quarta-feira, maio 31, 2017

Ou nada





Espreitar a perspectiva. Cortar a parede para a colar às flores ao longe. As cordas rangendo no rio. O sol a afundar-se no horizonte. As mãos que pensam em silencioso sossego. A árvore que se agita. O tronco da árvore, rugas e pele, calores e frios, cantos de pássaros. O musgo e a flor que se deita sobre ele. O olhar doce que se abeira. A indiferença do gato. As casas ao longe. O momento. O ângulo que a sombra desenha no muro branco. Fotografar.


Pintar. Nasce a forma, imperceptível forma, desfaz-se a cor em várias outras, sublima-se o movimento. Oculta-se. Insinua-se o imperceptível objecto. Oculta-se. Ou apenas se disfarça. Derrama-se a luz. Linhas suaves, uma curva que amacia o olhar. Olha-se e é o irreconhecível. Percebe-se, então, que nada mais há a acrescentar. Tarde, tão tarde já. Noite alta, já madrugada.


Ou uma arca cheia de fios, rolos, meadas. De todas as cores. Um papel muito grande, quadriculado, o quarto de um desenho. Uma grande tela em branco, um tecido que cheira a trabalhos manuais, juta, fios indomesticados, orgânicos. Os joelhos cobertos, a tela que se vai enchendo de desenhos feitos de lã. Cores, uma pintura a formar-se feita de fios de lã. Imensa, calor nas pernas, um peso crescente, um labor insano, uma obra prestes a nascer. Quase, quase. Só mais uma flor. E agora o caule. Quase. Quase. Noite após noite.

E as borboletas no estômago. A página em branco. As borboletas a subirem ao peito. Os dedos a deslizarem no teclado. A borboletas a taparem a visão, a tomarem conta do sentido. Os dedos a procurarem as letras, sozinhos, os dedos com vida própria, as borboletas em volta, as palavras a surgirem. Noite adentro. Até que o cansaço pega nas mãos e as leva a dormir.

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Nada mais a dizer. A não ser ver as imagens que chegam do mundo, esse lugar desconhecido que os nossos corpos habitam (as mentes habitam num outro universo, também desconhecido: aquele em que queríamos estar, aquele em que gostámos de ter estado, aquele que esconde os nossos medos e guarda os nossos sonhos, um mundo só nosso).

Cox’s Bazaar, Bangladesh

A villager heads to a storm shelter as Cyclone Mora hits the region, bringing winds of up to 84mph. Thousands of homes have been damaged and more than 300,000 people have fled coastal villages
[Photograph: AFP/Getty Images]

Balmazujvaros, Hungary

A white stork takes off from a nest at sunset
[Photograph: Zsolt Czegledi/AP]

Bangkok, Thailand

Shopkeepers in flooded streets after heavy rainfall hit the city
[Photograph: Lillian Suwanrumpha/AFP/Getty Images]

Bristol, England

A baby western lowland gorilla in the arms of her mother, Touni, at Bristol Zoo Gardens. The zoo has invited the public to help name the baby
[Photograph: Ben Birchall/PA]
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Ou ler. Ler, Os olhos semi-cerrados, ler em silêncio.

Ou ler em voz alta. Acto de amor. Ler um livro para que o outro ouça o que os nossos olhos lêem.


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Ou dizer com o corpo: poesia-me.


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Ou nada. 
Talvez apenas escrever em silêncio, em segredo. 

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As pinturas são, uma vez mais, de Georgia O'Keeffe. A primeira fotografia é minha. As quatro legendadas em inglês são fotografias do dia do The Guardian, A música lá em cima é interpretada por Catrin Finch e Seckou Keita, Alan Rickman em 'Reading to Marianne' no filme Sense and Sensibility. Carolina Mancuso é uma das bailarinas que dança 'Tiger Lily' numa coreografia de Jiří Kylián

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E, agora, eu desejo a todos os que aqui estão comigo um dia muito feliz.

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terça-feira, maio 30, 2017

Todos os livros que não lemos






Há mais livros neste mundo do que as horas de que dispomos para deles tomar conhecimento. Nem se trata mesmo de ler todos os livros que foram produzidos, mas simplesmente dos mais representativos de uma cultura em particular. Assim, somos profundamente influenciados por livros que não lemos, que não tivemos tempo de ler. 

