se exibirem não perante as mulheres mas perante os outros homens, numa competição pueril que nada tem a ver com virilidade.

Mas, claro, isto sou eu. E ainda bem que há para todos os gostos.

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Por mim, prefiro um milhão de vezes a masculinidade contida e 'interior' de David Gilmour à histriónica masculinidade de alguns dos atletas que aqui abaixo deitam testosterona por todos os poros.


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'Usei' para ilustrar o texto o Malkovitch (pintado por Marat Cherny), o Brad Pitt, o David Gandy e o Jeremy Irons (pintado por Nathan Chantob) para mostrar alguns homens que me agradam.

Convido-vos, ainda, a descerem um pouco mais para verem os poemas que o LS me enviou.

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A todos desejo um bom sábado.

quinta-feira, novembro 09, 2017

Noite de histórias





Benedita foi tomar um duche. Apanhou o cabelo, vestiu uma roupa leve. Jantaram. Benedita e Filipe. Meninha acompanhou-os, bebendo chá e petiscando bolachas marinheiras com compota de laranja. 

De vez em quando o semblante de Benedita toldava-se. Por vezes, dizia em voz baixa: 'Preocupada...' Mas logo os outros diziam: 'Não penses nisso, descansa' Não sabiam mas intuíam que o problema da mãe não devia ser grave. Talvez não soubessem que as doenças da alma anulam a alegria de quem as vive e de quem lhes está próximo. Mas Benedita estava esgotada e qualquer palavra de ânimo lhe servia de âncora ou para a fazer sentir menos culpada por não passar vinte e quatro horas por dia tentando retirar a mãe do poço de angústias em que insistentemente tentava afogar-se.

No fim do jantar, voltaram para a sala. Filipe falava, contava histórias, tentava aligeirar o ambiente. Meninha levantou-se, pediu para ir lavar a louça, depois pediu para ir buscar um pente e pentear Benedita. Explicou: 'Mexer na cabeça, acalma. Deixa eu pentear, fazer trança, escovar'. Benedita, que antes de jantar, chegou a dar uma animada, tinha-se ido abaixo e já não conseguia argumentar. 

Meninha chegou da casa de banho com uma braçada de material. 'Senta numa cadeira'. Pôs-lhe uma toalha pelos ombros e começou a penteá-la. Apanhou o cabelo, soltou, fez tranças, escovou. Benedita deixou. Sentia-se mais tranquila.


Depois Meninha lembrou: 'Queria que eu contasse história, não era, Beny? História eu não tenho pr'a contar, não, mas Filipe que é vivido deve ter. Porque não pede a ele que lhe conte história?'

Filipe não percebeu mas Benedita gostou da ideia. 'Senta-te aqui à minha frente, Filipe, conta-me de ti'.

Filipe obedeceu. Pegou numa cadeira e sentou-se. Os seus joelhos quase tocavam os joelhos de Benedita.

E, então, em voz baixa, de vez em quando fechando os olhos, começou: 'Já vivi muito, sim. Já tive muitas ideias e achava que era especial por ter tantas ideias. Já ganhei muito dinheiro e achava que era rico e que sempre me sentiria motivado a ter mais. E já tive muitos ideais e convicções e achava que isso era um rumo de que nunca me desviaria. Até que percebi que vivia melhor se aceitasse não saber nada. E que vivia melhor se não tivesse que me preocupar com as aplicações do dinheiro. E que vivia melhor se aceitasse que o rumo se fosse desenhando a cada dia. Fui muito bom aluno e tinha orgulho disso. Agora reconheço que pouco me lembro do que aprendi. E era muito ambicioso a nível profissional. Fiz uma carreira internacional. Sacrifiquei tudo, muitas vezes mudei de casa, mudei de país. E mudei de mulher. Cheguei a estar casado e a achar que estaria casado para sempre. Mas tudo foi perdendo relevância. Desabituei-me do afecto. Desabituei-me da mulher por quem me tinha apaixonado ainda adolescente, desabituei-me da minha filha, desabituei-me dos meus pais. Seduzir mulheres passou a ser um hobby. Olhar para elas e pensar: 'De quanto tempo vou precisar para a ter nos meus braços?' e o tempo ia sendo cada vez menor porque fui aperfeiçoando a técnica. Por fim trabalhava em Paris onde tinha um apartamento. Fiz coisas de que hoje me arrependo. Excessos. Abusos. De vária ordem. Depois, um dia, sozinho, senti-me mal. A custo, cheguei ao hospital. Fiquei internado. Não recebi visitas. Longe da família, sem querer ligar a amigos, conhecidos ou namoradas. Os médicos mandaram-me parar com os excessos. Mas não foram os médicos. Fui eu. De repente, parecia-me que estava a fazer tudo mal. Despedi-me. Estive uns meses sem trabalhar. Depois resolvi criar esta minha pequena empresa de consultoria em patentes e marcas. E dedicar-me à fotografia. Calhou, um dia, ver numa esplanada uma figura conhecida do mundo da moda. Pedi para fotografá-la. Foi o princípio. Tenho tido sorte. Sinto-me livre. Reaproximei-me dos meus pais, já tão velhos, reaproximei-me da minha filha. É mais velha que vocês. Está grávida. Vou ser avô.'

