Música, por favor
Pedro Jóia interpreta Verdes Anos (Carlos Paredes)
. 1 .
Em
Novembro de 2010, num dia de ventania, para meu grande desgosto, partiu-se uma árvore
in heaven. A árvore já era muito alta, talvez uns 3 metros, embora o tronco fosse relativamente fino. Tinha sido uma árvore plantada por nós vários anos atrás, uma grevílea robusta.
Durante muito tempo quis esperar, não quis que se cortasse o tronco, tinha esperança que voltasse a rebentar. Mas a imagem de uma árvore destruída é triste de ver e acabei por ceder. O tronco foi cortado curto, quis que se guardasse a sua memória.
Para minha surpresa e alegria, cerca de um ano depois, começou a despontar, ao lado, uma folhinha que me parecia ser a bela folha rendilhada da grevílea. E assim foi. À medida que o tempo passava fui vendo embevecida como é generosa a natureza. Renasceu a minha querida grevílea. Ao fim de um ano e meio já deitou corpo e já iniciou o seu percurso a caminho de voltar a ser uma árvore crescida.
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A minha grevílea, qual fénix renascida, menina ainda, tão cheia de graça, brilhando ao sol
(Ao lado, rochas saídas da terra) |
. 2 .
Falei-vos já muitas vezes desta minha nesga de terra aqui, in heaven. Quando resolvemos comprá-la, o meu pai olhava desconsolado para aquela terra inóspita, só pedra, e tentava dissuadir-nos: 'nunca aqui vão conseguir ter uma horta'. Só pedra e mato rasteiro. Nada crescia, apenas o tojo em que nos picávamos constantemente. Só pedras, pedras, pedras. Uma vez um senhor da terra a quem pedimos para ir lá cortar o mato e que, ao cavar, só lhe saíam pedras, lamentou-se: 'Ah terra ingrata...'. Custou-me muito ouvir isto. Apesar de tudo, nunca achei que aquela minha terra fosse ingrata. Desistimos de a tentar domesticar e agora somos nós dois que, sozinhos, fazemos o que entendemos que deve ser feito o que, diga-se, é muito pouco.
Mas muita persistência, total ausência de resignação, levaram a que esta terra se transformasse. Ao princípio, os meus filhos não percebiam a minha teimosia, achavam que era à toa que, no meio das pedras, plantasse tantas árvores minúsculas. Sempre lhes disse que um dia iam admirar-se por ver ali um bosque.
Em alguns recantos já o é quase e eu só não me ajoelho para beijar esta tão amada terra porque não sou muito dada a essas 'cenas'.
Talvez muitas pessoas olhem para aquilo e digam que é mato, ainda apenas mato. Mas não é. É o meu bocado de céu.
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Se repararem o solo é, todo ele, pedregoso.
Mas amaciou-se e cobre-se de um suave e perfumado colorido - talvez não dê para horta mas o rosmaninho é lindo |
Não sei se foi pelo meu muito forte amor, o que sei é que aquela terra que, à vista, ainda é seca - uma fina camada de terra seca sobre um corpo de pedra - permite agora que o que lá nasce se torne exuberante.
Claro que há espécies que não vingam, pelo menos em alguns bocados de terra. Há sítios onde já plantámos e replantámos uma meia dúzia de vezes e, sei lá porquê, não dá. Mas, onde nasce, é um excesso de vida e cor que me deixa feliz como nem imaginam.
Tudo me enternece. Vocês podem achar que o excesso está é em mim, por achar extraordinárias coisas que são banais. Mas é que não são banais. Podem, a alguns, parecer banais mas, para mim, são maravilhosas.
Vejam.
. 3 .
Hoje reparei na parte de baixo de um cedro que está já enorme. Por cima está verde, cheiroso, frondoso. Mas por baixo é um tal aparato de rendas, de fios, atilhos, laços...!
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Parte de baixo do cedro
Melhor: a lingerie, rendada, emplumada, do meu grande cedro |
Mas isto é por baixo. Porque ou o cedro é um nome masculino só para disfarçar e, de facto, esta árvore é feminina ou, então, o meu cedro é dado a vestir-se de mulher.
Quanto ao underware, já estamos falados. Mas, por cima, é o mesmo aparato: a ramagem verde virtuosa toda se enfeita, uma profusão de enfeites, uma garridice faustosa.
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Jóias chamativas e lustrosas, carnudas, cheias de sementes
É o meu cedro que gosta de ser assim: uma chamativa mulher perfumada e frondosa |
Fiz uma ginástica para conseguir ângulo para vos mostrar estas viçosas bolas verdes que agora enfeitam todas as ramagens. Toda a árvore está assim, cheirosa, ramalhuda, enfeitada. Uma fertilidade absoluta.
