O meu dia começou cedo, bem mais cedo do que o habitual. Começou com um telefonema. Embora não fosse bom, tenho este meu jeito optimista de ser. E, enquanto ouvia, pensava: 'enquanto for ela a ligar-me, menos mal'. É que as más notícias de verdade nunca são dadas pelos próprios.
De qualquer forma, toda a manhã estive em suspenso sem saber se era para avançar de imediato ou se não. E de tarde fui para lá.
Em acréscimo à óbvia preocupação, esta circunstância de não poder ser dona da minha agenda traz-me alguma ansiedade.
Receio afastar-me, receio combinar coisas a que não possa comparecer.
E outra: agora estou sempre naquela de, quando tenho algum tempo livre de crises, tratar de tudo por atacado não vá o diabo tecê-las e depois não ter tempo. E isto também é um bocado estúpido. Mas parece eu que adivinho. Tendo várias coisas para tratar, na segunda-feira foi uma overdose. Estava saturada mas parece que pressentia que o melhor era aguentar pois poderia surgir alguma coisa que me impedisse de diluir por vários dias. Afinal fiz bem. Agora já estou despachada.
Mas, enfim, é verdadeiramente aquilo que se costuma dizer de um dia de cada vez. Até porque, na realidade, tenho sempre a sensação de que é tudo mais psicológico do que fisiológico. Mas depois, não percebo como, os exames confirmam que há mesmo qualquer coisa e isso é que é pior.
Eu deveria mesmo ter estudado psicologia para saber lidar melhor com estas coisas.
Uma amiga médica, no outro dia, falava-me na dificuldade que é para eles, médicos, conseguirem extrair a raiz do problema de doentes que somatizam, chegando lá a relatar sintomas e mais sintomas, dramas em cima de dramas. Muitas vezes, dizia-me ela, ao fim de estar na conversa uns minutos, já passou tudo, já tudo foi relativizado. Involuntariamente, as pessoas assim transformam o medo em sintomas.
Tirando isso, ainda consegui, durante uma meia hora, passear à beira mar e apanhar algum sol.
Sinto falta de ter tempo para escrever. Há um fenómeno estranho a dar-se na minha vida. Quando trabalhava, trabalhava mais do que as oito horas por dia, perdia tempos infinitos no trânsito e, apesar disso, tinha tempo para tudo. Agora falta-me o tempo e isso é inexplicável.
Também há esta coincidência de as coisas com a minha mãe se estarem a complicar com uma frequência algo inesperada justamente agora que tenho disponibilidade para andar a acompanhá-la e a tratar de coisas para ela. Se fosse há uns meses como é que teria sido? Pergunto-me mas, na volta, tal como conseguia arranjar maneira de fazer tudo também acomodaria mais isso. Não sei.
O que sei é que ando um bocado psicologicamente esgotada. Para além disso, também um bocado fisicamente cansada.
Mas, enfim, todos os males fossem estes. Portanto, bola para a frente.
E, enquanto escrevo, estou a ouvir este vídeo que aqui partilho. E estou a gostar muito. Se tiverem ocasião, não deixem de ouvir. É mesmo uma maravilha.
Barenboim & Argerich : Mozart Sonata for Two Pianos, K.448
Como aqui o expressei, não acreditava que o PSD fosse ganhar. Não vou em cantigas. Guio-me pela minha intuição mas, também, pela razão. Não apenas não vi que a população estivesse, de forma geral, insatisfeita com a governação socialista como não acredito que se deixe completamente manipular pela chusma de comentadores, jornalistas-comentadores e convidados-avençados nem pelos argumentos hipócritas e imaturos do Bloco nem pelos argumentos antiquados e arrevesados do PCP nem pelas arruaças da direita.
Contudo, há uma franja da população que é naturalmente mal informada e relativamente à qual nunca se sabe bem a dimensão nem para que lado pende. As televisões dos cafés e dos espaços públicos (até numa clínica já eu vi) estão sintonizadas no Correio da Manhã que é o que se sabe A linha editorial da TVI e da nova CNN sintonizam-se no mesmo comprimento de onda: o medo, o drama, o 'está tudo mal', 'isto é tudo uma pouca vergonha', 'são todos uns gulosos' e etc... E isso é sabido e consabido que é o caldo em que germina a semente do populismo, do fascismo, do racismo.