Quem leu realmente Finnegans Wake -- quero dizer, da primeira à última palavra? Quem leu verdadeiramente a Bíblia, do Génesis ao Apocalipse? Somando todos os extractos que li, posso vangloriar-me de ter lido uma terça parte. Mas não mais que isso. Contudo, tenho uma ideia bastante precisa daquilo que não li.

Confesso ter lido Guerra e Paz apenas aos quarenta anos. Mas conhecia o essencial antes o ler. Quem leu As Mil e Uma Noites da primeira à última página? Quem leu verdadeiramente o Kama Sutra

Contudo, todos podem falar dele e alguns pô-lo em prática. Assim, o mundo está cheio de livros que não lemos, mas de que sabemos praticamente tudo. 

A questão é, pois, saber como conhecemos esses livros. 

Bayard diz que nunca leu o Ulisses de Joyce, mas que está em posição de falar dele aos seus alunos. Ele pode dizer que o livro narra uma história que se situa em Dublin, que o protagonista é um judeu, que a técnica empregue é o monólogo interior, etc. E todos esses elementos, ainda que não o tenha lido, são rigorosamente verdadeiros.

À pessoa que entra na nossa casa pela primeira vez, descobre a nossa imponente biblioteca e não encontra melhor do que perguntar-nos: 'Leu-os todos?', sei de várias maneiras de responder. Um dos meus amigos responderia: 'Mais, senhor, muitos mais'.

Quanto a mim, tenho duas respostas. A primeira é: 'Não. Estes livros são simplesmente os que terei de ler na próxima semana. Os que já li estão na universidade'. A segunda resposta é: 'Não li nenhum destes livros. Senão, porque os guardaria?' 

Há, evidentemente, outras respostas mais polémicas, que humilham ainda mais e frustram mesmo o interlocutor. 

A verdade é que todos possuímos dezenas ou centenas ou mesmo milhares (se a nossa biblioteca for imponente) de livros que nunca lemos. No entanto, num ou outro dia, acabamos por pegar nesses livros para perceber que já os conhecemos. 

Então? 

Primeira explicação ocultista, que não retenho: há ondas que circulam do livro até nós. Segunda explicação: no decorrer dos anos, não é verdade que não tenhamos aberto esse livro: pegámos-lhe repetidas vezes, talvez o tenhamos mesmo folheado, mas não o recordamos. Terceira resposta: durante esses anos, lemos uma quantidade de livros que citavam aquele livro, o qual acaba por se nos tornar familiar. 

Há, pois, diversas formas de saber alguma coisa sobre os livros que não lemos. 

Felizmente! De outro modo, onde arranjar tempo para reler quatro vezes o mesmo livro?


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O texto é o excerto de uma resposta de Umberto Eco a Jean-Philip de Tonnac in 'Não contem com o fim dos livros' e incluído no capítulo cujo título trouxe para encabeçar este post.

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As pinturas foram escolhidas por serem predominantemente em azul 

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Um dia feliz a todos quantos por aqui passam.

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segunda-feira, maio 29, 2017

Sebastião nunca fez uma selfie
(e agora que viu o que os olhos do pai vêem, talvez Juliano o compreenda e aceite melhor)



Fotografar o fotógrafo. Perceber o que vê quem vê. Reconhecer que a fotografia retrata o fotógrafo, mais do que o fotografado.

Tal como ver quem pinta. Tentar perceber como surge o que antes não existia. Acaso? Persistência?

Ou quem escreve. Escreve como? A que horas? De onde surge a ideia? Do mundo real? De sonhos?

E quem esculpe. Descobrir de onde vem a vontade de retirar o material que sobra. Da vontade de moldar a natureza? Do mero gosto em mexer nos materiais?

E os que fazem filmes? Como se forma a ideia? Como o concebem? De olhos fechados, imaginam as sequências, os cenários, as falas?

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Não é preciso tentar perceber a motivação de Juliano, tentar descobrir como nasceu o filme que ajudou a fazer. O Sal da Terra. As razões foram muito concretas e bem pessoais. 


O pai ausente não era perdoado pelo filho, as personalidades chocavam. Os de fora louvavam mas aquele em cujas veias corria o sangue do seu sangue apenas sentia a falta do pai. E, em casa, um irmão com sindroma de Down. E o pai preocupado com as crianças de outras geografias.