Meninha ia entrançando o cabelo de Beny. Pôs-lhe uma fita a fazer de gargantilha, pintou-a, Beny parecia nem sentir. Estava alheada. A mente de novo fora do corpo. E foi deixando que as pernas de Filipe se encostassem às suas, aconchegada e encantada. Tinha, outra vez, vontade de chorar, agradecida por Filipe estar ali, contando a sua vida.

Meninha quebrou a emoção do momento: 'E nunca mais teve vontade de fazer neném, não, Filipe?'

Beny zangou-se: 'Que é isso, Meninha...?'

Mas Filipe respondeu, rindo: 'Ah, isso tenho sempre, Meninha. E se estou perto de mulher bonita não posso dizer que a vontade não espreite. Mas estou mais selectivo. Dantes cada mulher era um desafio pois não descansava enquanto não a sentia rendida. Hoje não, hoje quero sentir afecto de verdade. Respondi...?'

'Não leve a mal, Filipe, mas não acredito em si, não. Não leve a mal mas olho pr'a você e vejo alguém que está sempre pronto pr'a facturar'

'Não, Meninha, estou ficando mais velho, já perdi a pressa. Agora quero vagares. Mas, então, agora conte você'

Meninha se furtou: 'Nada pr'a contar, não, Filipe. Vida de pobre não tem história, só míngua. Não gosto de falar. Me faz regressar e eu isso não quero, não. Conta tu, Beny.'

'Vida de pobre não tem história e vida de mulher bonita também não. Não é míngua mas é fartura, que vai dar no mesmo', disse Beny. 'Mas quero continuar a ouvir a tua voz; Filipe. Sinto que a tua voz me abraça. Pode ser?'. Depois, percebeu: 'Era a tua melhor arma de sedução, não era, Filipe? A voz...?'

Filipe disfarçou, fez ar sério, compenetrado e falou como se estivesse a brincar, 'Não sei. Talvez. Mas mais pelo picante que sei pôr nela. Ou o olhar, diziam que o meu também, mas só quando mostro que quero conhecer a intimidade daquelas a quem olho. Ou a língua, o jeito como, quem querer, molho os lábios, deixando perceber que estão a precisar da outros -- de outros lábios, quero eu dizer.'

Benedita e Meninha ouviam-no, fascinadas. Mas logo Filipe fez género: 'Mas isso era dantes. Agora não gosto de me arriscar, agora prefiro ser seduzido. E já estou velho para isso...'

Sem querer, Beny deixou sair: 'Mostra como é, Filipe. Seduz-me. Melhor: seduz às duas, a mim e a Meninha ao mesmo tempo. Tenta ver se a gente cai nos teus braços.'

Mas Meninha, gemendo: 'Ai... Beny... que é isso...? Sou moça comprometida.... Faz isso, não...'

E, então, Beny: 'Chata que é, Meninha, não quer nada. Não ligues, Filipe. Ou, então, espera, para começar, diz-me um poema. E aviso já: é meio caminho andado'

E, então, Filipe, olhando Benedita nos olhos, disse: 'Para ti, wild rose, minha princesa, para que me deixes depois fazer a outra metade do caminho'. Mas depois sentiu-se indelicado e corrigiu, fingindo que sorria: 'Para vocês, para as duas donzelas do meu coração'. Depois acrescentou: 'Assim de repente, acho que é o único de que me lembro...'


A drowning swimmers dream


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O episódio que acabaram de ler e que acabei de escrever, o sétimo, vem na sequência de:
Sexto episódio: Noite de juízo
Quinto episódio: A solidão das mulheres bonitas
Quarto episódio: Actos falhados, sentimentos desencontrados 
Terceiro episódio: Uma wild rose com red carnations nos seios 
Segundo episódio: Beny e Meninha numa tarde especialmente quente
Primeiro episódio: Wild Rose

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quarta-feira, novembro 08, 2017

Noite de juízo





E, então, quando estavam a começar a jantar, tocou o telemóvel. Benedita atendeu. Mal se ouvia do outro lado. O coração de Benedita disparou. 'Mãe....! O que foi...? Fala!'. Silêncio. Depois uns gemidos. 'Mãe! O que foi? Fala!'. Depois conseguiu perceber. A mãe dizia: 'Caí... Não consigo levantar-me...'. Benedita calçou-se, pegou na carteira e na chave do carro e disse: 'A minha mãe. Não sei se é grave. Depois ligo. Fica à vontade, janta, não esperes por mim.' Meninha ainda quis acompanhá-la mas não deu tempo.


