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sexta-feira, julho 30, 2021

Pedro Tamen.
A morte de um Poeta

Estamos aqui parados
até que a luz nos veja

 


Pensava que não ia ser capaz. Fui fugindo e escrevendo outras coisas. Ainda não sei se vou ser capaz. Não me sinto à-vontade para escrever quando ainda estou sob a emoção de uma perda ou quando sinto que o motivo da escrita ultrapassa a minha capacidade para escolher as palavras certas.

Mas, por tudo o que devo a Pedro Tamen, acho que devo tentar mostrar o agradecimento e a pena que sinto pela sua partida. 

De vez em quando há mortes que são duras. Pensei isso, por exemplo, quando soube que tinha morrido o Bernardo Sassetti. Já foi há nove anos e continua a custar-me. Continuo a pensar que há um lugar que ficou e ficará para sempre vazio. Diz-se que o tempo tudo cura. Mas há ausências que o tempo não cura. 

Gosto de dizer, porque o penso, que há pessoas que não morrem porque vivem em nós não pela sua presença física mas pelo rasto que deixam. Quem escreve, existe pelas suas palavras e elas sobrevivem quando os seus autores perecem. 

Tenho aqui ao meu lado os livros de poesia de Pedro Tamen. De todas as vezes que os li, li independentemente da pessoa física que os escreveu. Mas eu sabia que era alguém que ainda estava vivo e de quem eu podia esperar mais poemas. 

Também várias vezes aqui o disse: na era pre-covid em que eu andava pelas livrarias, se via algum livro traduzido por ele, não hesitava. Livros traduzidos por Pedro Tamen eram garantia de ser do meu agrado. Não era apenas a escrita na tradução, era também a intrínseca qualidade literária das obras que ele traduzia. 

Ninguém é eterno embora sejam eternas as palavras dos (bons) poetas. Mas há um lugar que fica eternamente vazio quando alguém como Pedro Tamen morre. 

(Mas não vale a pena continuar a tentar. Não sou capaz. Não sei o que dizer. Sei o que sinto mas não dizer o que sinto.)


Vou, pois, limitar-me a transcrever um seu poema.

O que não se sabe não existe.
Quando, por vitória do fogo
ou jorro surdo, inesperado, de água,
um golpe de asa, leve e mal sentido,
te leva os olhos a recantos calados
aos ouvidos que até então te dera
o acaso imóvel, teu parco nascimento,
quando um murmúrio desperta duvidoso
o que em certeza tinhas construído
e um véu que não sabias ao não saber
se abre, e, mais ainda, quando
consegues ver a mão que desvelou
o país das narinas, dos dedos, das pupilas,

então existe, o mundo cresce em ti
e em ti decresce a gruta que apalpavas.

Outras voltas darás, de novo à espera,
até que um dia, súbito, te entendas
ao entenderes de vez à luz de um raio
que era preciso saberes que mais existe
e que o que existe deveras não se sabe.


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Na despedida de Pedro Tamen
pinturas de J. M. W. Turner na companhia de Georgijs Osokins que interpreta Fragile e conciliante de Arvo Pärt 

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Um dia feliz

domingo, maio 17, 2015

Noite dos Museus em Lisboa - Jantar no Jardim do Museu de Arte Antiga [1º de 5 posts]


Este sábado à noite foi a Noite dos Museus. Visitei o Palácio da Ajuda e o Museu de Arte Antiga, ambos amores de sempre, em especial o segundo. Fiquei admirada por haver tanta gente. As pessoas gostam de cultura, assim se sintam convocadas. 

Não têm conta as vezes que visitei estes dois espaços ao longo da minha vida. O meu marido, na brincadeira, disse que devíamos ter levado 'as crianças' para ser uma visita igual a tantas às quais foram sujeitos quando eram pequenos em que, a certa altura, já só queriam eram pirar-se dali para fora. 

Nem têm conta, também, as vezes que estive no maravilhoso jardim sobre o Tejo, onde há uma pequena esplanada, onde se pode almoçar, onde se pode preguiçar o olhar, deixar que se espraie pelo rio, pela outra margem.

Esta noite, ao ar livre, foi aqui que jantei depois de ter visitado, mais uma vez mas sempre com igual prazer, descobrindo tantos aspectos novos, o Museu de Arte Antiga.

Se eu gosto de tomar as minhas refeições ao ar livre, muito mais gosto de esplanadas with a view ou assim, num jardim tão bonito como este. Numa noite quente como a que estava, uma brisa suave a subir do rio, as luzes, as estátuas no jardim, tudo tão agradável, estava-se tão, mas tão bem. Podia ter ficado ali até ser madrugada, a olhar as luzes do rio, a escuridão das árvores, a sentir a aragem, a pensar em coisas boas.




A luz que vem das pedras, do íntimo da pedra, 
tu a colhes, mulher, a distribuis 
tão generosa e à janela do mundo. 




O sal do mar percorre a tua língua; 
não são de mais em ti as coisas mais. 




Melhor que tudo, o voo dos insectos, 
o ritmo nocturno do girar dos bichos, 
a chave do momento em que começa o canto 
da ave ou da cigarra 
— a mão que tal comanda no mesmo gesto fere 
a corda do que em ti faz acordar 
os olhos densos de cada dia um só. 




Quem está salvando nesta respiração 
boca a boca real com o universo? 




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O poema é A luz que vem das pedras de Pedro Tamen

Catrin Finch interpreta Clair de Lune de Debussy

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Desejo-vos, meus Caros Leitores, um belo dia de domingo.

Que se sintam felizes é o que muito sinceramente vos desejo.

