Ser-se comentador não deve ser fácil, especialmente para quem leve a coisa a sério. É preciso a pessoa manter-se informada, preservar a sua identidade apesar de ouvir opiniões de um lado e de outro, conseguir discernimento para ver um pouco mais além e ter ideias minimamente originais. Caso contrário, é vê-los feitos papagaios, repetindo-se uns aos outros, ou reproduzindo as notas com que os spin doctors presenteiam os media e amigos.
Devo dizer que costumava ter Clara Ferreira Alves em boa conta. De forma geral, gosto de ler o que escreve e até, salvo alguns excessos despropositados em que manifestamente embala e fala como se estivesse a representar para seu próprio prazer como auto-expectadora, gostava de vê-la no Eixo do Mal.
Mas há um tempo para tudo. Tempo demais a escrever o mesmo tipo de crónicas ou a aparecer no mesmo programa deve causar uma erosão anímica (para não dizer mental -- que é mais que compreensível que aconteça).
São anos a mais a opinar, a opinar por obrigação, sobre assuntos que umas vezes lhe devem interessar mas também sobre outros para os quais não deve estar nem aí.
De vez em quando, parece que já escreve ou fala em piloto automático, já sabe o que produz efeito, e, então, parece que já nem se dá muito ao trabalho de se documentar sobre os assuntos. Dá ideia que já vai na desportiva, acreditando que os anos de tarimba e o inegável carisma devem ser suficientes para ultrapassar alguma impreparação.
No outro dia, a entrevista no Expresso ao Houellebecq -- que li em papel mas que está disponível online -- foi uma desilusão das grandes. Partilho completamente a análise que Mestre Plúvio publicou sobre o assunto. Clara Ferreira Alves parecia estar a exibir-se perante a criatura. Claro que está mais do que na cara que Houellebecq estava morto de tédio, a fazer um frete dos valentes, nada naquela Clara lhe deve ter suscitado qualquer interesse para que despertasse do spleen em que se habituou a afogar-se.
Uma jornalista armada em expert, cheia de teorias, pronta para fazer a festa sozinha, quase a querer demonstrar que sabe mais da obra dele do que ele próprio, foi nitidamente mais do que ele foi capaz de suportar. Cansado de existir, cansado de gente petulante, cansado de divulgar o livro, cansado de falar sobre o que deveria valer por si, cansado da situação em que vive, via-se que estava era deserto por que ela lhe desamparasse a loja. A entrevista foi uma autêntica desgraça.
E ainda eu não me tinha refeito deste passo em falso de Clara Ferreira Alves, eis que, no Eixo do Mal deste sábado, a vejo em mais uma prestação para esquecer.
Instada a pronunciar-se sobre a situação vivida por Sócrates -- a insistência na prisão preventiva depois dele ter recusado a pulseira electrónica e sobre os últimos episódios -- Clara foi fiel a ela própria: que o que se passa tem sido um espectáculo mediático, logo desde a prisão e, que, por medo dele, fazem de tudo para o lincharem na praça pública, e as fugas de informação, e tudo o resto que se sabe, e aí foi ela disparada a dizer mal da Justiça e de tudo o que veio por arrasto (e, até aí, a conversa estava consistente com as posições que se lhe conhecem).
E, como se já estivesse sem travões, aí continuou a bela da Clara. Falando das paixões que Sócrates desperta (mas como se isso não se aplicasse a si própria) e dizendo que ele é uma verdadeira rock star, mesmo na prisão, aí continuou ela, desabalada, e, às tantas, de carrinho, já se pronunciava sobre a relação de Sócrates com o dinheiro, já se interrogava sobre se Sócrates, sendo leviano com o dinheiro como era, devia ter sido primeiro ministro numa altura em que o país estava quase na bancarrota, e que mau que era pedir tanto dinheiro ao amigo, e já falava de adjudicações directas e mais não sei o quê.
Ou seja, tendo começado por dizer que todo o processo tem decorrido de uma forma inaceitável, levando a que Sócrates seja condenado na opinião pública mesmo que, de facto, não exista ainda sequer acusação formulada, acabou ela própria a condená-lo sem provas, fazendo fé no que lê no Correio da Manhã e no Sol, e mais do que isso, até já a fazer juízos políticos retroactivos.
Mas a inconsistência não se ficou por aqui.
A seguir falou Pedro Marques Lopes (que, por acaso, até não estava naqueles dias que levam Mestre Plúvio a dizer, com aquela língua afiada e a graça que se lhe conhece, que, por efeito feromónico da vizinhança prolongada vem menstruando cada vez mais sincronizado com Clara Ferreira Alves) que falou com lucidez, denunciando o perigo deste poder justicialista que pode mandar uma pessoa para a prisão sem a acusar de nada, que pode mantê-la presa durante o tempo que entender, que vai alimentando a opinião pública de forma a justificar a prisão e a destruir a vida da pessoa, etc.