Foi numa correria. Quando lá chegou, a casa às escuras. Foi acendendo luzes enquanto chamava pela mãe. Nada. 'Mãe!' Nada. Foi de encontro a um móvel, magoou-se, uma dor no ombro mas nem deu por isso. O coração disparado, uma aflição. 'Mãe!'. Até que, junto à cama, a viu caída. O coração quase parou de medo. 'Mãe!' Nada. O corpo numa posição estranha, torcida. Gelada de medo, Meninha encostou a mão à boca da mãe. Sentiu que respirava. Abanou-a. Bateu-lhe na cara. Nada. Quando, a tremer, tentava marcar o 112, ouviu a mãe a dizer: 'Caí...' De olhos abertos mas desfocados, olhando à toa, Iolanda gemia. Benedita tentou levantá-la. Não conseguiu. A mãe estava transformada num corpo morto. Tremendo, conseguiu a ligação. Passado um bocado chegou o INEM. Observaram a mãe, fizeram perguntas à filha. Depois pegaram nela, puseram-na cama. Tinha-se urinado. Estava molhada, o chão molhado. Benedita ficou envergonhada pela mãe. No fim disseram que ela estava estável, não lhe encontravam nada. Estava sedada, provavelmente tinha abusado na dose. Dormindo, passava-lhe. Devia ter querido ir à casa de banho e, meio a dormir, ter-se-ia desequilibrado. Mas estava em cima do tapete, nem devia ter dado um único passo. Respirava tranquilamente. Os técnicos do INEM sorriram: 'A senhora sua mãe vai dormir o sono dos justos'

Quando saíram, Benedita desatou a chorar. Mais um susto. Quantos já? Quantos mais? Estava cansada. Odiou a mãe por tudo o que a fazia passar. Não era justo. Instantes depois, já mais calma, pensou lá ficar, velar pela mãe, coitada da mãe, tão sozinha, tão triste. Mas depois pensou que a mãe nem dava por ela, estar ou não estar era a mesma coisa. Saiu. Mas antes aconchegou-lhe a roupa da cama, beijou-a na testa.

Mal tinha entrado no carro, o telemóvel. Filipe. Hesitou. Estava sem forças, desfeita. Não tinha disposição para conversas. Mas atendeu. Filipe percebeu pela voz. 'Então? O que é isso? Estás a chorar?'. Benedita voltou a chorar, uma pena crescente de si própria. Não conseguiu falar. Filipe perguntou: 'Onde estás?' Benedita, a custo, disse que ia para casa. Filipe disse: 'Vou lá ter. Conduz com cuidado, vai devagar'

Quando Benedita estava a entrar em casa, estava a campainha lá de baixo a tocar.

Meninha surpreendida: 'Oi! Que animação, esta. Está esperando alguém, Beny?'. Mas Benedita não respondeu. Meninha, já aflita: 'Que foi Beny? Que cara é essa, menina? Que foi que aconteceu? Tá chorando?'. Benedita sentou-se, encolhida, o rosto tapado. Chorava, sim. 'O mesmo de sempre. Mas assusto-me. Tenho medo que um dia nem consiga ligar-me. Não consigo assistir à auto-destruição da minha mãe... não consigo...'.

Chegou, então, Filipe. 'O que é que aconteceu?'. Meninha encolheu os ombros e falou baixinho: 'Qualquer coisa com a mãe. Mas não deve ter sido nada de grave porque Beny foi lá e voltou'.


Filipe sentou-se ao lado de Beny, um braço sobre os seus ombros. Do outro lado, Meninha, fazendo-lhe festas no rosto e nas mãos. Filipe, apreensivo e solidário, aconchegava Beny e, sem saber o que se passava, dizia: 'Então? Toda a gente tem problemas, acontece, não há famílias perfeitas. Ou ela está doente...? Ou houve briga...?'. Benedita apenas chorava. E Meninha dizia: 'Lembra que é uma wild rose. Não chora, não, Beny. Logo, logo tudo fica bom...'

E ali ficaram um bocado.

Depois Meninha disse: 'Seu sushi está esperando por você, Beny. E dá para Filipe.' Depois de uma pausa, completou: 'Fiz uma coisa. Tenho que me desculpar. Não queria lhe dizer. Não quis fazer feio, criar desfeita. Mas não gosto de peixe cru, não. Estava me enchendo de coragem e, por dentro, toda numa ânsia. Ia fechar o nariz por dentro e tragar a coisa. Mas como você não estava, aliviei minha vergonha e deixei de lado. Olha, abusei de sua confiança, Beny, fui no frigo. Tirei um ovo. Melhor: dois. Mexi dois ovos. Me desculpa, Beny'. Benedita sorriu: 'Podia ter dito, que eu tinha pedido chinês, Meninha...'

E então foram os três para a mesa que ainda estava posta. Mas logo Filipe se levantou e perguntou se podia escolher uma música. Beny encolheu os ombros e com o queixo apontou na direcção dos CD's. Filipe escolheu. Nina Simone. Mr. Bojangles. Depois, quando ia sentar-se, disse com aquele seu sorriso feito pedaço de mau bocado: 'E depois da janta, alguma das meninas vai dar-me a honra da uma dança...?' e piscou o olho a Benedita. Mas Beny estava jururu. Disse: 'Estou preocupada. Não sei se não devia ir dormir a casa da minha mãe'. Depois, uma lágrima querendo escorrer no rosto: 'Dança com a Meninha'

E, dizendo isto, espreitou a surpresa dele e, de imediato, o seu olhar incendiou o coração de Filipe. Beny, mesmo estando assim, triste e derrotada, sentia que a wild rose vibrava dentro de si. Mesmo não o sabendo, queria festa, ela. E em segredo, indecente, pensou: a ver se Filipe está à altura.

