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segunda-feira, junho 20, 2016

Livros, vidas, espelhos, novos começos, canções à lua


Comecei a escrever este post no sábado à noite. Mas estava a escrevê-lo a meio do sono, não lhe dei um fio condutor nem consegui acabá-lo. Ou melhor, tive dúvidas se o que estava a escrever fazia sentido e resolvi deixá-lo em banho-maria. 

Agora é domingo e, depois de ter visto um macaco porcalhão e de o ter mostrado em acção, essencialmente para que se veja bem que no melhor pano cai a nódoa -- se é que o pano alemão é coisa que se cheire -- vim aqui espreitar o que ontem deixei a meio. Foi isto que a partir do vídeo com a talentosa Laura Mvula se vê.



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Adormeci a meio da tarde, não sei por quanto tempo dormi. Estava quase a acabar um livro de que estava a gostar mas o calor e o sol levaram-me para outro lado. Gosto de estar a ler e sentir que vou adormecer, é como uma queda lenta num espaço de suave silêncio e sombra.

Entretanto, já acabei a leitura.

Grande livro. Ao princípio não estava muito convencida mas depois, aos poucos, foi ganhando espessura, a empatia com aquele homem foi crescendo. Por vezes, momentos de diversão pura - e quase me lembrei do Murphy. Outras vezes momentos de perplexidade. Outras de profunda melancolia. Outras de pesado desalento.

Gostava de ser capaz de descrever o Oliver. Ocorreu-me dizer que é um vencido mas isso seria redutor. Não sei se é um vencido. Também o Stoner poderia ser descrito como um vencido e, no entanto, isso estaria longe de ser uma boa descrição. Talvez o Oliver tal como o Stoner sejam simplesmente homens normais.

A vida de uma pessoa é feita de opções, a cada momento temos que optar: dizer ou não dizer. fazer ou não fazer. Por vezes, uma palavra basta para nos afastar de uma pessoa ou de um caminho. Todos os dias isso acontece. Mesmo que nada aconteça, o não acontecer é uma opção. Poder-se-ia sempre fazer acontecer alguma coisa, procurar alguém, percorrer um novo caminho.

A vida de Stoner é a vida de um homem que, por vicissitudes e circunstâncias diversas e pela sua maneira de ser, pode ser descrita como uma vida frustrada. Mas a vida de grande parte das pessoas que conheço é isto: podia ser diferente, mas é apenas o que é. A vida de Oliver Orme também. A partir do momento em que ele fala connosco, é uma sucessão de insignificantes acontecimentos que lhe provocaram turbulências interiores mas turbulências que ele enfrenta em estado de negação, ou quase desinteresse ou, sem força ou saber para fazer de outra forma. E, digamos assim, com contenção de esforços. Contudo, por tudo o que se passou, grandes acontecimentos tiveram lugar na vida dos que, directa ou indirectamente, estiveram envolvidos naquele período da sua vida. Grandes acontecimentos para os próprios, fait divers na comunidade em que viviam. Nulos, quando postos numa perspectiva mais ampla. Não conto mais porque não tem graça contar histórias de livros ou filmes.

A verdade é que é uma escrita tão perfeita, tão por dentro dos personagens, que, à medida que o livro avança, já somos nós, leitores, que nos aproximámos deles. O livro, de que, por exemplo aqui, já falei, é A Guitarra Azul, John Banville.

Entretanto, chegámos a casa. Já se jogava a segunda parte do jogo Portugal-Áustria. A primeira parte viemos a ouvi-la no carro. Estava com preguiça, deixei-me ficar a ver o futebol. Uma decepção, e também já disse aqui falei.