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terça-feira, abril 07, 2015

Ainda ninguém a conhecia. Sabia-se apenas que vivia retirada em práticas piedosas.








Era uma multidão de soldados empurrando-se uns aos outros. Já não tinham medo. Recomeçavam a beber. Os perfumes que lhes escorriam das testas humedeciam-lhes com grandes gotas as túnicas em farrapos e, apoiados nos dois punhos assentes nas mesas que lhes pareciam oscilar como navios, passeavam os grandes olhos ébrios, para devorarem com a vista o que não podiam agarrar. Outros, caminhando pelo meio das travessas sobre as toalhas de púrpura, partiam a pontapé os escabelos de marfim e os frasquinhos tírios de vidro. As canções misturavam-se com o estertor dos escravos que agonizavam no meio das taças partidas. Pediam vinho, carnes, ouro. Gritavam por mulheres. Deliravam em cem línguas. Alguns julgavam-se nos banhos públicos, devido à humidade que flutuava à sua volta, ou então, vendo a vegetação, imaginavam-se à caça e corriam atrás dos seus companheiros como se eles fossem animais selvagens. Passando de uma para outra, o incêndio atingia todas as árvores, e os altos maciços de verdura donde se escapavam longas espirais brancas pareciam vulcões que começassem a fumegar. O clamor redobrava de intensidade; os leões feridos rugiam na sombra.

O palácio iluminou-se de repente no terraço mais alto, a porta do meio abriu-se, e uma mulher, a filha de Amílcar em pessoa, coberta de vestes negras, apareceu no limiar. Desceu a primeira escadaria que ladeava obliquamente o primeiro andar, e depois a segunda, e a terceira, e parou no último terraço, ao alto da escadaria das galés. Imóvel e de cabeça baixa, contemplava os soldados.





Atrás dela, de ambos os lados, dispunham-se duas longas teorias de homens pálidos, envergando vestes brancas com franjas vermelhas que lhes caíam a direito até aos pés. Não tinham cabelo nem sobrancelhas. Nas mãos faiscantes de anéis tinham enormes liras, e todos cantavam numa voz aguda um hino à divindade de Cartago. Eram os sacerdotes eunucos do templo de Tanit, que Salammbô muitas vezes chamava a casa.

Por fim, ela desceu a escadaria das galés e os sacerdotes seguiram-na. Avançou pela avenida de ciprestes, e caminhava lentamente por entre as mesas dos capitães, que recuavam um pouco ao vê-la passar.





O cabelo polvilhado de uma areia violácea, e apanhado em forma de torre em conformidade com a moda das virgens cananeias, tornava-a mais alta. Tranças de pérolas coladas às têmporas desciam-lhe até aos cantos da boca, rosada como uma romã entreaberta. No peito trazia um conjunto de pedras luminosas, que imitavam na variedade das cores as escamas de uma moreia. Os braços, ornados de diamantes, saíam-lhe nus da túnica sem mangas, estrelada de flores vermelhas num fundo todo preto. Trazia entre os tornozelos uma correntinha de ouro para lhe regular a marcha, e arrastava atrás de si a grande capa de púrpura escura, feita de um tecido incomum, que formava a cada um dos seus passos uma larga vaga que a seguia.

De vez em quando os sacerdotes dedilhavam nas liras uns acordes quase abafados; e nos intervalos da música ouvia-se o débil ruído da correntinha de ouro com o estalido regular das sandálias de papiro.

Ainda ninguém a conhecia. Sabia-se apenas que vivia retirada em práticas piedosas. 





Alguns soldados tinham-na avistado de noite, no alto do seu palácio, de joelhos diante das estrelas, no meio dos turbilhões dos incensórios acesos. Fora a Lua que a tornara tão pálida, e qualquer coisa dos Deuses a envolvia como um vapor subtil. Os olhos pareciam fixos no longe, para além dos espaços terrestres.





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A primeira pintura que ilustra o texto é Salammbô de Adrien Henri Tanoux, datada de 1921

A segunda é Salammbô de Alfons Mucha,1896

A terceira é Salammbô de Gaston Bussiere, 1907

As ilustrações de Salammbô são de Lobel Riche


O texto é um excerto do Capítulo 1: O Festim, de Salammbô de Gustave Flaubert numa tradução de Pedro Tamen.


Lá em cima, Dame Kiri Te Kanawa com a London Symphony Orchestra and Chorus interpretam "Aria from Salammbo"


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Para quem não for dado à literatura e prefira rapazes nus a dançarem com uma toalhita acrobática é só descer até ao post seguinte. Uma graça.

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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma bela terça-feira. 


segunda-feira, junho 30, 2014

Morreu o filho de Judite de Sousa, o único homem que nunca a tinha desiludido. "A palavra aqui é uma: André.", pediu a mãe nas palavras que dirigiu aos colegas de profissão.


No sábado à noite, quando cheguei a casa, escrevi sobre a notícia do acidente de André Sousa Bessa de que tive conhecimento depois de ver, nas estatísticas do Um Jeito Manso, várias entradas a partir de expressões que o referiam. Mas não contei tudo.

Não contei que logo a primeira expressão que me aparecia era 'faleceu filho de Judite de Sousa'. 


Fiquei gelada ao ler aquilo. Apareciam também as expressões de que no post a seguir a este vos dei conta e que referiam acidente numa piscina, internado em estado crítico, ligado à máquina, etc, mas foi a primeira expressão que me deixou francamente abalada. Não quis falar disso quando aqui escrevi porque, não sendo verdade, não quis que isso pudesse soar como um mau presságio. Além disso, tantas notícias há de doentes que depois de semanas em coma voltam a si, que mesmo os mais reservados prognósticos devem ser encarados com alguma esperança. Apesar de cheia de medo, fiquei a esperar que o domingo nos trouxesse boas notícias sobre André Bessa.