Depois, o olhar ainda pior, pecaminoso de tão inocente, desafiou: 'Ou dança para mim; Filipe'. Filipe fez um esforço para não se afundar, logo ali, no tentador abismo do olhar de Beny. Mas se susteve. Ainda era cedo.


He looked to me to be the eyes of age
As he spoke right out
He talked of life

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O episódio que acabaram de ler, o sexto, vem na sequência de:
Quinto episódio: A solidão das mulheres bonitas
Quarto episódio: Actos falhados, sentimentos desencontrados 
Terceiro episódio: Uma wild rose com red carnations nos seios 
Segundo episódio: Beny e Meninha numa tarde especialmente quente
Primeiro episódio: Wild Rose
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segunda-feira, novembro 06, 2017

Actos falhados, sentimentos desencontrados





Benedita telefona à mãe pela sexta vez e nada. A manhã vai alta e nem consegue sair da cama. Desde que acordou que está a tentar. Já está deveras preocupada. Tem um compromisso, não pode largar tudo e ver o que se passa e isso deixa-a ainda mais inquieta. Também não está a encontrar o número de telefone da nova empregada que vai lá tarde sim, tarde não. Lembrou-se de lhe ligar e pedir que fosse ver se está tudo bem com a mãe. Mas deve estar a fazer confusão com o nome, não o acha. Que preocupação. Quem veja a bela Iolanda sempre tão sorridente não adivinha o problema que ali está. É bem verdade que a passagem de uma vida de glamour com um excesso de solicitações para uma vida quase vazia não deve ser fácil. É também certo que o ver-se sozinha nesta altura da vida, o saber cada filha para seu lado, também não ajuda. E talvez haja alguma carga genética. As depressões sucedem-se. Ou talvez seja sempre a mesma. No outro dia, quando Benedita lá foi, eram duas da tarde e ainda a mãe estava na cama. Levantou-se a custo, o rosto inchado, olhos sem vida, o cabelo a precisar de lavagem. 


Se a sua fotografia aparecesse assim numa revista ninguém reconheceria nela a bela Iolanda que fazia primeiras páginas e que, até não há muito tempo, aparecia na televisão todos os dias em horário nobre.

Saber a mãe assim preocupa e traz tristeza a Benedita. Parece que, qualquer coisa dentro de si está sempre em alerta, com receio de uma outra recaída, sempre temendo uma má notícia.

Mas, então, toca o telemóvel e Benedita logo descontrai: 'Então, mãe? Já tinha ligado não sei quantas vezes. Onde é que estavas? Já estava preocupada. Bolas! Porque é que não atendes?'

A mãe explica que estava a tomar banho, depois a secar o cabelo; não tinha ouvido. E diz que tem que se despachar para não chegar tarde ao ginásio, que combinou com uma amiga irem, antes, beber um sumo, que já está atrasada. E parece sorrir enquanto fala. Mas mente. Não foi isso. Tinha tomado na véspera à noite uma dose tão forte que agora mal conseguia estar acordada, queria era voltar, o mais depressa possível, para a cama. Tão pedrada estava que nem se dava conta da inquietação da filha, queria apenas acabar a conversa para poder dormir em paz.

Contente por julgar a mãe bem, Benedita ficou instantaneamente mais leve, com vontade de festejar. Num instante toma um banho, apanha o cabelo, veste qualquer coisa.


Na véspera, tinha ficado de passar pela casa-estúdio de Filipe, à hora de almoço, para ver as últimas fotografias, para ajudar na escolha de algumas para o editorial da revista e para ver algumas impressões. Mas, nessa manhã, Filipe ligara-lhe e, num entusiasmo, dissera que tinha recebido uma encomenda para mais um trabalho para uma marca de produtos de maquilhagem, que fosse preparada que aproveitavam e faziam já uma breve sessão para testar umas ideias.

Antes de sair, já toda animada, liga a Meninha: 'Escuta, vou ao Filipe para ver umas provas e para ensaiar uma sessão. Pode vir, Meninha? É uma cena de make up, sem suas mãos não vai ter graça'. Meninha geme: 'Aiii... Tinha prometido ir mais logo dar um jeito na mulher de meu padrinho que eles vão numa tal de vernissage e devo tantos favores pr'a ele... A que horas seria isso, Beny?'. Benedita diz que era logo, logo, que ficariam despachadas num instante, que a seguir Filipe voltaria para as suas patentes, que daria mais que tempo pr'a ir pôr nova a velha. Meninha diz que então sim mas reforça que, logo, logo teria que sair pr'a não deixar pendurada a mulher de seu padrinho.

Quando lá chega, Filipe cumprimenta-a com aquela discrição pudica tão própria dos verdadeiros apaixonados e que bem pode passar por um simples cumprimento profissional. Está desfardado, todo na ganga, aspecto desconstruído, bom para pôr as mãos nele e voltar a construir, pensa, sem mostrar que pensa, Benedita. E mostra a sua admiração: 'Que é isto, Filipe? Não foste trabalhar?'. Filipe está contente: 'Estive a trabalhar em casa. Daqui a nada já me fardo. Vou para o escritório daqui a nada e fico lá até à noite. Pode ser, chefinha...?'