Ora, em vez de apostarem na desmontagem deste perigoso argumentário, formando uma barreira contra o Chega, o Bloco e o PCP apostaram antes em dizer mal do PS. Por outro lado, o PSD e o CDS pensaram que o bom seria mimetizarem o Chega, apostando num bota abaixo ao Costa.
Mas uma coisa é certa: se há muita gente mal informada, na sua maioria os portugueses não são parvos. O governo do PS tem sabido gerir bem este período da pandemia não apenas numa perspectiva de saúde pública mas também de atenção social e humana aos mais atingidos pela crise, tem sabido relançar a economia, tem sabido controlar o défice, tem sabido desagravar a dívida pública apesar das mil dificuldades, tem sabido controlar, e bem, o desemprego, tem sabido manter o país informado e coeso. Portanto, pela cabeça de quem passaria acreditar que os portugueses queriam acabar com esta governação?
Acabar com o governo de António Costa para lá meter quem? O Chicão... porque dizia que ia acabar com o Acordo Ortográfico...? O Jerónimo porque tem melhor dicção que o Costa...? O Rui Tavares porque a Justiça em Portugal funciona como se sabe e há que penalizar o PS...?
Talvez algumas pessoas pensem assim e, obviamente, estão no seu direito. Mas são casos isolados. A maioria das pessoas acautela a boa governação e quer ter gente de confiança à frente dos destinos do País.
Por isso, sempre acreditei na vitória do PS e, por isso, desejei que o resultado eleitoral garantisse alguma estabilidade.
António Costa diz, e é o que penso, que maioria absoluta não é sinónimo de poder absoluto. E temos um Presidente da República que garantirá o normal e saudável funcionamento das instituições. Portanto, a quem assusta a maioria absoluta? O que assusta é a instabilidade, o que assusta é que o Chega se unisse ao PSD, o que assusta é que o País voltasse a andar para trás.
Dito isto, penso que, agora que o Partido Socialista obteve a maioria absoluta, é tempo para se abrir ao futuro, começando a trabalhar mais energicamente numa transformação em direcção à modernidade. É preciso fazer mais, melhor, mais agilmente... e diferente.
Temos ainda uma classe dirigente a nível da gestão bastante iletrada e, logo, ineficiente e improdutiva. Temos ainda uma mentalidade muito quadrada, muito presa a ortodoxias, pouco aberta à cultura e à diversidade. É preciso criar momentos de reflexão e ter a coragem de ousar. Façam-se pilotos, testem-se modelos, inove-se. Não coisa de boca, para o papel, para inglês ver. Não: inove-se na maneira de trabalhar, na maneira de estar e, em alguns pontos, na maneira de ser.
Certamente António Costa quererá receber contributos de todos os que estão no Parlamento, ouvir ideias, receber sugestões. Por exemplo, do PAN, do Livre e, até, da IL. É gente com boa cabeça, boa vontade, boa atitude.
Em especial a nível urbano, em especial nas camadas mais jovens, a IL é ouvida com atenção. Isso não deve ser levado a brincar. Há na Iniciativa Liberal algumas ideias que merecem ser ouvidas. Mesmo que não sejam para ser lidas integralmente à letra, deve ter-se em atenção que contêm a vontade da mudança. O PS deve estar aberto a esta vontade. E não são apenas as ideias: é também a atitude. A atitude da IL é uma atitude cordata, cosmopolita, desempoeirada -- e isso é louvável.
O PS tem entre os seus militantes e simpatizantes gente muito boa e deve saber valer-se disso. Mas, ao mesmo tempo, deve fugir do aparelhismo, das soluções autocentradas e burocráticas, do facilitismo. Deve ouvir e receber com agrado sugestões que visem aproximar o País de outros países mais desenvolvidos mesmo que isso configure algumas disrupções.