Até que, já homem feito, resolveu conhecer os mundos que cativavam o pai, tentar perceber as suas ausências, as suas causas que a tudo pareciam sobrepôr-se.

E, então, Juliano viu. Viu as crianças, a pobreza extrema, a tocante ingenuidade, a beleza suprema da natureza em estado puro, os intocáveis horizontes -- tudo o que enleava o pai e de onde ele regressava com imagens nunca antes antevistas.


O filme não é novidade, terá já uns dois anos mas hoje apeteceu-me ver Juliano e Sebastião juntos a falarem da sua vida em família, tão marcada pela devoção de Sebastião Salgado à fotografia.




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E, se vos apetecer descansar o espírito, queiram fazer o favor de descer e meditar um pouco na No Regret Farm onde as cabrinhas são fisioterapeutas do corpo e da alma.

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O poder curativo das cabras



Cada vida é uma sucessão de acasos e de escolhas em cima da carga genética e das circunstâncias, tantas vezes circunstâncias alheias. Não está tudo predestinado -- mas parte está. O que talvez não esteja é o que acontece na camada opcional, ou seja, na forma como se reage perante o acaso (ou o imprevisto).

Perante a adversidade, algumas pessoas não encontram forças para superar a derrota ou o sofrimento ou a infelicidade ou o medo. Mas outras, com ou sem apoio, conseguem dar a volta por cima, reinventar uma outra vida, encontrar novos caminhos, aventurar-se pelo que parece um inextricável labirinto.

De um período difícil a nível pessoal (divórcio, descoberta de ser portadora de uma complicada doença degenerativa auto-imune) e com a vida profissional num impasse, Lainey Morse entregou-se a uma ideia que poderia ser banal mas que acabou por ser um sucesso.



Contudo, o sucesso neste caso não se mede em cotações de Wall Street, em notações de agências de rating, em contas bancárias com muitos cifrões. Neste caso, o sucesso mede-se em número de pessoas que visitam a No Regrets Farm, ou seja, a quinta de Lainey, para frequentarem as aulas de ioga em pleno campo, com cabrinhas a brincarem por perto, ao lado, em cima.


Tudo começou por acaso. Mas as oportunidades que se escondem nos acasos por vezes são postas de lado ou, quantas vezes, fechadas em si próprias, as pessoas nem se apercebem do que pode ser desenhado a partir de uma simples palavra, de uma inócua sugestão. Agarrar uma oportunidade e com ela transformar o infortúnio em esperança, isso, sim, faz a diferença.


Lainey tinha decidido ir para o campo. Depois decidiu ter cabrinhas. Depois foi arranjando o sítio e divulgando. Um dia, num leilão a favor de uma causa social, Lainey doou uma festa de aniversário para crianças na sua quinta. Uma mulher comprou a festa. Lainey decorou a quinta e a festa foi mágica. As pessoas estavam fascinadas com as cabrinhas brincalhonas e meigas. Nessa festa estava uma mãe que era professora de ioga e que lhe perguntou se ela já tinha pensado abrir a quinta para aulas de ioga. E logo ali surgiu a ideia do ioga com cabras.

As aulas esgotaram e as inscrições chegam de todo o lado. 

São apenas seis as cabrinhas mas transmitem harmonia, oferecem ternura. São uma distração, são uma terapia. Há pessoas com depressões, pessoas que tentam recuperar de situações difíceis, pessoas que querem, simplesmente, descansar, tranquilizar a mente, reencontrar a serenidade. Ou apenas passar um bom bocado.


O campo é o espaço em que mais facilmente se reencontra o ponto de equilíbrio e o afecto simples dos animais é, muitas vezes, o carinho que faz tão bem a quem vive momentos de tristeza ou pesada solidão.


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domingo, maio 28, 2017

Penso coisas tão profundas e sinto-me tão mal
que penso que sou um Intelectual.
E penso coisas tão mal e sinto-me tão profundo
que devo ser o Maior Intelectual do Mundo!





.  1  .

A leitura é uma espécie de celebração mágica. É a maneira de paradoxalmente descobrirmos que a realidade é aquilo que sonhamos e não aquilo que temos entre as mãos. É essa espécie de travessia de continentes. Que não existem. E nos quais reconhecemos aquilo que é mais profundo em nós e que não pode ser dito.