Pouco depois chega Meninha. Vem afobada, tanta pressa que tem. Filipe mostra algum enfado, não estava à espera, pensava que ia ter Beny só para si, mas logo se recompõe e, como se tivesse tido uma ideia, sorri (e sorri com aquele seu ar safado de quem já está a visualizar a cena na qual a sua imaginação ainda só meteu um pé): 'Beny, a tua assistente não quererá participar na sessão? É bonita, tem carisma. Capaz de se tirar muita coisa dela...'

Benedita não presta atenção. Está concentrada em Meninha: 'Menina! Nunca te vi assim... Mas onde vais, tão chique assim....?'

Meninha senta-se a descansar. Depois diz que veio já vestida toda prosa para dali ir directa para casa do padrinho, que naquela casa tem que entrar toda feita madame que padrinho é homem recto, não quer jeito de desaforo na casa onde a esposa exerce suas virtudes.

Benedita ri. 'Mas é que caprichaste mesmo, ninguém ousará dizer que não vais tu também para a vernissage, mesmo para um baptizado... Menina!'

Filipe olha Meninha com atenção. Depois começa a fotografá-la. Benedita espia o olhar de Filipe, quer perceber se é também olhar guloso, igual ao que faz para si. Mas não consegue perceber. Talvez seja olhar profissional, toda a gente diz que Filipe é um artista, mas Benedita não sabe ser isenta. Disfarça apenas.

A seguir, ela mesma, enquanto Meninha faz olhos cândidos e jeito inocente para a objectiva de Filipe, começa a pintar-se. Mas, talvez inconscientemente, decide exorbitar a ver se Filipe percebe que ela está ali, a ver de Meninha percebe que está ali para a ajudar e não para sobressair.


Mas Filipe e Meninha parecem esquecidos dela. Ele aproxima a lente, deixa que a luz incida no cabelo selvagem da morena, foca-a de lado, aponta ao jeito tímido dela. E ela deixa-se estar, gosta de ver como Filipe se interessa pela sua beleza. 

Espiando num canto, Benedita sente a frialdade da inquietação. Até que, com espanto e incómodo, ouve Filipe a dizer com aquela sua voz que se baixa até se tornar uma indecência: 'Gostava de fotografar o seu corpo. Não quer tirar a blusa?'. 

Benedita sente-se ofendida,  tem vontade de o atacar, mas nada diz. E, então, ouve Meninha dizer com voz ríspida: 'Sou moça de me despir com essa facilidade não, viu? Homem que queira ver meu corpo tem que me conquistar muito, sabia? Não quero saber se isso é trabalho, se é arte, se quê, sei é que meu corpo é especial de mais para ser servido assim, com essa facilidade, viu?'. Põe-se de pé e, decidida, pega na bolsinha e sai batendo a porta.

Benedita, sem pensar, faz o mesmo.

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O episódio que acabaram de ler, o quarto, vem na sequência de:
Terceiro episódio: Uma wild rose com red carnations nos seios
Segundo episódio: Beny e Meninha numa tarde especialmente quente
Primeiro episódio: Wild Rose
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sábado, novembro 04, 2017

Uma wild rose com red carnations nos seios





Esta, hoje, já não é uma cidade do sul, branca e radiosa. Esfriou. Chove. Ouve-se a chuva e está escuro. É bom. 

Fecha os olhos. Deixa que as palavras ocupem todo o espaço que a habita. Como num sonho, as palavras vão sendo desfiadas:
Um pintor que promete um quadro. Um quadro com veludos, ombros macios, paisagens esfumadas e outras abstracções. Um retrato e, olhando bem o fundo dos olhos, vê-se que deles, nascem incompreensíveis flores. Memória de um dia, descendo a escadaria de uma casa antiga, um vestido amarelo com folhos e os folhos ondulando.  E tudo o vento levou. Um labirinto habitado por sombras e ninguém percebe de onde elas vêm. Sussurros, risos e malícias e não se vê ninguém. Livros fechados de onde saem mãos que escrevem elegantes versos. A memória de um sorriso no espelho e não se sabe a quem pertence o sorriso. Uma mesa posta debaixo de um grande pinheiro manso e a toalha a esvoaçar ao de leve com a aragem da tarde. Mil pássaros invisíveis cantando ao fim dessa tarde. Um bilhete de amor encontrado no seio de um livro. Uma mão morena e macia deslizando nos seus seios. Um capuccino bebido devagar numa tarde envolta em neblinas de outono. Uma roseira brava trepando em volta do tronco do pinheiro. Pétalas caídas sobre a caruma. Where the wild roses grow
As palavras vão rolando no seu pensamento. Benedita gosta de estar assim, descansada, entregue ao prazer de ver deslizar palavras sem sequência lógica, sem motivo. Não tenta compreendê-las, muito menos detê-las.

Está em casa. Uma música soando, little girl blue, a chuva caindo e ela nisto, sonhos, suaves delírios.