Contudo, isso não aconteceu. No domingo de tarde, tinha lido que estava em morte cerebral e que teriam que ser os pais a autorizar que se desligassem as máquinas. Apesar de não ser nada comigo, senti o terror indescritível pelo qual ela deveria estar a passar: não há mãe que mereça passar por tão medonho suplício. Uma mãe quer saber de boas notícias dos filhos, que arranjaram trabalho, que estão felizes com o que andam a fazer, que têm uma vida afectiva feliz, que têm filhos ou planos para os ter, que gostam da casa onde vivem, que têm bons amigos. Coisas assim, boas, e boas novas, bons augúrios. 

Ao fim da tarde, a minha filha, com quem tinha estado a conversar pouco tempo antes e que tinha lido o que eu tinha escrito na véspera à noite, mandou-me um sms: se eu já sabia, o filho de Judite tinha morrido e acrescentava que era um horror. Eu não sabia, mas temia que isso não tardasse a acontecer. E é: é mesmo um horror. Uma notícia triste que a jornalista Judite de Sousa nunca quereria dar sobre o filho de uma outra mãe, uma notícia que nenhuma mãe suporta ouvir.


Judite de Sousa e André Sousa Bessa,
o filho (para) sempre presente


(Ficam as memórias,
os sorrisos, a mão carinhosa, o apoio)



Sinto muita pena, muita. Penso nela. Coitada da Judite. A vida não lhe tem corrido muito bem. Foi o divórcio, as notícias da infidelidade do Seara, rivalidades na TVI - e sempre tudo ampliado pelas capas das revistas. A tristeza dela, a magreza dela. E ela, triste e magra, a prosseguir a sua vida à frente das câmaras. Contava ela que lhe valia o apoio do filho, o carinho do filho, as boas notícias que o filho lhe trazia.

As fotografias mostram-nos aos dois sorrindo, o sorriso igual, cúmplice. 

Uma vida que se interrompe antes dos 30 anos é uma vida que fica por se cumprir. André foi poupado a muitas das agruras com que a vida vai marcando as pessoas e, por isso, da vida leva o lado esperançoso já que não teve tempo para visitar o futuro. Mas a mãe, que fica cá, fica a sofrer uma ausência que é impossível de assimilar, impossível de ultrapassar. O tempo atenuará a revolta, mas há dores que são de certeza absoluta terríveis, infinitas. Todas as outras dificuldades pelas quais Judite de Sousa passou são nada quando comparadas com a dor maior que agora estará a sentir.


No noticiário da noite, na TVI, um José Alberto de Carvalho emocionado deu a notícia, a notícia que nenhum jornalista quereria de dar, a da morte do filho de uma colega. Depois mostrou-se a si próprio, à frente do Hospital Garcia da Horta, a ler o comunicado de Judite de Sousa (que aqui transcrevo). 


Neste momento de dor, peço a todos os colegas jornalistas que se lembrem do valor das palavras.
A palavra aqui é uma: André.
o filho que sempre quis e que sempre me quis; um homem maravilhoso, irradiante de alegria; de vontade de viver; de exemplo de empenho; estudo; trabalho e força de vontade. E sempre atento, sempre disponível, sempre carinhoso.
Já não irá iniciar em Setembro a desafiante etapa profissional que tinha conquistado por direito próprio numa empresa multinacional. Mas deixa-nos o seu testemunho. E esse testemunho só pode ser traduzido por palavras. Por isso, como sabemos nesta profissão, as palavras são a nossa vida e, neste momento, aquilo que nos resta.
O André merece ser lembrado pela forma como tocou as pessoas com quem se cruzou; e sempre e para sempre a minha.

André faleceu prematuramente aos 29 anos
André Bessa (para sempre) com a mãe, Judite de Sousa


A dor de uma mãe jornalista. Como conseguiu ela, arrasada como devia estar, escrever as palavras doridas que escreveu? O meu marido disse, é jornalista. Sim, uma jornalista habituada a dar notícias em cenário de guerra. 

José Alberto Carvalho que, por causa do que se passou, substituíu Judite de Sousa no noticiário da TVI, deu outras notícias e disse que há dias em que parece que as estrelas desapareceram do céu. Morreu mais uma criança do acidente da moto 4 em Penela e uma outra criança, num incêndio da Damaia.

Notícias tristes, tragédias individuais, dores que não se curam.

Mas, talvez porque há tantos anos tenho a Judite de Sousa aqui comigo, na minha sala, é a morte do seu filho que me custa mais. Coitada, que pena sinto.

Tomara que ela consiga, uma vez mais, arranjar força para seguir em frente e voltar a aparecer-me aqui, em minha casa, dando notícias, fazendo entrevistas.

E que venha colorida, de saia curta, bota alta, tanto faz. Que venha é o que importa - e que volte a conseguir sorrir. Apesar de tudo, a vida continua.




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As folhas que o vento rejeitou
ora guardadas onde, nem donde vindas,
ninguém, nem tu nem eu, o sabe,
nem virá a saber: essas, as folhas
são porém emissárias do que um anjo disse
quando pisou o adro de outra vida.
E nas folhas revives
e assim me revives,
nessas folhas embarco para nenhum lugar.





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A música é de Clara Schumann - Nocturne in F major, op. 6 no. 2 (Erard-Piano,1837) numa interpretação do pianista holandês Bart van Oort.

O poema é de Pedro Tamen in Rua de Nenhures.