.  2  .

O problema é que os poderes do entretenimentos, sedutores e a exigirem uma entrega cega e sem reservas, são destrutivos. É uma das modalidades da irracionalidade do nosso mundo que não convivem bem com o pensamento, com uma certa distância, uma certa afirmação da autonomia individual, que são aspectos críticos para a literatura. Quando se liga a televisão, um dos emblemas maiores do entretenimento, há três coisas maravilhosas que acabam: o escuro, o silêncio e a solidão. Decisivas substâncias de que se faz a literatura, de que se faz a poesia. Onde está a música do pensamento no meio desse som e fúria sem contemplações a que se chama entretenimento?


.  3  .

A poesia e o romance não exprimem factos ou verdades, mas a possibilidade da verdade. Poesia e romance são o tempo interrogativo, o céu da possibilidade.


Senhor, permite que algo permaneça, 
alguma palavra ou alguma lembrança, 
que alguma coisa possa ter sido 
de outra maneira, 
não digo a morte, nem a vida, 
mas alguma coisa mais insubstancial. 
Se não para que me deste os substantivos e os verbos, 
o medo e a esperança, 
a urze e o salgueiro, 
os meus heróis e os meus livros? 

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Autores das palavras

1. Eduardo Lourenço

2. Luís Quintais

3. Paulo José Miranda

Título e poema no final - Manuel António Pina

[Tudo lido no livro 'Vale a pena?' - conversas com escritores de Inês Fonseca Santos]

Autor da música e das imagens do vídeo

Ketil Bjørnstad – Prelude 13
Fotógrafo – ©Hal Eastman

Fotografias

Minhas, in heaven

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Uma dança a três





Se quisesse, podia ir tentar descobrir quando anos vive uma ave destas. Mas a verdade é que não sei que ave é. Apenas sei que é uma ave de grande porte.

Desde que me lembro que, de vez em quando, em especial ao fim da tarde, vejo três a voarem em roda, muito alto, lá ao fundo, na fronteira dos nossos limites.

Ponho-me a olhar e é uma dança -- uma sobe ainda mais e as outras esperam, depois sobem também, andam em volta, depois trocam de posição, uma afasta-se mas por pouco tempo porque as outras logo se lhes juntam, depois quase param como se estivessem em formação, depois voltam a deslizar, aproveitam o vento, rodopiam, descem perigosamente e logo sobem, sempre em volta, largas voltas.

Sento-me de cabeça no ar a vê-las. É um movimento encantatório. Hoje tentei fotografá-las. Mas estão muito lá em cima e deslocam-se com alguma velocidade e dificilmente as apanho. Se lhes dou muito zoom para que se perceba mais do que uma pequena mancha logo saem do ângulo de visão. 

Aproveitou-se, e mal, esta que vos mostro.

Mas há uma dúvida que me acompanha: estas três, que vejo há anos e anos a voarem sempre juntas, serão sempre as mesmas? Ou, caso tal não seja biologicamente possível, será que umas vão morrendo e há sempre uma nova apta a juntar-se? E só haverá por aqui três aves destas ou estas são as que gostam de fazer este bailado, juntas, ao fim do dia?

Não sei. Mas isto intriga-me. Melhor: maravilha-me.

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sábado, maio 27, 2017

Talvez





Já não me lembro se foi pelo Natal ou em que circunstância e se foi para os dois ou só para um deles. Tenho uma vaga ideia de que terá sido para o meu pai e que, logo na altura, detectei a surpresa e a ironia que tentavam disfarçar. Eu achava tão bonito e esperava embevecimento e não foi isso que vi. Simpaticamente diziam que era bonito, que gostavam, mas eu sentia que não sabiam bem o que dizer. Que idade teria eu? Nove? Dez? Menos? Sei que quis oferecer um presente escolhido por mim. Lembro-me de andar a pensar, de andar com a minha mãe e a olhar para as montras para secretamente ir percebendo o que havia de ser. Até que um dia vi numa montra uma peça que, logo, logo, me pareceu perfeita. Então combinei que um dia me afastaria da minha mãe para ir sozinha à loja. E assim foi. Lembro-me que era muito cara, muito mais do que esperava. Mas o dinheiro que levava era suficiente.