Depois abre os olhos, vê as horas. Filipe não deve tardar. Quer fotografá-la em casa e ela não se importa. É muito louco, ele. Vai para além da loucura normal. É cheio de silêncios mas ela sente que escondem pensamentos perigosos. Tem perversidade na forma como olha. Anda em volta dela como um tigre e tem uma voz que a subverte. Mas ela deixa. Gosta. A mãe teme o que ele possa fazer-lhe mas, no fundo, Benedita sabe que é nela que está o perigo, que, se quiser, Filipe será a sua presa. Mas não quer. Quer apenas deixar-se estar e ele que esvoace em sua volta como um felino voador.

E então ele chega. Logo o seu olhar percorre a beleza de Beny. Quase num desinteresse, ela pergunta-lhe: 'Como foi o dia? Muitas patentes?'. Ele sorriu. 'Um dia trato de registar a patente desta tua beleza'. Para ganhar dinheiro, trata de patentes e propriedade intelectual. Depois, por prazer, fotografa. Fotografia de moda, sobretudo, mas não só. Meteu na cabeça fazer um livro e uma exposição só com fotografias de Beny. Ela não quer saber.

Se um dia Beny quiser apaixonar-se a sério será por alguém igual a Filipe. Não por Filipe porque sente que Filipe é homem demais para ela que é frágil e teme deixar-se conhecer por um homem com um olhar tão intenso quanto ele.

Filipe tira a gravata, pede para se descalçar. Depois começa a olhá-la de vários ângulos. Pega na máquina e deixa-se cair de joelhos. O corpo de Beny tenta-o mas não se aproxima. Ela é bela e etérea demais e ele teme que ela o violente com tanta beleza.

'Estavas a fazer o quê, antes de eu chegar?', pergunta-lhe mas talvez apenas para fazer conversa que o que quer é olhar para ela.

'Estava a ouvir palavras dentro de mim. Mas, agora que chegaste, di-las tu. Diz baixinho, como se me dissesses segredos. Gosto de ouvir a tua voz. Diz o que quiseres. Diz o que te vier à cabeça'.

E Filipe diz e diz cada vez mais baixinho, como numa confissão:
'O teu corpo longínquo. O teu olhar demasiado perigoso. Os teus lábios carnudos que devem saber a ameixas doces. As minhas mãos que sonham com o teu corpo. As saudades que sinto quando estou longe de ti. A vontade que tenho de correr para ti. A curva do teu ombro e a minha mão que nunca pousou nele. O teu cabelo que imagino pesado e que nunca pesei na concha das minhas mãos. O perfume do teu cabelo, da tua nuca, dos teus seios, das tuas pernas e do que se esconde entre elas. Os teus silêncios que não sei desvendar. O teu coração que não sei a quem pertence. Os teus pensamentos que não sei onde estão. As minhas mãos que passeiam sobre as tuas fotos, como se não fossem apenas papel ou um vidro no computador. A tua alma que ainda não aprendi a capturar'.
Depois, vendo que Beny, de olhos enlevados, parece entregue às suas palavras, detém-se. 'O que estou eu para aqui a dizer...?'. Então, atalha bruscamente: 'Despe-te, quero fotografar-te nua'. E espera. Depois: 'Olha assim para mim, quero apanhar esse teu olhar'.

Benedita diz -- e há uma perturbante malícia na sua voz indiferente: 'Ofereço-me toda ao teu olhar mas não quero que fiques com os meus mamilos à tua disposição. Não quero que lhes mexas quando passares as mãos nas fotografias'.

Filipe finge que brinca: 'Não é justo...' mas logo o sorriso se esvai quando a vê, perfeita, inocente, nua. 'Põe-te ao pé dos cravos, vou fazer nascer cravos dos teus seios. Os cravos da paz para que saibas que a ti, oh bela deusa, nunca tentarei conquistar-te pela força'.


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Este capítulo, o terceiro deste folhetim que ainda não faço ideia onde irá parar, vem na sequência de Beny e Meninha numa tarde especialmente quente

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Entretanto, para quem não é dado a folhetins, sugiro o post abaixo: A beleza assombrosa dos pinheiros. Só lá falta mesmo o epitáfio.

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quinta-feira, maio 04, 2017

What's in a name?
["Se ao menos eu pudesse mudar de nome", lamenta-se William Bradley Pitt]


A primeira vez que o vi foi no Thelma and Louise. Era um rapaz com uma sensualidade transbordante, uma malícia implícita cativante, um físico absolutamente convincente. 


Se até aí eu me enlevava com Richard Gere, que tinha conhecido -- eu, se bem me lembro, quase menina e moça, -- ele capaz de seduzir de uma assentada toda a população de um convento de freiras tal a sedução que dele emanava em American Gigolo, a partir daí mantive o J.D. debaixo de olho.



Não que seja dada a lourinhos, não sou, mas aquele moço tinha, à vista desarmada, uma boa 'pegada', coisa que mulher que se preze fareja à distância.