Depois de uma bela pizza (de frango desfiado, queijo de cabra, nozes e manjericão, que temperei com um fio de mel), de arrumações, de afazeres e tal, regressei ao bem bom. Já não era a boa espreguiçadeira ao pé da figueira gigante na qual tinha preguiçado de tarde, desta vez o poiso foi o sofá, e já com outro livro, e outro de que também estou a gostar, desta vez sobre um Harry. Um torturado Harry. Talvez o autor se estivesse quase a descrever a si próprio, e talvez que, por esse mundo fora, outros Harrys errem pelo mundo da mesma forma solitária e inconsequente. Talvez alguns ao lerem o livro sintam que estão a ver-se ao espelho e, na companhia da sua imagem reflectida nas páginas de um livro, se sintam menos sozinhos. Talvez. Não sei.

Só que, enquanto lia, com o sono atrasado que acumulo durante a semana e com o calor, aqui reclinada no sofá, com a luz do candeeiro em cima, fui de novo transportada para o reino dos sonhos.

Agora, acordada e vagueando entre sonos, apeteceu-me voltar a escrever mas estou a escrever quase deitada, o computador em cima de mim, a fazer-me calor. Tinha pensado transcrever um excerto deste livro mas não vejo como, nesta posição.

Pensei, então, em escrever sobre a calamidade que grassa pelo Brasil, a humilhação pública, o descalabro, a confissão de que estão sem dinheiro para acabar as obras para os jogos olímpicos, que alguém faça alguma coisa, o desespero expresso perante a comunidade nacional e internacional. Uma vergonha sem tamanho, coitados. Depois, o governo a dizer que ajuda. E uma pessoa pensa: mas então aqueles malucos lançam uma bomba daquelas sem antes se articularem com o governo? Pensar que o Brasil, não há muito, era um eldorado prenhe de amanhãs que cantavam... Mas custa-me falar disso. É daquelas situações em que certamente toda a gente prefere 'entregar para deus' e esperar que, mesmo sem saber como, tudo se resolva.

Também pensei que devia ir passar as fotografias de hoje para o computador. Vi uma coisa que me perturbou e fotografei ao de leve mas agora estou na dúvida. Não me apetece falar nisso. Nunca tinha visto tal coisa, incomodou-me mesmo.

Aliás, acho que agora vou dormir. Vou guardar isto e logo vejo se apago se publico.

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E foi aqui que fiquei na madrugada de sábado para domingo, seriam talvez umas duas e tal da manhã, nem sei.
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Entretanto, este domingo fomos à praia. Muito boa a praia, boa, boa mesmo. Caminhámos pela beira da água, a água nada fria. Havia um cheiro intenso a maresia. Um banho de vitalidade. E algumas fotografias. Mas continuo preguiçosa, sem passá-las para o computador. Apetece-me ir ler um pouco mais, ficar por aqui a descobrir os transtornos do Harry.

Mas foi um dia muito tranquilo, este domingo. 

A semana que me espera está cheia de enigmas e eu tenho cada vez menos tempo livre. Não sei como vou conseguir continuar a escrever como até aqui, como se não houvesse amanhã. Se calhar terei que abrandar. Talvez vão notar alguma diferença. Não será desinteresse nisto de escrever no Um Jeito Manso, será pura necessidade de descansar um pouco mais.

Naquilo das bifurcações de que a vida é feita, eu opto geralmente pelos caminhos mais arriscados, de preferência desconhecidos, e gosto de entrar sem manual de utilização, sem recomendações, sem quaisquer preconceitos, livre de influências, Talvez também por isso, ande quase sempre motivada -- como quando, aos quatro anos, entrei para a pré-primária e conheci muitos meninos e meninas, professoras, brincadeiras novas, ensinamentos inesperados, e tudo me interessava, tudo me seduzia. Ainda é assim.

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Novos começos

[Dedicado a todos quantos ainda não sabem que todos os dias são bons dias para novos começos]


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Lá em cima Laura Mvula interpreta Sing to the Moon

As fotografias que escolhi para ilustrar o texto pertencem à série "Glas" de Ingar Krauss

O bailado é New Beginnings pelo New York City Ballet, a partir da coreografia After the Rain de Christopher Wheeldon. A música é talvez a que já aqui mais vezes figurou, Spiegel Im Spiegel de Arvo Pärt, que vem bem a propósito das fotografias e, de certo modo, com parte do texto. Os bailarinos Maria Kowroski e Ask la Cour dançaram ao nascer do sol no terraço de um 57º andar em Manhattan,

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E um aviso:
evitem estragar o climinha bom com o post abaixo, onde a coisa não é especialmente perfumada.
Aquele Joachim, o treinador alemão, faz coisas inenarráveis.