Em casa, escondi bem o presente. No dia certo, quando abriram, foi o que vos contei. Era um borreguinho branco, em biscuit. Peça com talvez menos de 10 com de tamanho, um borreguinho mesmo pequenino, naturalista, perfeitinho.


Hoje percebo o desconcerto deles. Lembro-me deles a mostrarem aos meus avós ou aos meus tios o presente que eu lhes tinha dado, escolhido e pago por mim. Mas lembro-me bem de perceber que sentiam vontade de rir e eu não percebia porquê. Ainda lá está.

Hoje estive lá ao fim do dia, quando regressei do meu compromisso. Vejo as mesmas peças de sempre, nos mesmos lugares de sempre. Por vezes penso que o tempo ali parou.


Uma fotografia tirada no fotógrafo quando eu teria acabado de fazer dezassete anos. O meu namorado de altura disse que gostava de ter uma fotografia minha, em ponto grande. Em ponto grande porque, se calhar, tinha em tipo passe. Esta terá uns quinze por vinte, coisa assim. Achei um disparate. Parece que apenas faço sentido ao vivo, com o que digo ou calo, a forma como olho ou rio. Não me reconheço quando me vejo cristalizada e fez-me impressão que ele não pensasse como eu. Que graça teria olhar para uma imagem de mim num bocado de papel?

Um dia passámos em frente do fotógrafo mais conhecido da cidade e ele, vendo algumas fotografias expostas, disse que era mesmo assim, que gostava de ter uma como aquelas. Por coisas dessas, tão contrárias à minha natureza, o namoro estava fadado para não dar certo. Mas, na altura, eu achava que devia esforçar-me para desvalorizar insignificâncias e acabei por lhe fazer a vontade. Quando a viu ficou maravilhado. Eu não. Para mim aquela fotografia não fazia sentido. Mas a minha mãe viu as provas, gostou muito, mandou fazer mais uma e colocou-a numa moldura. Lá está. Cabelos bem compridos, sorriso ao de leve, uma adolescente a esforçar-se por fazer um agrado ao namorado. 


Em cima da camilha da sala está também uma coisa minha, que quis lá deixar ficar. Pelos meus anos pedi-lhe que me oferecesse alguns dos seus poemas que eram feitos para mim ou sobre mim, mas manuscritos. Fez mais que isso. Com a sua bonita letra, em tinta permanente, num papel de densa gramagem e encadernado a pele, fez um livro. Comoveu-me esse presente. Está lá. Quem o recebeu foi a adolescente da fotografia no fotógrafo, não a que fui depois disso.

E estão fotografias de netos e bisnetos, sobrinhos e sobrinhos-netos. Em algumas fotografias os netos tinham a idade que têm agora os bisnetos. O tempo passa a correr. Lembro-me tão bem de ter ido comprar, toda orgulhosa, o borreguinho. E tão bem que me lembro dos meus filhos, de tronco nu, a regarem o jardim da avó, o mesmo jardim onde agora os seus filhos brincam da mesma maneira.

Não sei se é o tempo que passa por mim, e passa correndo, se sou eu que faço a minha caminhada pela vida, andando mais depressa do que devia. Talvez seja isso, mas em vez de andar, talvez voe. Talvez como um pássaro, talvez como num sonho. Talvez.

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Saudade em forma de palavras

[Leonard Cohen - Bοοκ of longing - a poesia dita sobre música de Philip Glass]



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As fotografias são de Geert Weggen que gosta de fotografar esquilos (e percebe-se porquê)

Lá em cima também era Leonard Cohen. Interpretava Bird on the Wire

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Como esta sexta-feira me levantei muito cedo e porque o dia foi preenchido e cansativo, estou incapaz de pensar, não sei sobre que é que escrevi. Provavelmente não escrevi. Ou, se escrevi, foi sobre coisa nenhuma. Talvez esteja aqui apenas para vos dizer olá. 

Vou descansar. Talvez amanhã consiga escrever sobre coisas que interessem. Talvez. Talvez.

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E um dia feliz a todos quantos por aqui passam.

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sexta-feira, maio 26, 2017

O que fazer quando tudo arde?
- Talvez tocar violino --



Já o contei: nem sei onde morreu o meu bisavô, pai do meu avô paterno. Penso que na Venezuela, mas não estou certa. Pode ter sido na Argentina. A ver se não me esqueço de perguntar à minha mãe.