Por essa altura eu ia ao cinema muito amiúde. Adorava ir. Aquele escurinho, aquele cheiro, aquele ambiente fascinava-me. Ia muito ao Quarteto apesar de às vezes cheirar a esgoto e apesar do meu namorado da altura (em especial o que viria a ser meu marido) embirrar com o desconforto das cadeiras e com a falta de espaço já que as pernas não lhe cabiam e tinha que as dobrar à frente dele, quase até ao pescoço. E ia ao Satélite, ao Estúdio. E, claro, aos maiores: Império, Monumental, S.Jorge.


Os grandes filmes de Bergman, na época, conviviam, para mim, com o Oficial e Cavalheiro ou o Breathless (que era uma reprise do A bout de souffle) -- filmes que não podia perder para ver o Richard Gere, com aquele seu corpo gingão, aquela capacidade de bem beijar que não está ao alcance de qualquer um.


Acontece que a minha fidelidade é restrita a casos muito particulares e, portanto, depois de ter visto a arte de Brad Pitt, mantive o Richard em banho-maria e, muito santamente, passei a incluir-me entre as devotas do Brad.

O seu desempenho em Lendas de Paixão foi outro momento alto, tornando, só por isso, aquele filme um objecto de culto. 

[Aos destituídos de faro para a ironia, apresento mais um disclaimer: uso aqui a terminologia 'objecto de culto' a propósito deste filme tal como, há dias, usei 'mares do sul' para designar o mar que banha Cádiz. Sou dada a metáforas, se é que ainda não deu para perceber. E tenho dito. Adiante que o momento é de cinefilia e não de semióticas]


Entretanto Richard Gere foi ganhando patine (não perdendo o charme, mas...) e o Brad entrou naquela deriva mediática designada por Brangelina e eu, mais uma vez, fiz swing (and sorry for my french): passei a achar uma certa graça ao Clive Owen.


Enquanto isso, e num registo diferente, encantada pela voz deles, pulava a cerca* com o Jeremy Irons (como não, com aquela voz...?), com o John Malkovitch (aquela irreverência carregada de perversidade é um convite irrecusável) e, até, com o Ralph Fiennes que, parecendo que não, tem uma densidade enleante.
[Outro disclaimer: A cerca das devoções (como dizer?) cinéfilas, of course]





Mas, lá está, aqueles a quem um dia deitei o olho, debaixo de olho ficarão forever e, por isso, o Brad será sempre olhado com o carinho que se dedica aos antigos lover boys.

E, talvez por isso, foi com tristeza que li a entrevista que concedeu agora, confessando o problema de longa data que tinha com álcool, admitindo a sua responsabilidade pelo que aconteceu e que levou ao seu divórcio.


Parece que vive isolado, solitário, dedicando-se à escultura. Reapareceu na capa de uma revista com um ar que faz enternecer qualquer um, em especial aquelas que guardam um cantinho para ele no seu coração.
[Novo disclaimer: cantinho virtual, leia-se]

Magro como um cão sem dono, ar triste, diz até: 'se ao menos pudesse mudar de nome...'

E eu aí tenho que me pôr ao alto. Que é lá isso...? Nem pensar. Qual mudar de nome? No way.

Tanto mais que Brad é, afinal, William e um William não deve nunca renegar o seu nome.


E, afinal de contas, what's in a name?


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E um dia muito feliz a todos quantos por aqui passam.

Be happy.

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quarta-feira, novembro 05, 2014

O paradoxo de John Malkovich. Casanova, Conde de Valmont, Lord Rochester, o sedutor que precisa de silêncio, o homem que recorda a dor como uma sombra ou como um vestígio a esbater-se, o perverso tranquilo que acha que o Porto é fisicamente deslumbrante e que Lisboa é luminosa, o homem com uma voz tremendamente envolvente.


No post abaixo transmiti a minha opinião sobre o aparente desacato da Merkel a propósito de Portugal ter licenciados a mais. Percebo-a. Quando firmo um acordo, também eu faço tudo para forçar o seu cumprimento. Mérito o dela, é o que me ocorre dizer perante a cambada de capachos que vendem Portugal e os Portugueses por dez réis de mel coado e ainda se deixam pisar como servos estúpidos.

Mas isso é a seguir. Aqui, agora, a conversa é outra.




(Sobre o filme Casanova Variations que está prestes a estrear)


O que é que aprendeu?

Aprendi muito acerca do próprio Casanova que era o assunto da biografia dele ("Histoire de ma Vie"), embora ele tenha escrito de modo interessante acerca das viagens, das experiências, das pessoas, do século em que viveu. A sua autobiografia é uma grande leitura, e um registo muito interessante sobre o século XVIII. 
Ele pode ser engraçado... Tem uma memória fantástica para os detalhes, e expressa-se de um modo muito belo em muitas passagens.
Mesmo que, por hipótese, algumas situações nunca tenham acontecido, como alguns defendem, não se pode negar o interesse do que ele escreveu.

Aprendeu alguma coisa acerca da crueldade?

Não penso que ele fosse cruel.

E acerca do amor?