Mas deve ouvir também, com atenção, as sugestões válidas que provenham do PSD, do PCP e do Bloco. Acredito que estes três partidos, com o banho que levaram nestas eleições, provavelmente com novas lideranças, venham a ter uma atitude de humildade e de lealdade perante os portugueses.
E deve ouvir também os artistas, os agentes culturais. Um país move-se tanto melhor quanto for movido a cultura. A cultura não move apenas montanhas: move oceanos, move continentes. Move e aproxima.
Deverá haver uma atenção genuína e pragmática em relação ao conhecimento e às artes.
Uma vez, num fórum de inovação promovido pelo Grupo a que estava ligada, sugeri que convidassem um filósofo como orador. Não quiseram. Mas acho essencial que se tragam os agentes da cultura, do saber, da investigação para o debate público nem que seja apenas para nos fazer pensar de outra maneira, para enriquecer a nossa visão com outras perspectivas.
E que se percebam os problemas de base da sociedade para que se invista onde as necessidades são mais básicas e prementes: nas creches públicas, no ensino e na saúde tendencialmente gratuitos, na formação de adultos, em residências seniores assistidas também tendencialmente gratuitas ou em redes de assistência domiciliária a idosos, no acolhimento inclusivo e de qualidade aos imigrantes, em habitação de baixo custo para os mais desfavorecidos e/ou para jovens. Etc. A baixa natalidade é uma ameaça à coesão nacional e à confiança no futuro. Por isso, tem que se investir em tudo o que comprovadamente inverta essa tendência. E o envelhecimento não tem que ser um sufoco ou um fardo para os próprios e para as famílias. O envelhecimento tem que ser digno e feliz.
Mas há muito mais: há que repensar profundamente o modo de vida a que nos habituámos.
Por exemplo: deve incentivar-se o teletrabalho sempre e onde seja possível (de forma controlada, obviamente) e a semana com menos horas de trabalho, deve promover-se a existência de mais espaços verdes e de hábitos de vida mais saudável, deve assegurar-se o absoluto respeito pela natureza, a adopção de práticas mais sustentáveis em todos os momentos da nossa vida. Etc.
Estou certa que, com as mãos mais livres, o PS irá saber interpretar o querer e o sentir dos cidadãos, irá trazer ideias novas para melhorar a qualidade de vida de todos e não irá desbaratar o capital de confiança que recebeu dos eleitores.
Por isso, mais do que tempos de compromisso, espero que sejam tempos de boa mudança os que aí vêm.
Portanto, boa sorte a António Costa. E, desejando muito boa sorte a António Costa, estou ao mesmo tempo a desejar muito boa sorte a todos nós.
Tive que ir ao médico por um destes dias. Na sala de espera, de imediato procurei revistas. Infelizmente nada de útil, só revistas médicas e do expresso, ainda por cima antigas. Portanto, ia treslendo e, de soslaio, vendo quem estava, ouvindo conversas.
E uma conversa fez-me especial impressão. Uma senhora talvez com setentas e tais, ar de pessoa com posses, triste e abatida, contava que o marido tinha estado em observação numa clínica privada e que, dada a sua situação, de lá tinham chamado uma ambulância e passado uma guia de marcha para um hospital público. Contava ela, com voz aflita, que o marido estava muito mal. E que, apesar de estar tão mal, tinham-no deixado ficar umas horas na urgência. Com a voz embargada, contava que, ao fim de três horas sem saber o que se passava, conseguiu que a deixassem entrar e que foi dar com ele numa cadeira de rodas, no corredor. Dizia ela: 'Naquele estado e ali assim, sozinho, na cadeira de rodas'. E dizia que, como o hospital estava cheio, o tinham internado num piso intermédio por cima das urgências. E falava em voz baixa, assustada, com medo do que pudesse acontecer ao marido.
Percebo-a muito bem. Percebo a sensação de vulnerabilidade quando uma pessoa está doente, à mercê dos outros.