Ninguém na família quis saber dele. Perdeu casas, 'propriedades', cavalos e gado, dinheiro. Era um jogador, é a ideia que tenho do pouco que diziam. Desfez o morgadio e fugiu, deixando para trás, e no desamparo, mulher e três filhos. De uma 'casa' abastada passaram para uma situação complicada. Sobraram ainda alguns terrenos e a casa onde viviam. Mais tarde, o meu avô, já adolescente, espírito aventureiro, pôs-se a caminho, andou por Espanha e por França antes de, com vinte e poucos anos, conhecer uma rapariga sete mais jovem e com ela se casar. Quando sobre mim diziam que era muito nova para me casar, a minha avó uma dessas pessoas, o meu avô disse de forma a que ela o ouvisse, 'Não ligues. Com dezoito anos teve ela o teu pai'.

Mas, então, o meu bisavô era visto pela família como um cobarde. A minha mãe, tenho ideia que achava que não era isso, que era um aventureiro. Do meu pai nunca ouvi uma palavra sobre o avô. Do meu avô também nunca ouvi uma palavra sobre o pai.


Nunca mais ele quis saber da mulher e dos filhos, e eles pagaram-lhe da mesma moeda: caíu sobre ele um desinteresse total. Pelo menos em público era isso que manifestavam.

A minha mãe contou, creio que depois dos meus avós terem morrido, que achava que ele quis reaproximar-se ou regressar e que de cá teve apenas silêncio e desprezo. Tenho ideia que a minha mãe viu uma carta dele, escondida.

Talvez, por lá, por onde andou, tenha tido outra família, mais filhos, talvez por lá andem agora outros bisnetos. Não faço ideia. Nunca ninguém quis saber. Por vezes penso e nisso e faz-me impressão. Talvez devesse ter tentado esclarecer algumas coisas. Contudo, creio que já é tarde para isso. O meu avô está morto e o meu pai já vive num outro comprimento de onda. O meu tio, irmão do meu pai, está bem mas também nunca manifestou qualquer interesse no assunto. Também já o contei: ainda há um terreno no Algarve, um terreno bom, num sítio bom. Calhou, em partilhas, ao meu avô. Provavelmente já alguém lhe chamou um figo. Ninguém, da família, mexeu, até hoje, uma palha para o passar para o nosso nome (presumo que esteja ainda em nome desse desconhecido bisavô).

Mas não é por isso, até porque não estou certa do destino que, há talvez cem anos, esse desconhecido tomou -- mas a Venezuela para mim é um país longínquo, geografica e emocionalmente.

Politicamente também. Nem o Chávez me entusiasmava: tudo distante, tudo a milhas da minha lógica, dos meus afectos, dos meus gostos.

Este agora que por lá anda parece que não sabe (nem nunca soube) o que é ser presidente de um país. Nada contra os motoristas de autocarro, nem contra os motoristas que se fazem sindicalistas. Mas faz-me alguma espécie que daí se passe a ministro e, daí, a presidente de um país. Nicolás Maduro desagrada-me como presidente. Não sei se é populista, se excessivamente nacionalista, se é apenas impreparado para a função.

O que se passa agora na Venezuela é outra desgraça. Maduro mantém-se em funções com a rua descontrolada, com as lojas vazias, as fábricas paradas, a loucura à solta.


No entanto, eis que no meio da maior tensão e violência, entre gente que se apedreja, caminha um jovem tocando violino.

Se no post abaixo mostro como a palavra se elevou para aglutinar as emoções e as catapultar sob a forma de coragem contra o terror anónimo, aqui, agora, é a música.

Chama-se Wuilly Arteaga, tem 23 anos, gosta de se vestir com as cores do país e tem uma coragem que impressiona. Para ele, a música simboliza a paz e a coragem e, por isso, como que protegido por um invisível escudo, ele caminha pela rua, tocando violino.



Infelizmente, a sorte abandonou-o: esta quarta-feira, a polícia motorizada avançou sobre ele, magoou-o e partiu-lhe o violino. É em lágrimas que ele nos aparece, com o violino -- que ele diz ser a sua ferramente a favor da paz -- sem cordas.