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E, sem vontade de escrever sobre outros temas, por aqui me fico por hoje.

Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma boa semana a começar já por esta segunda feira. 

A vida é tão curta e por vezes tão traiçoeira que cada vez mais penso que a devemos saber aproveitar em cada pequeno momento em que ela se mostre benevolente.



sábado, maio 10, 2014

Nem sequer o amor que os ligava poderia salvá-los, visto que na ausência do mundo até o amor é impotente








À sua volta tudo é de um branco leitoso, não se distingue o chão, nem as paredes, e estas parecem flutuar como espectros na estranha bruma que em breve as engolirá e apagará.





Nós não sabemos de verdade o que são os mundos nem do que depende a sua existência. Algures no universo está acaso inscrita a lei misteriosa que preside à sua génese, ao seu crescimento e ao seu fim. Mas sabemos isto: para que surja um mundo novo, é preciso que, primeiro, morra um mundo antigo. E sabemos também que o intervalo que os separa pode ser infinitamente curto, ou pelo contrário tão longo que os homens têm de aprender durante dezenas de anos a viver na desolação para descobrirem infalivelmente que não são capazes e que no fim de contas não viveram.



Talvez possamos até reconhecer os sinais quase imperceptíveis que anunciam que acaba de desaparecer um mundo, não o silvo dos obuses por sobre as planícies esventradas do Norte, mas o ruído do obturador, que mal perturba a luz vibrante do Verão, a mão esguia e estragada de uma jovem mulher que fecha tudo suavemente, no meio da noite, uma porta sobre o que não deveria ter sido a sua vida, ou a vela quadrangular de um navio que sulca as águas azuis do Mediterrâneo, ao largo de Hipona, trazendo de Roma a inconcebível notícia de que ainda existem homens, mas já não o seu mundo.




Na insignificância das suas pobres presenças humanas quando o chão lhes fugia debaixo dos pés não lhes deixando já outra opção além da de flutuarem como espectros num espaço abstracto e infinito, sem saídas e sem direcções, do qual nem sequer o amor que os ligava poderia salvá-los, visto que na ausência do mundo até o amor é impotente.


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  • O que se lê são excertos do belíssimo livro O sermão sobre a queda de Roma de Jérôme Ferrari da Divina Comédia Editores numa tradução de Pedro Tamen. Este livro ganhou o Prémio Goncourt 2012

  • A música lá em cima é de Gabriel Fauré - Sicilienne, para violoncelo e piano, Op. 78

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Caso, depois disto, vos apeteça estragar tudo e ler sobre debilidades mentais, inconseguimentos fiscais em tempo de saídas apressadas, e sobre fácies que mostram bem a desgraça que lhes vai dentro, (des)aconselho o post seguinte.

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E, por agora, por aqui me fico. Desejo-vos, meus Caros Leitores, um belo sábado.

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terça-feira, abril 08, 2014

Fala-lhes de batalhas, de reis e de elefantes


No post abaixo já falei das duas duplas mais famosas de momento na televisão portuguesa: José Sócrates & José Rodrigues dos Santos e Marcelo Rebelo de Sousa & Judite de Sousa, tendo eu, até, sugerido a troca de casais, a ver no que dava. Uma cena de swing, não sei se estão a ver. Num comentário a esse post podereis até ver algumas outras duplas de sucesso garantido que o Leitor P. Rufino aqui nos deixou à laia de sugestão.

Mas isso é a seguir. Aqui, agora, a conversa é outra. Muito outra.


Música para a Felicidade e contra a Febre e a Depressão



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Como são crianças, fala-lhes de batalhas 
e de reis, de cavalos, de diabos, de elefantes
 e de anjos, mas não deixes de lhes falar de 
amor e de coisas semelhantes.



A noite não comunica com o dia. Arde nele. Levam-na para a fogueira ao alvorecer. E, juntamente com ela, a sua gente, os beberrões, os poetas, os amantes. Nós somos um povo de degredados, de condenados à morte. A ti não te conheço. Conheço o teu amigo turco; é um dos nossos. A pouco e pouco desaparece do mundo, engolido pela sombra e pelas suas miragens; somos irmãos. Não sei que dor ou que prazer o empurrou para nós, para o pó de estrela, talvez o ópio, talvez o vinho, talvez o amor; talvez alguma obscura ferida da alma, bem escondida nos recessos da alma.

Queres juntar-te a nós.

O teu medo e a confusão em que estás lançam-te nos nossos braços, procuras aninhar-te neles, mas o teu corpo duro continua agarrado às suas certezas, afasta o desejo, recusa abandonar-se.


O teu braço é duro. O teu corpo é duro. A tua alma é dura. é claro que não estás a dormir. Sei que estavas à minha espera. Há pouco reparei nos teus olhares. sabias que eu ia chegar. Tudo acaba sempre por acontecer. Desejaste a minha presença, e aqui estou. Muitos, deitados no escuro, desejariam ter-me junto deles; tu viras-me as costas. Sinto os teus músculos tensos, os teus músculos de bárbaro ou de guerreiro. Só com o manejo da espada se conseguem braços tão fortes. Da espada ou da foice. No entanto, não te imagino camponês, nem soldado, senão não estarias aqui. És áspero de mais para seres poeta como o teu amigo turco. Serás então marinheiro, capitão, mercador? Não sei. Não me olhavas como coisa que se pode comprar ou possuir pelas armas.

Gostei do teu modo de me observar enquanto cantava. A precisão dos teus olhos, a delicadeza da sua cobiça. E agora, quê? Tens medo, estrangeiro? Eu é que deveria ter medo. Não passo de uma voz na escuridão, irei desaparecer com a alvorada. 