No final de Fevereiro, os meus pés de videira estavam ressequidos, pareciam mortos, ramos retorcidos e secos. Eis que
tenho, então, notícia de que um Poeta tinha podado as suas. Leiga, informei-me,
é agora a altura? Há técnica específica? Respondeu-me que se guiava pela intuição e pelo carinho, e que corria bem.
No fim de semana seguinte fiz-me ao labor. Com o podão na mão e seguindo as instruções - intuição e muito carinho - peguei nos ramos velhos e, com toda a delicadeza, podei-as generosamente, com gosto, rente, com a convicção de que o milagre haveria de acontecer (lá bem no fundo, talvez algum receio de que as tivesse ferido de morte, mas apenas lá muito no fundo...).
Pois bem, o milagre aconteceu mesmo.
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Videiras verdes, macias, e, de novo, um rendilhado: desta vez, cachos de uvas que despontam com inesperada exuberância
(Atrás, azulejos com uma reprodução de Max Ernst) |
Viçosas, frondosas, verdejantes, carregadinhas de cachos lindos, miudinhos que virão, certamente, a ser uns belos cachos de uvas escuras, carnudas, sumarentas. E eu olho estes rebentos com o desvelo com que olharia filhos que eu tivesse ajudado a nascer.
Correu bem aquela cirurgia a que as sujeitei em Fevereiro. Os Poetas são, como é sabido, pessoas em quem se pode confiar.
[A posteriori, volto aqui para vos convidar a ler o poema que o Poeta fez inspirado nesta notícia sobre o bom resultado que o seu conselho propiciou: poderão lê-lo quer nos comentários aqui abaixo, quer no seu Traçados sobre Nós]
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Música, de novo, por favor
Carlos Parede e Luísa Amaro - Canto do Amanhecer
. 5 .
E isto acontece por todo o lado. Da terra, as árvores dão frutos saborosos e misturam-se com arbustos carregados de flores, uma desordem colorida, em que ninguém tenta impor qualquer ordem.
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Macieira carregada de pequenas maças ainda verdes, misturando-se com um loendro cheiroso e cor de rosa
(Atrás passeiam os cavalos azuis sonhados por Marc Franz) |
Poderia continuar aqui o resto da noite a falar-vos de outras proezas assim. Mas não quero maçar-vos mais.
. 6 .
No entanto, deixem que vos peça ainda um pouco mais da vossa paciência para vos falar ainda destes meus dois loendros. Mediam escassos centímetros e estavam afastados um do outro. Pareciam iguais. À frente, entre os dois, uma das muitas pedras que saíram do solo e a que eu tirei a terra dos orifícios como se limpasse um animalzinho que me tivesse aparecido à porta. Na altura a pedra parecia grandinha junto dos pequenos loendros.
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Os meus dois loendros, entrelaçados: não duros mas macios; no entanto, ainda assim, cheirosos
tal como a eles se referiu Natália Correia |
Pois bem. Desataram a crescer, ao despique, era ver qual se fazia maior. E o bicho de pedra ia perdendo escala. Agora os dois loendros entrelaçam-se, enormes, todos floridos, e acolhem, à sua sombra, o bichinho de pedra. Um dá flores de um rosa clarinho, aveludado; o outro, flores de um rosa mais garrido, umas flores mais miudinhas. Ambos cheirosos.
Mas, mais à frente, espontaneamente, no meio da vegetação natural - rosmaninho, orégãos, esteva, funcho - eis que nasceu uma haste isolada com umas flores lindas, de um belo veludo grenat (deveria escrever à portuguesa, grená, mas parece que estaria a abastardar uma palavra tão bonita...).
O que eu andei de volta dela, fotografando-a. Um luxo. Está cercada de funcho, que é uma planta de um verde macio e rendilhado. Que cores, meus amigos, que cores.
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Não sei como se chama esta flor que nasceu no meio das plantas do campo
mas é linda.
Apeteceu-me limpá-la antes de a fotografar mas presumo que é pólen e respeitei a natureza |
Apenas lamento não poder, por esta via, partilhar convosco o perfume doce, macio, florido, quente como a terra, que aqui respiro. O perfume e a música. É que os pássaros fizeram deste bocado de céu a sua casa. Canta, cantam, voam, recolhem-se às árvores, saem dos arbustos, por aqui andam, brincando em total liberdade, trauteando. Aqui, in heaven, os pássaros, as flores, as árvores, as pedras e eu vivemos em absoluta liberdade. Talvez a felicidade seja mais ou menos isto.
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E é isto, meus Caros Leitores. Permitam ainda que abuse da vossa boa vontade: gostaria muito de vos ter lá pelo meu
Ginjal e Lisboa. Hoje as minhas palavras fogem ao tempo e voam em volta de um belo poema de Natália Correia. As Valquírias envolvem-nos com o seu canto. É a semana que dedico a Wagner que começa.
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Tenham, meus Caros, uma bela semana. Que esta segunda feira seja uma maravilha.