Não tenho a certeza de quanto é que cada um de nós pode saber acerca do amor. 
O que Casanova diz a propósito da dor é tremendamente certeiro.
Quando ele descreve o duelo ("O Duelo") que tem com o conde polaco conta como os dois ficam feridos e depois amigos. Esse episódio é recontado, de certa maneira, no filme, e o papel do conde é interpretado pelo grande tenor alemão Jonas Kaufman. Casanova diz que se lembra da dor no braço onde foi atingido, mas depois corrige [cita de cor]: "Ou melhor, lembro-me de que houve uma dor, um forte ferimento, como um clarão, um ferrão. Não conseguimos lembrar-nos da dor em si. Uma coisa natural é lembrarmo-nos de tudo relacionado com a dor que sentimos, mas a dor em si só pode ser recordada como a sua própria sombra, como um vestígio a esbater-se. A memória ilumina a maior dor com uma luz suportável. Do mesmo modo, não temos recordação da felicidade, apenas do seu reflexo".



Casanova Variations, por Michael Sturminger com John Malkovich


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(Sobre outra das suas várias facetas)


Começo a ficar curiosa acerca do tipo de direcção que dá aos actores.

Há um documentário, "Le Paradoxe de John Malkovich", sobre esse assunto. Vai passar em Portugal. Não lhes digo o que fazer e isso deixa-os loucos.



LE PARADOXE DE JOHN MALKOVICH 

um filme de Pierre-François Limbosch (França, 2014)




É um manipulador, como as suas personagens?

Não. Apenas não lhes digo o que fazer.

Porque não sabe ou porque espera ser surpreendido?

Adoro ser surpreendido. Sei o que quero, mas não sou eu que estou a interpretar. Que diferença faz eu saber ou não? Eles é que têm que saber. 
As pessoas não sabem as coisas apenas porque nós lhas dizemos. As pessoas sabem coisas quando emocional e intelectualmente as compreendem. Se lhe disser como conduzir aqui, você não sabe do que estou a falar. Saberá no momento em que estiver a conduzir aqui. Se disser aos meus filhos para não fazerem isto ou aquilo, eles não vão querer saber do que lhes digo. 
Porquê perder o fôlego? Tenho que deixá-los descobrir quem são as suas personagens, qual é a situação, o que é que aquela personagem sente... Consigo-o dando-lhes confiança, observando-os atentamente e dando-lhes atenção... 
Qual é a percentagem de realizadores que sabem o que é dirigir actores? Menos de cinco por cento! É muito raro encontrar algum que saiba. Eles não sabem nada. Sabem de filmes, de imagens, e podem saber um pouco sobre comportamento humano, mas não muito... Não sabem nada do que realmente significa construir uma performance passo a passo. Eu trabalhei com 78 ou 79 realizadores de cinema e poucos o sabiam.

Vejo algum paralelismo entre o cinema de Oliveira e a forma como fala, nesta conversa como nos filmes. Os longos silêncios, as pausas, o uso do tempo...

Sim, o que não se diz é tão importante como o que se diz. 
O silêncio é sempre muito importante, no cinema como no teatro. 
Não podemos cortar e colar tudo. Vou a um ginásio, não muito longe daqui, e não suporto a maior parte daqueles vídeos dos canais de música.... Cortam, cortam, cortam... São parvos de qualquer maneira. Aqueles vídeos estão editados como se todos tivessem transtorno do défice de atenção. Não tenho isso.

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(Sobre Portugal)


Foi Manoel de Oliveira que o levou a querer filmar no Porto?

Não. Tinha lá estado e pensei... o Porto é um lugar tão sonhador. Tem tanta beleza e ao mesmo tempo decadência e perda. Diria que é fisicamente deslumbrante.

Gosta mais de Lisboa ou do Porto?

Não consigo escolher. Gosto das duas cidades. São tão diferentes. 
Lisboa é tão luminosa, e o Porto não é luminoso, tem um núcleo de uma grande dureza. Há partes do Porto muito, muito bonitas, mas nelas não há luz. O Porto é o oposto da luz. Adoro essa natureza.

E porque é que ainda não se decidiu a mudar?

Para o Porto ou para Lisboa?

Qualquer um deles...

Oh, falamos nisso muitas vezes. Pode acontecer.

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O que acima se lê são excertos não sequenciais de uma invulgar entrevista que John Malkovich concedeu a Cristina Margato para o suplemento Actual do Expresso de 1 de Novembro de 2014. Está de parabéns a Cristina Margato: uma grande entrevista.



(As fotografias que aqui coloquei não são as que acompanham a entrevista. As primeiras duas são imagens do filme Casanova Variations e as restantes foram escolhidas a partir do vasto número de fotografias que os mais diversos fotógrafos têm feito dele.)

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Para finalizar - e porque a voz de Malkovich a dizer poesia é qualquer coisa - permitam que partilhe convosco:

A drowning swimmers dream - poema dito por John Malkovich 


(desconheço o autor do poema que aparece no filme Klimt, sobre Gustav Klimt)





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Relembro: se descerem até ao post seguinte, poderão ler a minha interpretação acerca da desagradável boca de Merkel sobre haver licenciados a mais em Portugal. E desculpem se não sou politicamente correcta mas não, não é na Merkel que eu bato.


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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma boa quarta-feira. 
Be happy.

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