Deslizarei para fora deste quarto quando se puder distinguir uma linha preta de uma linha branca e os muçulmanos chamarem para a oração.

Vão pagar-me, não há nada de que te possas acusar. Deixa-te levar pelo prazer. Estás a tremer. Não me desejas? Então ouve. 

Era uma vez num país distante... Não, não te vou contar uma história. Já não é tempo de histórias. A época dos contos terminou. Os reis são uns selvagens que matam os cavalos que montam; há muito que deixaram de oferecer elefantes às suas princesas.

Os astros desviam-se de nós; mergulham-nos na penumbra. Vai-se a luz para o outro lado da terra, quem sabe quando voltará. Não te conheço, estrangeiro. Nada sabes de mim, apenas temos a noite em comum. Partilhamos este momento, sem o quereremos. Apesar dos golpes que em nós vibrámos, apesar das coisas destruídas, estou encostada a ti no escuro. Não vou entreter-te com as minhas histórias até ao alvorecer. Não irei falar-te de génios bons, nem de vampiros aterradores, nem de viagens em ilhas perigosas. Não resistas. Esquece o teu medo, aproveita eu ser, como tu, um pedaço de carne que não pertence a ninguém a não ser a Deus. Toma um pouco da minha beleza, do perfume da minha pele. Oferecem-to. Não será nem uma traição, nem uma jura; nem uma derrota, nem uma vitória.

Apenas duas mãos agarradas, como lábios que se apertam sem nunca se unir.


A tua embriaguez é tão doce que me estonteia. Respiras suavemente. Estás vivo. Gostaria de passar para o teu lado do mundo, de ver nos teus sonhos. Será que sonhas com um amor branco, frágil, distante, tão longe? Com uma infância, com um palácio perdido? Sei que lá não tenho lugar. que nenhum de nós lá terá lugar. Estás fechado como uma concha. E, no entanto, fácil te seria abrires-te, uma minúscula fenda por onde a vida se precipitaria. Adivinho o teu destino. Permanecerás na luz, serás celebrado, serás rico. O teu nome imenso como uma fortaleza irá esconder-nos da tua sombra. Irá esquecer-se o que aqui viste. esses instantes irão desaparecer. Até tu esquecerás a minha voz, o corpo que desejaste, os teus tremores, as tuas hesitações. 

Como eu gostaria de que algo conservasses disso. Que levasses contigo uma parte de mim. Que se transmitisse o meu país distante. Não uma vaga recordação, uma imagem, mas a energia de uma estrela, a sua vibração no escuro. Uma verdade. Sei que os homens são crianças que expulsam o seu desespero com a cólera, e o seu medo para o amor; ao vazio respondem construindo castelos e templos. Agarram-se a historietas, levam-nas à sua frente como estandartes; cada um faz sua uma história para se ligar à multidão que a partilha. São conquistados quando se lhes fala de batalhas, de reis, de elefantes e de seres maravilhosos; quando se lhes narra a felicidade que haverá para além da morte, a luz viva que presidiu ao seu nascimento, os anjos que giram à sua volta, os demónios que os ameaçam, e o amor, o amor, essa promessa de olvido e de saciedade. Fala-lhes de tudo isso e hão de amar-te; far-te-ão igual a um deus. Mas, pois que estás aqui encostado a mim, tu saberás, tu, um franco malcheiroso que o acaso trouxe para te pôr ao alcance das minhas mãos, saberás que tudo isso não passa de um véu perfumado que esconde a eterna dor da noite.


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O texto é um conjunto de excertos do belíssimo livro Fala-lhes de batalhas, de reis e de elefantes de Mathias Énard (que nasceu em 1972, estudou persa e árabe, viveu largos períodos no Médio Oriente e que é professor de árabe na Universidade de Barcelona, cidade onde vive) e que e foi traduzido por Pedro Tamen para a D. Quixote. 


Este livro ganhou o Prémio Goncourt des Lycéens, 2010, e o Prémio do Livro em Poitou-Charentes, 2011. Fala da estadia de Miguel Ângelo (Michelangelo di Lodovico Buonarroti Simoni) na Turquia, para idealizar a ponte de Constantinopla. E não vou dizer mais nada a não ser que o livro é maravilhosamente diferente das tretas que por aí abundam.

As imagens usadas para ilustrar o texto mostram partes da obra de Michelangelo (Pietà, David, os nus da tecto da Capela Sistina, a Sibilla Delfica).

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A música é, segundo leio no texto de apresentação no youtube: 


  • Turkish Music therapy / Hüseyni Sema: for Happiness and against fever by Cantemir *1673
  • Ottoman Turkish Healing/Sufi Music - Segah Peşrev - Osman Bey *1816 - against depressive disorder
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E porque a noite já vai longa despeço-me já e só espero que isto não esteja cheio de gralhas, seria uma mácula imperdoável no texto. 

Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma boa terça-feira.

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terça-feira, março 26, 2013

Como é que eu sou? Loura? Ruiva? Nada disso? Está bem: eu descrevo-me. E o que dizem de mim a minha letra e o meu blogue? Dou umas pistas. E, para não dizerem que isto hoje não tem nada que se aproveite, partilho convosco um poema do último livro de Pedro Tamen, Rua de Nenhures, um livro belíssimo



Uns julgar-me-ão alta, esbelta, loura, olhos azuis, uma modelo nórdica, outros dirão que sou de altura mediana, arruivada, olhos esverdeados, ar de gata. Outros assim, outros assado, outros coisa nenhuma. E eu, seja o que for que pensam ou que não pensam, acho que não sou nada disso.