Entretanto, já há um grupo a mobilizar-se para arranjar dinheiro para lhe comprarem outro violino.

O vídeo abaixo, publicado esta quinta-feira, mostra-o nas ruas, antes disso, tocando.

E eu vendo isto, volto a uma pergunta semelhante à que, no post abaixo, formulei: para que serve a música? Para que serve a arte?
Pode a arte ser uma arma mais poderosa do que as armas tradicionais?
Quem dela se mune para a luta não tem mais coragem do que os que se escondem atrás de escudos para agredir sem ser agredido?
Não sei responder com certezas absolutas mas admito que sim.

E admito também que a vida, tal como a vamos aceitand.o merece alguma reflexão. Por exemplo: quem são os verdadeiros novos heróis deste estúpido mundo?



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Face ao terror que derruba inocentes eis que se levanta o poder da palavra


A poesia serve para quê?

Um poeta é útil para quê?

As palavras valem o quê perante a força destrutiva de uma bomba que explode no meio de um grupo de jovens?

Perante a comoção, o desgosto e o medo da população de que serve um homem levantar-se e dizer um poema?

Nada?

Ou tudo?

Que outra força pode transformar a emoção em força? Que outra força senão a da palavra? Que outra força transforma o espanto e o terror em coragem? Que outra força transforma o emudecimento em palavras senão a da poesia?

Tony Walsh, conhecido por Longfella (por ser muito alto) leu um poema seu na vigília pelas vítimas em Manchester e emocionou a multidão.



Independentemente da qualidade do poema, do que vi nos vídeos, o que ali se passou foi extraordinário.

Vejam, por favor.



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quinta-feira, maio 25, 2017

O elogio, pela boca de Schäuble, de que Centeno é o Cristiano Ronaldo do Eurofin é a pimenta que faltava no cu de Passos Coelho


Não posso aqui desfiar tudo o que me tem ocorrido desde que li que Schäuble disse que Centeno é “o Ronaldo do Ecofin”. 


A minha veia metafórica borbulha com verdadeiras epifanias em torno do tema. 
Vejo o Schäuble a seviciar, com esgares de sadismo, a sua dilecta pupila Pinókia Albuquerca, vejo o Schäuble a obrigar o servil Gaspar a praticar actos impuros (e abstenho-me de usar a partícula reflexa para não dizerem que estou a pisar a linha encarnada), vejo o Láparo pelas ruas da amargura, a correr com o rabo em chamas ou então a ganir de rua em rua e o mastim alemão a acelerar na cadeira de rodas atrás dele, a rosnar-lhe, de dente afiado... vejo coisas assim -- mas tudo em brejeiro, tudo recorrendo a um vocabulário vernacular, impróprio para consumo.
Ajoelhou... tem que rezar!

[Ai não, não era isso, desculpem: era 'tem que pagar']

Ora, atendendo a que este é um salão onde se usa apenas o mais fino léxico e a mais requintada semântica e que eu própria cubro o meu púdico rosto quando alguma ideia menos piedosa se me ocorre, coibo-me de aqui verbalizar os meus pensamentos.


Limito-me a, caridosamente, recomendar ao nosso Láparo de estimação que, depois desta do Schäuble a comparar o Centeno ao CR7 

  -- e do Marcelo, esse ubíquo e fofo catavento, vir dizer que por uma vez o sinistro Rottweiler não tinha pensado mal -- 

tente ele (ele, Láparo) acalmar o ânus com água de malvas, quiçá aplicar também unguento para assaduras (vaselina não, que isso poderia dar más ideias a algum malandreco que tenha contas a ajustar). Ou, não tendo nada disso em casa, pois que encha o bidé de água, coloque lá uns cubos de gelo, e ponha o rabo de molho. Há-de passar. O tempo tudo cura.


Ok, ok, já sei que tenho um coração de manteiga, sempre com pena dos desvalidos. Mas, fazer o quê?, estou com uma peninha dele... cada vez numa saia mais justa, sem chão onde pôr o pé... Só falta mesmo a Teodora oferecer flores ao Costa e fazer um striptease para agradar ao Centeno. Sim, já só falta isso.
Portanto, com vossa licença não falo mais no assunto. Pena, pena do pobre coitado. Apenas transcrevo mais uma coisitinha que li:

“Há doze meses, era tudo tão diferente. Portugal estava à beira das sanções económicas da União Europeia e o sucesso do seu novo Governo de coligação de esquerda estava longe de ser assegurado. Hoje, já não viola as regras orçamentais da UE e espera entregar antecipadamente 10 mil milhões de euros ao FMI”, lê-se na newsletter do “Politico” (que acompanha as políticas e personalidades da União Europeia).