E aí, a bela da Clara, entusiasmada, foi atrás do Pedro e já se indignava contra quem condenava Sócrates sem provas, contra isto de as pessoas já darem por provado tudo o que vai saindo para os jornais do costume, etc, etc, e por pouco já parecia ela a mais indignada das pessoas por haver alguém que acredite nisso tudo e condene Sócrates antes sequer dele ter sido acusado (como se não tivesse, ela mesmo, acabado de fazer isso).
Juro: ouvi tudo aquilo perplexa. Que inconsistência: uma coisa e o seu contrário ditas com igual veemência, convicção, como se as suas intervenções fossem consistentes.
Eu sou tolerante com muita coisa, esforço-me por compreender as circunstâncias, o contexto, a cultura, o que for que possa justificar as atitudes das pessoas, mas, juro, tenho muita dificuldade em ter paciência para a inconsistência. E parece que cada vez há mais gente inconsistente: num dia anunciam uma coisa, dois ou três dias já aí estão, lampeiras, fazendo o contrário, ou prometem fazer alhos e, com a maior cara de pau, fazem bugalhos, ou começam uma intervenção dizendo uma coisa e, se for preciso, acabam-na a dizer o contrário. Não tenho paciência. Perco a confiança: como é que se pode acreditar no que dizem se, de seguida, as poderemos ver a dizer ou fazer exactamente o contrário?
Não dá. Risco-as do meu interesse, o meu radar deixa de as assinalar. Desisto delas. Desligo-me. Por isso, Clara Ferreira Alves: bye bye.
A caricatura feita a Rosário Teixeira é a do magistrado que pergunta ao suspeito quem lhe fez o fato, como o pagou, de onde veio o dinheiro, onde comprou o tecido e depois pede o levantamento bancário das contas do alfaiate e da retrosaria num 'follow the money' que tem dificuldade em parar. De seguida abre um processo relativo aos sapatos e por aí segue alegremente.
É o que está a suceder na 'Operação Marquês', que passou por Paris, já anda na Venezuela, na Parque Escolar, em casas do Algarve, na urbanização de Vale do Lobo, em viagens a Veneza, na quinta que pôs Duarte Lima nas bocas do mundo, e tudo mais que lhe levantar suspeitas, numa viagem por contas bancárias que parece não ter fim. O caso que envolve José Sócrates não parece estar a ter outra estratégia.
(...) Num processo mediático e que tanta controvérsia suscita, cada dia que passa é um dia a menos para a credibilidade da Justiça.
Uma coisa é a convicção, mesmo que esmagadoramente sustentada pela opinião pública, de que ele é culpado; outra coisa é a prova de tal. Mas, face ao que se tem visto, a questão primeira é saber se José Sócrates alguma vez terá direito a um julgamento isento. E, se for o caso, a uma condenação baseada, não em suposições ou manchetes do 'Correio da Manhã', mas nessa coisa comezinha, chata e difícil de produzir, porém essencial, que se chama provas. O Estado de Direito não é um chá das cinco.
Caso queiram assistir ao referido Eixo do Mal, deixo aqui o vídeo do programa. A intervenção de Clara Ferreira Alves sobre este assunto começa para aí aos 25 minutos. E daí para a frente é o que se verá.
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(Aqui ainda o Nuno Artur Silva não tinha ido para a administração da RTP; agora é Aurélio Gomes, um charme e uma simpatia, que conduz o programa) |
Instada a pronunciar-se sobre a situação vivida por Sócrates -- a insistência na prisão preventiva depois dele ter recusado a pulseira electrónica e sobre os últimos episódios -- Clara foi fiel a ela própria: que o que se passa tem sido um espectáculo mediático, logo desde a prisão e, que, por medo dele, fazem de tudo para o lincharem na praça pública, e as fugas de informação, e tudo o resto que se sabe, e aí foi ela disparada a dizer mal da Justiça e de tudo o que veio por arrasto (e, até aí, a conversa estava consistente com as posições que se lhe conhecem).

Ou seja, tendo começado por dizer que todo o processo tem decorrido de uma forma inaceitável, levando a que Sócrates seja condenado na opinião pública mesmo que, de facto, não exista ainda sequer acusação formulada, acabou ela própria a condená-lo sem provas, fazendo fé no que lê no Correio da Manhã e no Sol, e mais do que isso, até já a fazer juízos políticos retroactivos.

A seguir falou Pedro Marques Lopes (que, por acaso, até não estava naqueles dias que levam Mestre Plúvio a dizer, com aquela língua afiada e a graça que se lhe conhece, que, por efeito feromónico da vizinhança prolongada vem menstruando cada vez mais sincronizado com Clara Ferreira Alves) que falou com lucidez, denunciando o perigo deste poder justicialista que pode mandar uma pessoa para a prisão sem a acusar de nada, que pode mantê-la presa durante o tempo que entender, que vai alimentando a opinião pública de forma a justificar a prisão e a destruir a vida da pessoa, etc.