Mas, enfim, se fazem mesmo questão em saber, dir-vos-ei que sou transparente, que tenho asas, que saio à noite para voar sobre o rio escuro, junto a casas abandonadas. 




Posso também confidenciar que, por vezes, vivo no fundo do mar, entre rochedos cobertos de macios limos verdes, rodeada de grandes conchas madrepérola, entre seres coloridos e muito tentadores e que, outras vezes, pareço normal e caminho, caminho em silêncio mas à minha volta voam palavras e isso já é capaz de não ser muito normal.




Dir-vos-ei também que tenho por irmãos e amigos as gaivotas, os gatos, um certo pequeno pássaro preto de bico amarelo. 

Posso também confidenciar que gosto de jóias, que vivo rodeada delas. Agora que escrevo tenho-as junto a mim, por todo o lado. São livros as minhas jóias e eu, de gostos excessivos, encho-me delas, mais do que a decência aconselharia. 



A minha mesa hoje


Dir-vos-ei também que talvez eu já tenha vivido outras vidas. Acho que sim. Acho que fui etrusca e que vivia vestida com belos vestidos, reclinando-me numa larga e macia chaise longue colocada entre véus, no meio de um jardim existente na clareira de um bosque, e teria  cabelos umas vezes soltos, outros apanhados em cachos suaves, e flores no cabelo, e flores perfumadas à minha volta, e rodeada de artistas e cientistas, e rodeada também de homens bonitos, cultos, interessantes, generosos.  




E por vezes, quando o sol estivesse mais quente, permitira que me despissem e ali ficaria nua, ao sol, e depois permitiria que me acompanhassem enquanto me banhava num mar de corais, água tépida, densa, transparente. E apreciaria, depois, que me limpassem e dançassem comigo mas aí já num local resguardado, fresco, envolvida em penumbra. E não me importaria que um músico estivesse por perto, num canto, tocando lânguidas e lentas músicas e que, noutro canto, um poeta desfiasse poemas como uma toada descendo dos céus.

Não sei se era assim a vida das etruscas. Mas eu acho que foi assim que eu vivi noutras vidas e são estas memórias que eu trago dentro de mim.

Tudo coisas que não vos posso mostrar. Tudo irrealidades, sonhos, recordações remotas. 

E, além disso, mesmo que me mostrasse, estou longe, tão longe. Como me poderiam ver? 




Sou nada mais que invisíveis partículas que atravessam os longos espaços, que voam pela noite, que cruzam oceanos e continentes, que vêm de outros tempos e que para sempre aí perdurarão perdidas.

Resumindo: sou como me imaginarem ou o contrário disso.

&

Como já aqui o contei antes, frequentei durante uns meses o curso de grafologia ministrado pelo Dr. Alberto Vaz da Silva no Centro Nacional de Cultura, ali ao Chiado.  Muito interessante. Frequentado por professores, psicólogos e até por um juiz, acho que apenas eu era apenas uma simples curiosa.

Com o que aprendi, tenho feito alguns exercícios e geralmente quem é analisado através da sua caligrafia reconhece a justeza das minhas análises.

Por formação (e vocação), sou uma pessoa dos números, da lógica, da razão, da demonstração sistemática, rigorosa. 




No entanto, acontece aderir a algumas coisas por processos inversos, não pela dedução mas pela intuição. É o caso. Ou talvez, neste caso possa haver uma demonstração, sim, não dos processos mas da justeza dos resultados. Não sei. Apenas sei que observo a letra e intuo as características de quem a escreveu.

A minha dúvida é se isso se aplica, não apenas à palavra manuscrita mas, também, à palavra escrita aqui, no computador. Tenho pensado nisso.

Quando se pratica a grafologia não é tanto só o desenho da letra em si mas, para além disso, o espaçamento entre letras, entre palavras, entre linhas, a dimensão das margens, a inclinação, a mancha de texto, a força que se põe na escrita. Tudo revela o que a pessoa é.

Tento extrapolar para a escrita no computador, nos blogues, por exemplo. Há blogues em que a letra é miudinha, tudo muito certinho, uma carreirinha limpinha. Há outros em que a letra é miúda mas as margens são irregulares, por vezes um texto algo convulso. Há aqueles em que é tudo muito denso, pouco espaçado, o texto muito compacto. Outros escrevem com letras carregadas, a bold. Outros misturam formas diferentes de letras, itálico, bold, às cores. E o fundo que escolhem acho que também diz do que a pessoa é, digo eu. Olho para tudo isso e tento perceber como será o autor. E, por vezes, através do conteúdo, parece-me ver que as coisas batem certo.


O Professor Vaz da Silva dizia que se reconhecia muito bem a letra de uma mulher bonita - que geralmente é uma letra solta, descontraída, de quem sabe que costuma agradar sem ter que se esforçar para isso. 



Poemas manuscritos de Sophia



Será que aqui na internet isso também é verdade? Um dia, arrisco-me e digo aqui o que penso de alguns bloggers.