Ui... Coitado do láparo.

[E mais não digo. Não quero que pensem que gosto de pisar em quem já está mais do que no chão, e ainda por cima, agora, o pobre com o rabiosque a arder daquela boa maneira. Ainda vinham dizer que eu sou insensível ao sofrimento do coitado do láparo ou dizer-me que estou assim porque não é comigo, que pimenta no cu dos outros é refresco. Não, não. Calo-me já.]


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Mas, já agora, permitam que partilhe convosco a lembrancinha que o ex-amigo do coração, Schäuble de sua graça, (ex-amigo do láparo, atenção! -- não meu), lhe deixou aqui para o poor, poor coitado, ir ouvindo enquanto estiver a tentar apaziguar os calores da assadura anal.

[And pardon my french]



Uuuuhhh...

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As imagens que usei para enfeitar o misericordioso texto provêm da infindável arca do saudoso blog We Have Kaos in the Garden

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E, depois desta cena triste e meio escatológica, caso queiram purificar-se, desçam por favor para irem ao encontro do Pato Donald, da viúva em vida Perpétua Melania e de sua filha igualmente viúva, a Barbie Ivanka, e mais uns quantos deslassados que foram de visita ao Vaticano, moer a paciência ao pobre Francisco.

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As viúvas beatas foram ao beija-mão mas, cá para mim, o Papa só não lhes deu um chega-para-lá porque é bem educado.
[O Pato Donald Trump, a desinfeliz Melania armada em jararaca, a menina Ivanka feita Neuzinha piedosa e mais uns quantos saídos de um filme cómico iam tirando o Papa Francisco do sério]



O semblante de Jorge Bergoglio ao receber aquela tropa fandanga não engana. Homem-humano como é, deveria era estar com vontade de dar uma valente rabecada naquele que é uma das grandes ameaças para os Estados Unidos (e para o mundo), o estupor que brinca às guerras, que despede a eito quem não lhe faz todas as vontades, o atrasado mental que teme refugiados e tem raiva a imigrantes em geral, que troça de quem se preocupa com o ambiente, que quer lá ele saber dos mais pobres que não conseguem pagar os cuidados de saúde, que vai ao Museu do Holocausto em Israel e escreve que é amazing estar lá com os amigos.


A inconcebível mensagem de Trump no Museu do Holocausto.

'So amazing' - imagine-se o despropósito


(A letra e a assinatura dizem bem o que Donald Trump é)


Na fotografia lá de cima e nesta aqui abaixo (esta já com um dos muitos comentários jocosos que já percorrem a net), Trump faz aquele sorriso próprio dos narcisistas que não percebem o contexto e apenas se preocupam em ficar bem na fotografia. A Melania e a Ivanka parecem fantasiadas de viúvas beatas e todo o quadro é hilariante. No meio deles, Francisco, aparece trombudo, notoriamente enfadado com tamanha cara-de-pauzice por parte de gente tão estúpida e frívola.


Não podendo dar-lhe um sopapo a sério, Francisco usou luva branca para uma bofetada psicológica: ofereceu a Trump uma medalha com a forma de oliveira como o símbolo da Paz (e o Pato Donald respondeu 'We can use peace') e ofereceu-lhe a sua encíclica alertando para a poluição, a favor do ambiente e da ciência (e a loura-burra, de seu nome Trump, respondeu: 'Well, I’ll be reading them').



Uma palhaçada. Ao que o mundo chegou para um animal daqueles ainda ser presidente dos Estados Unidos. Custa a acreditar. Mas, caraças, é mesmo verdade.


E claro está a paródia a tão desconcertante quadro não se tem feito esperar.


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Vontade de se disfarçar de Padre Mariano e desatar a chispar com a Perpétua e com as outras falsas beatas não deve ter faltado a Jorge Bergoglio.

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Um dia feliz a todos.

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