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segunda-feira, junho 13, 2016

Aquilo a que chamamos mulher não existe.
A mulher, percebi eu, é algo que pertence à esfera da lenda,
um fantasma que voa pelo mundo.




A verdade é que o que eu queria, o que estava a ver se conseguia, com aquela conversa urgente sobre pintura e retratos, era que ela se despisse, ali e agora, naquela cozinha gelada, ou melhor ainda, que me deixasse fazê-lo, descascá-la como um ovo e olhar, olhar e olhar para ela nua, à luz do dia literalmente fria. 



Não me interpretem mal. Não fui repentinamente tomado pela luxúria, pelo menos não pela luxúria no sentido habitual, que é uma coisa bem diferente do desejo, na minha opinião. Sempre achei as mulheres mais interessantes, mais fascinantes, sim, mais desejáveis, precisamente quando as circunstâncias em que as encontro são as menos adequadas ou promissoras.

É uma fonte inesgotável de espanto e assombro saber que, debaixo das roupas mais desenxabidas – aquela camisola disforme, a saia mal-amanhada, aqueles sapatos sem personalidade --, se esconde algo tão intrincado, abundante e misterioso como o corpo de uma mulher.



É para mim um dos milagres seculares – existe outro tipo? – as mulheres serem como são. Não me estou a referir à mente delas, ao intelecto, à sensibilidade, e eu sei que vão gritar comigo por causa disto, mas estou-me nas tintas. 


É ao facto visível, táctil, palpável da carne feminina, recobrindo tão aconchegantemente a sua gaiola de osso… é a isso que me refiro.

O corpo pensa e tem a sua própria eloquência, e o corpo de uma mulher tem mais para dizer do que o de qualquer outra criatura, infinitamente mais, aos meus ouvidos, pelo menos, ou aos meus olhos.



Era por isso que eu queria que a Polly se livrasse das roupas e me deixasse olhar para ela, olhar não, escutá-la, arrebatada e arrebatadoramente solta, escutar o seu eu corpóreo, como se fosse possível tal coisa. Olha e escutar, escutar e olhar: para uma pessoa como eu, estas são as maneiras mais intensas de tocar, de acariciar, de possuir.

(…)

E ali sentado, a contemplá-la (…), tive uma coisa a que só posso chamar uma revelação de cortar a respiração; literalmente, porque foi uma revelação e porque fiquei sem ar.

O que vi, com uma clareza irritante, foi que aquilo a que chamamos mulher não existe. A mulher, percebi eu, é algo que pertence à esfera da lenda, um fantasma que voa pelo mundo, instalando-se aqui e ali, numa ou noutra fêmea mortal incauta, transformando-a, breve e momentosamente, num objecto de desejo, veneração e terror.


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E, se me permitem, junto à festa um Poeta que também sabia dizer o seu amor pelas mulheres

Herberto Helder — O amor em Visita 
(aqui dito por José-António Moreira)


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Foi com prazer que juntei neste post John Banville, Leonard Cohen, Herberto Helder, três homens cujas palavras revelam terem percebido o que é gostar de uma mulher. 

Há por aí muitos amadores na arte de amar, todos prosas, tecendo considerações sobre mulheres, dizendo à boca cheia as competências ou os atributos femininos, todos eles se limitando a colocar a sua fraca competência na enumeração de partes do corpo e respectivas habilidades ou, fazendo-se já de senadores, enunciam os melindres das mulheres, dão-se ares de engraçados para, destilando ignorância, reduzirem a sua sabedoria aos já desbotados 'os problemas das mulheres...'. Tudo balofa facúndia que apenas revela que não sabem gostar de uma mulher como ela tem que ser gostada.