Felizmente a única vez em que me vi numa situação minimamente parecida foi coisa de nada. Tinha feito artroscopia aos joelhos (um disparate para o qual ainda hoje não encontro grande explicação) e uns dias depois tive o que creio ter sido uma reacção à epidural: uma enxaqueca como nunca antes tinha tido, insuportável. Não podia sequer ver luz. Calhou nesse dia ter consulta no hospital. De tal forma estava que me aconteceu o impensável: vomitei no carro. Não dava para parar e não consegui evitar. Cheguei à recepção do hospital e tive que ir à pressa (eu, que mal conseguia andar) à casa de banho para voltar a vomitar. Quando estava no consultório, mal conseguia falar, estava quase afónica. E, então, comecei a ver tudo branco, a sentir-me esquisita, a sair de mim mesma. Só percebi que o médico saíu apressadamente. Voltou com um copo de água com açúcar que me deu a beber e logo a seguir chegou uma enfermeira com uma cadeira de rodas. Sentaram-me lá e levaram-me a correr para o SO. E eu vi-me, indefesa, sem forças, sem voz, agoniada, cheia de dores de cabeça, a ser levada em cadeira de rodas pelo meio de uma recepção cheia de gente. Eu que sou discreta e que detesto dar nas vistas, vi-me incapaz de sequer opinar, quanto mais ir pelo meu pé para onde quer que fosse.
Mas se comigo foi esta coisa de nada, com o meu pai, infelizmente, já passei pela triste evidência de que, na doença, todos são iguais na vulnerabilidade e que, se calha o hospital estar cheio, todos para ali ficam, expostos, frágeis, indefesos, à mercê de tudo.
Não vale a pena a gente pensar que não é justo ou que poderíamos pagar cuidados diferentes porque, de facto, não vale a pena: quando se está mesmo doente e se é levado para um hospital, nada mais há a fazer senão esperar que alguém acuda, que alguém tenha tempo para se acercar. De cada vez que o meu pai esteve nesta situação, ando por ali, entre gente que tosse e grita e geme e chama, tentando abstrair-me da infelicidade que é estar naquelas desafortunadas circunstâncias. E vou à procura de um enfermeiro que vá aspirar o meu pai ou de um médico que me diga o que se passa e estão todos ocupados e o tempo passa e o meu pai e todos os outros doentes para ali estão, indefesos, certamente muito infelizes, à vista de todos. A vida é sábia: o que vale ao meu pai é que já não vê e já perdeu um pouco a noção exacta do que acontece quando é levado para fora do seu espaço habitual. Porque senão, orgulhoso como sempre foi, haveria de se sentir humilhado por estar estar exposto na sua fragilidade, ali, numa maca, ao pé de outras macas e de outras pessoas que por ali andam.
Claro que era bom que houvesse o dobro dos hospitais, o dobro dos médicos, o dobro dos enfermeiros e dos auxiliares. Mas, se tivéssemos serviços públicos a dobrar, pagaríamos impostos a dobrar e isso também ninguém quer.
A única coisa que desejo é que a vida seja generosa para comigo e para os meus e que situações destas sejam raras, pouco dolorosas -- porque sei que passar por isto é uma pouca sorte.
E se passar por estas situações é triste em qualquer idade, pior é para os mais velhos que, pelas vicissitudes da sua saúde, ou ausência dela, vão assistindo ao seu próprio declínio, impotentes, dependentes, sem nada poderem fazer. Que ao menos haja quem os acompanhe e apoie e, na medida do possível, os faça sentir queridos e protegidos.
E lembrei-me de escrever isto ao ver o vídeo abaixo que mostra o poeta Donald Hall. O vídeo chama-se Old Age Is a Ceremony of Losses.
Sei bem que o meu marido vai ficar aborrecido porque não gosta que eu escreva coisas deste género, um bocado a atirar para o pesado. Talvez receie que isso signifique que eu esteja com baixo astral. Mas não estou. Estou normal. Mas do meu estado normal também faz parte ser realista.
Temo, isso sim, que escrever coisas assim possa deixar um bocado em baixo quem me lê e eu isso também não gosto. Não sou de dramatizar. Não vale a pena. A vida é mesmo assim, cheia de coisas -- e nem todas muito boas. Mas, atenção, a vida é boa na mesma. Há que vivê-la o melhor possível (enquanto isso for possível)
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Já agora, se me permitem, um poema de Donald Hall lido por Tom O'Bedlam: Safe Sex