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Não sei se já aqui o contei: as aulas decorriam ao lusco-fusco. O professor projectava slides num retroprojector e apagava os candeeiros para vermos melhor. Geralmente, no fim das aulas, alguns alunos iam ter com o professor para tirar dúvidas. Um dia também fiz isso. Ele tinha estado a mostrar os vários tipos de f, dizendo que o f diz muito sobre uma pessoa e exemplificava, este é um f de alguém martirizado, este é o de uma pessoa agressiva, etc, etc, e eu não revi o meu em nenhum dos exemplos. Então desenhei o meu f e, no fim da aula, fui mostrar-lhe. Ele estava rodeado pelos meus colegas, tudo quase às escuras. Quando eu lhe estendi a minha folha, dizendo que não tinha visto o meu f nos exemplos mostrados, pode dizer o que lhe parece? Ele, sem olhar para mim, apenas para a folha, ajeitou os óculos, focou-se, e disse qualquer coisa de que não percebi o sentido (e de que agora já não me recordo). A modos que envergonhada disse, não percebo o que isso quer dizer. Ele, rodeado pelos outros, sem olhar para mim, apenas para o f, disse, é o f de uma sedutora. Depois olhou para mim e os outros olharam também todos, como se quisessem conferir. Escuso de dizer que fiquei atrapalhada. E ele, sorrindo, disse, é o que me parece mas verá se faz sentido. Sorri. E peguei na minha folhinha e vim-me embora rapidamente.

Agora, se calha ter que escrever um f, quase tenho vontade de o disfarçar não vá toda a gente olhar para ele e pensar, oh pá, mas este é um f de uma sedutora…

Estou a brincar, claro (não disfarço coisa nenhuma, a letra é impossível de disfarçar – a menos que o seja deliberadamente, geralmente por motivos pouco meritórios). A única coisa que disfarço é que tenho asas.




Quanto à análise da escrita, há uma que nunca analisei: a minha. Não sei explicar porquê. Acho que não me apetece radiografar-me a mim própria. Ou teria receio de não ser isenta e gosto de o ser. Não sei. Nunca o fiz. Acho que nunca vou fazer. 

Por isso, a bem da verdade também não é por aí que estou suficientemente esclarecida para vos esclarecer a vós. 


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Como poderão ter reparado, no meio da confusão que reina aqui na minha mesa, está a Rua de Nenhures, o último livro de Pedro Tamen. Estou encantada. Para me acompanhar aqui, permito-me escolher um poema:




                                                      Entro na floresta, sigo por entre
                                                      os ramos, vou pelos caminhos
                                                      que tu própria me indicas,
                                                      e chego enfim à líquida presença
                                                      do coração sonhado:

                                                                                                  rendo-me
                                                      na tua rendição, e a bandeira
                                                      é branca de alegria


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Se forem estóicos e conseguirem continuar, por mais um pouco, na minha companhia, muito gostaria de vos ver lá, pelo meu Ginjal e Lisboa. Lá, como aqui, é Pedro Tamen que me tem presa. E, levada pela mão de um poema feliz, as minhas palavras fazem-lhe a vontade, vestem-se de branco. Na música, começa uma nova grande intérprete, Julia Fischer. No violino, toca Mendelssohn.


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E é isto. Isto e desejar-vos uma bela terça feira. 
Inventem mistérios, fantasiem, brinquem, riam, sejam inocentes, alegres - é a minha sugestão e desejo de hoje, meus Caros Leitores.


quarta-feira, fevereiro 15, 2012

Tristesse num Teatro às Escuras e Caravaggio - Chopin, Pedro Tamen, Elena Pris e Vladimir Malakhov

Chopin - Tristesse

        - Pressinto um outro mundo.

        - Terá que passar a história inteira
        até que o dia de hoje chegue aos olhos.

        - Aos olhos que persistem...

        - ...que hão-de ver as brumas sobre os rios
        que as transportam ao coração da terra.

        - Estamos aqui parados
        até que a luz nos veja.


                                            Vem a luz.
                                      O Teatro ilumina-se.
                                      O palco está deserto


['Ela e Ele, alternadamente' de Pedro Tamen in 'Um teatro às escuras] - Em memória de um Homem bom


Lembrei-me de aqui usar esta fotografia do último post no meu Ginjal e Lisboa; a paz, as aves em volta, o mar, o silêncio.


Staatsballett Berlin, Música de Monteverdi, Coreografia de Claudio Bigonzetti
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Aos meus Caros Leitores desejo uma boa quarta feira

(Peço desculpa por hoje não ter conseguido responder aos comentários)

quarta-feira, outubro 19, 2011

Prêt à Porter and The Performers, Pedro Tamen no seu Teatro às Escuras, as mulheres fotografadas por Guy Bourdin e os Ojos Verdes de Buika - c'est la joie de vivre, mes amis.

 
Depois de ter escrito mais um texto deprimente sobre o OE 2012 e sobre o Memorando da Troika (post abaixo) tenho que lavar a alma. Por isso, para minha higiene mental e emocional, aqui vos deixo mais um pequeno exercício de papier mâché (obrigada pelo cognome, Margarida).

Assim sendo, meus Amigos, queiram entrar e assitir a esta selecção de coisas de que gosto. Enjoy!



                                  Nascemos vindos do escuro
                                  e ora de repente aqui voltámos
                                  ao escuro onde de novo nos fazemos.
                                  E assim se faz fértil o negro nada
                                  pelo qual perpassamos para o dia
                                  de não ser preciso procurar
                                  a mão ignorada que estendemos
                                  e estreitaríamos se fosse dado vê-la
                                  aos olhos que um dia bem abertos
                                  os hão-de ver totais e acordados.


                                 (Pedro Tamen in Um teatro às escuras)




Fotografia de Guy Bourdin
 



Be happy!

segunda-feira, outubro 03, 2011

Poesia, apesar de tudo - diz António Guerreiro no Expresso. Pedro Tamen, Rui Caeiro, Alice Vieira confirmam-no. E eu agradeço a todos os poetas as palavras que me alimentam.


Já aqui vos falei várias vezes no meu grande amor pela poesia. Dela costumo dizer que é a síntese perfeita de todas as coisas. Costumo também fazer o paralelismo entre poesia e matemática, na sua pureza, na sua redução ao essencial e rigoroso. Não será por acaso que encontraremos entre os matemáticos e os físicos grandes apreciadores de poesia.