Gostar de uma mulher, mas gostar mesmo, é reconhecer que uma mulher é um milagre, uma infinita incompreensão, um corpo para ser amado a capela, um olhar para ser tocado com a suavidade de uma mal disfarçada emoção, uma alma para ser respeitada em todo o seu múltiplo mistério, um inexplicável voo envolto em indecifráveis segredos. E mais.

E quem não saiba isto não é digno de dizer que sabe gostar de uma mulher. Deverá ficar calado, quieto no seu canto, enquanto não aprender; não deverá fazer com que uma mulher perca o seu precioso tempo. Nem deverá dar-se ao trabalho de fazer posts ou escrever artigos de jornais. Muito menos deverá dar-se ao desfrute de escrever livros.

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Não seria justa se não referisse os homens que aqui fotografaram Laetitia Casta: Collier Schorr (1ª, 2ª e 4ª fotografias), Patrick Demarchelier (5ª), Mario Testino (última).

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E queiram, por favor, continuar a descer para uma troca de opiniões entre a diferença entre a verdade e a realidade em  Onde é que se encontrará esse raro lugar, pálido Ramon?


Onde é que se encontrará esse raro lugar, pálido Ramon?



Einstein disse: ‘Temos de aprender a distinguir entre o que é verdadeiro e o que é real’


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Acreditar numa coisa ao mesmo tempo que se sabe que não pode ser provada (por enquanto) é a essência da física. Homens como Einstein, Dirac, Poincaré, etc, exaltaram a beleza dos conceitos, colocando a verdade, de maneira bizarra, num nível de importância inferior.

Há tantos desses exemplos que eu próprio me fiz eco da arrogância dos meus mestres teóricos, que estavam, na verdade, a afirmar que Deus (também conhecido como o Mestre, Der Alte), ao moldar o universo, pode ter cometido alguns erros favorecendo uma verdade conveniente em detrimento de uma matemática maravilhosamente bela. Até agora, este deselegante falta de confiança no Criador tem-se sempre mostrado precipitada. 


[Excerto de um texto de Leon Lederman, director emeritus do Fermi National Accelerator Laboratory que recebeu o Prémio Nobel da Física em 1988 - em 'Grandes ideias que não podem ser provadas' já aqui ontem referido].


Mas, então, qual é o meu tema verdadeiro? Estamos a falar de autenticidade? O meu único objectivo foi sempre, desde o início, dar forma à tensão sem forma que paira na escuridão dentro do meu crânio, como a imagem que perdura depois de um relâmpago. Que importância tinha quais eram os fragmentos dos destroços gerais que eu escolhia para tema? Guitarra, pátio e mar azul-cerúleo com veleiro, ou a peixaria da Maggie Mallon… que importância tinha? Mas, de alguma maneira, tinha; de alguma maneira, ali estava sempre o velho dilema, isto é, a tirania das coisas, do real inevitável. Mas, no fim de contas, que sabia eu sobre coisas reais, quando elas surgiam e me confrontavam? Era precisamente a realidade que não me interessava nem um pouco. Volto a perguntar se foi isso que na verdade me bloqueou; o facto de o mundo que decidi pintar não ser o meu. É uma pergunta simples e a resposta parece óbvia. Mas há uma falha. Dizer que o Sul não era meu sugere que havia outro lugar que era e, digam-me, onde é que se encontrará esse raro lugar, pálido Ramon*?


[Excerto de 'A Guitarra azul' de John Banville]


*Pálido Ramon' é uma referência ao poema "The Idea of Order at Key West" de Wallace Stevens (que aqui abaixo é lido por Tom O'Bedlam)


Oh! Blessed rage for order, pale Ramon,

The maker's rage to order words of the sea,

Words of the fragrant portals, dimly-starred,

And of ourselves and of our origins,

In ghostlier demarcations, keener sounds.

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Fotografias feitas hoje em casa
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E, caso ainda o não tenham feito, aceitem o convite e desçam até ao 'O amor verdadeiro e o electrão'.

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