E aí, a bela da Clara, entusiasmada, foi atrás do Pedro e já se indignava contra quem condenava Sócrates sem provas, contra isto de as pessoas já darem por provado tudo o que vai saindo para os jornais do costume, etc, etc, e por pouco já parecia ela a mais indignada das pessoas por haver alguém que acredite nisso tudo e condene Sócrates antes sequer dele ter sido acusado (como se não tivesse, ela mesmo, acabado de fazer isso).
Juro: ouvi tudo aquilo perplexa. Que inconsistência: uma coisa e o seu contrário ditas com igual veemência, convicção, como se as suas intervenções fossem consistentes.
Eu sou tolerante com muita coisa, esforço-me por compreender as circunstâncias, o contexto, a cultura, o que for que possa justificar as atitudes das pessoas, mas, juro, tenho muita dificuldade em ter paciência para a inconsistência. E parece que cada vez há mais gente inconsistente: num dia anunciam uma coisa, dois ou três dias já aí estão, lampeiras, fazendo o contrário, ou prometem fazer alhos e, com a maior cara de pau, fazem bugalhos, ou começam uma intervenção dizendo uma coisa e, se for preciso, acabam-na a dizer o contrário. Não tenho paciência. Perco a confiança: como é que se pode acreditar no que dizem se, de seguida, as poderemos ver a dizer ou fazer exactamente o contrário?
Não dá. Risco-as do meu interesse, o meu radar deixa de as assinalar. Desisto delas. Desligo-me. Por isso, Clara Ferreira Alves: bye bye.
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Já agora, sobre o disparate que é este Processo Marquês (e de que as últimas saídas para os jornais, com aquelas indigentes perguntas, dando a ideia que a investigação anda aos apalpões, a atirar barro à parede, sem uma linha de rumo, sem se perceber como é que aquele labirinto ridículo pode acabar), transcrevo, do Expresso, um excerto da última crónica de João Garcia (que passou a Director da Visão) intitulada 'O Tudo ou o Nada':
A caricatura feita a Rosário Teixeira é a do magistrado que pergunta ao suspeito quem lhe fez o fato, como o pagou, de onde veio o dinheiro, onde comprou o tecido e depois pede o levantamento bancário das contas do alfaiate e da retrosaria num 'follow the money' que tem dificuldade em parar. De seguida abre um processo relativo aos sapatos e por aí segue alegremente.
É o que está a suceder na 'Operação Marquês', que passou por Paris, já anda na Venezuela, na Parque Escolar, em casas do Algarve, na urbanização de Vale do Lobo, em viagens a Veneza, na quinta que pôs Duarte Lima nas bocas do mundo, e tudo mais que lhe levantar suspeitas, numa viagem por contas bancárias que parece não ter fim. O caso que envolve José Sócrates não parece estar a ter outra estratégia.
(...) Num processo mediático e que tanta controvérsia suscita, cada dia que passa é um dia a menos para a credibilidade da Justiça.
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E também, já que estou numa de Expresso, transcrevo um pequeno excerto do artigo de Miguel Sousa Tavares a que, muito justamente, chamou 'O Preso 44 e o Estado de Direito':
Uma coisa é a convicção, mesmo que esmagadoramente sustentada pela opinião pública, de que ele é culpado; outra coisa é a prova de tal. Mas, face ao que se tem visto, a questão primeira é saber se José Sócrates alguma vez terá direito a um julgamento isento. E, se for o caso, a uma condenação baseada, não em suposições ou manchetes do 'Correio da Manhã', mas nessa coisa comezinha, chata e difícil de produzir, porém essencial, que se chama provas. O Estado de Direito não é um chá das cinco.
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O Eixo do Mal - vídeo de 13 Junho 2015
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Talvez porque Clara Ferreira Alves fala sempre com certezas absolutíssimas, como se não duvidasse da sua superior presciência e sagacidade, lembrei-me da gata-Einstein (assim chamada porque deita a língua de fora tal como Einstein aparece numa fotografia célebre), uma gata que se chama Melissa, e que a sua dona, a fotógrafa Alina Esther, gosta de registar na sua pose preferida. É ela que aparece em duas fotografias neste post.
A música, como um sopro de oxigénio, é o Mário Laginha Trio* interpretando o Prelúdio n.20 op.28 de Chopin
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Sobre o funâmbulo francês Philippe Petit, que foi entrevistado para o Expresso por Pedro Mexia, e sobre o que é caminhar sobre o vazio e sobre o que isso tem a ver com religião e sobre as minhas vertigens falo no post abaixo.
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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma boa semana a começar já nesta segunda-feira.
Saúde, sorte, amor e dinheiro para os gastos é o que desejo a todos.
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