No suplemento Actual do Expresso deste sábado, António Guerreiro escreve 'Poesia, apesar de tudo' - 'Ao mesmo tempo que parece definhar sob a ameaça da falta de leitores e das regras editoriais, a poesia insiste e resiste, alheia às circunstâncias pragmáticas'. Neste artigo António Guerreiro refere dissertações que, ao longo dos tempos, se têm produzido sobre o tema da poesia, analisa as políticas editoriais e constata a falta de interesse que os distribuidores e livreiros dedicam aos livros de poesia.

E conclui que, apesar de tudo, e apesar das fracas tiragens e apesar do fraco interesse comercial, a poesia se impõe hoje, como sempre e para sempre.

Eu não sei se os poetas têm dificuldade em ver os seus livros publicados mas a verdade é que eu vejo a secção de poesia das livrarias, nomeadamente na Fnac, razoavelmente apetrechada. E há várias editoras novas que lançam interessantes livros de poesia, e vejo a D. Quixote com uma muito consistente colecção de poesia, vejo antologias, vejo traduções - ou seja, não vejo o desinteresse comercial de que António Guerreiro fala. No entanto, presumo que ele se refira a edições esgotadas e não reeditadas mas, mesmo aí, noto algum ressurgimento.

No entanto, tenho para mim que a poesia nunca será um objecto mainstream, não vale a pena idealizar tiragens de milhares, exibições nos escaparates de topo. Acho que a poesia será sempre um objecto raro, para amantes, amantes exigentes.

A poesia é a essência pura (tal como a essência nos perfumes), é o traço límpido e perfeito (tal como ambicionam os arquitectos), é a fórmula simultaneamente perfeita e imensa (tal como é, por exemplo, a equação E=mc2, a equação base da teoria da relatividade), é o acorde soprado pelos deuses (tal como os compositores ambicionam), o sabor delicioso e raro mesmo que apenas subentendido (pelo qual lutam os grandes chefs), o movimento extenso e etéreo (pelo qual os bailarinos tanto se esforçam).

A poesia é o intangível tornado possível através das palavras perfeitas. É a emoção destilada, é a lágrima imprevista, o arrepio interior, o sorriso verdadeiro, o pensamento substantivo e limpo, o som, a luz, o sabor, traduzidos em irredutíveis palavras.

Descarna-se a ideia, decanta-se o sentimento, filtram-se os efeitos. E fica a pureza. Uma sombra geométrica. Um som tangente à emoção. Um pensamento límpido.

Enquanto existirem amantes exigentes existirá poesia e amantes exigentes sempre os haverá.

Não é uma opção. Ama-se a poesia porque não se pode deixar de amar.

Procura-se com avidez a poesia, porque cansados de mensagens falaciosas, discursos demagógicos, ruído ambiente de vária ordem, confusão e verborreia, se sente a necesssidade da pureza mais absoluta, a singeleza da verdade sem máscaras.

António Guerreiro (que, por acaso, na sua coluna 'Ao pé da letra' também escreve um interessante artigo sobre a 'comercialização mediática' em que Valter Hugo Mãe anda a ser frito desde que, no palco do festival de Paraty, deixou a assistência em lágrimas lendo um textozeco melodramático, com aquela sua voz que tem algo de provinciano desterrado na cidade), tem conhecimentos teóricos e técnicos para suportar a sua tese de uma forma mais sustentada.

Eu, leiga, posso apenas corroborar através da minha intuição, da minha paixão. Poesia, sim, sempre - apesar de tudo.

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E agora, tal como António Guerreiro ilustra o seu texto com uma pintura de Marc Chagall, 'Le poète allongé', permitam-me que também eu ilustre o meu com fotografias minhas e excertos de alguns poemas que vou escolher a partir do que as imagens me sugerem.

Quero com isto apenas mostrar como para uma situação, porventura complexa (mas sabemo-lo lá, é apenas uma fotografia), há palavras que descem sobre ela vestindo-a na perfeição. Ou melhor, imaginemos que pomos a imagem ao espelho e que o espelho nos devolve não a imagem reflexa mas as palavras exactas que a descrevem.

É um exercício, apenas isso. Subjectivo.


(Também escolhi esta fotografia para ilustrar ontem o Soneto da Separação
 de Vinicius de Moraes no meu outro blogue, o Ginjal)

Descai a folha sob o peso da tarde
despejou a fonte a sua última lágrima
Estou sentado a que beira e que rio
contemplo? que sorriso desmaia na boa
que tive?

(excerto de poema de Pedro Tamen in Memória Indescritível)



Um sinaleiro invisível manda parar o trânsito
há uma pausa brutal no bulício da cidade.

Grande é a importância que me dás.
Por momentos tudo vais trocar pelas minhas mãos.

Devagar a tua língua
vivifica o que
resta de mim

(excertos de dois poemas de Rui Caeiro in O quarto azul)




Às vezes uma palavra bastava
para que eu soubesse que virias ao meu encontro

mas depois chegaram imprevistas tempestades
que desenharam estranhas perdições
no mapa dos teus dedos

e as palavras que ninguém quis
silenciaram a festa do meu corpo


(excerto de poema de Alice Vieira in O que dói às aves)



Poesia, pois. Eternamente. e-ternamente.

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Nota: Meus amigos, já sabem que agora, de 2ª a 6ª temos Música no Ginjal. Por isso, acompanhem-me até ao post abaixo, sim? Gostaria de vos levar até Ms Bessie Smith.)