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domingo, janeiro 20, 2019

Lisboa tem livros, objectos, fotografias e memórias, muitas memórias
Lisboa, minha linda.
[Postal nº 1 de 8]






É o que digo: parece que só prestamos atenção ao que já conhecemos. Ou que não reparamos naquilo para que não estamos previamente despertos. 

Tinha para mim que a Sá da Costa ia fechar. Depois, tinha para mim que tinha fechado. Quantas vezes já ali passei depois disso? Nem sei. 

Só sei que, desta vez, a montra me chamou a atenção. Aproximei-me. Olha, afinal não fechou!, admirada. Mas não tinha fechado? Os dois espantados. Se calhar, não. Pensei: será que, afinal, se salvou? Entrei. Intrigada. Assim de repente até me pareceu maior, aberta até lá mais atrás. Se calhar, confusão minha. 


Admiradíssima, fui andando. O meu marido deu uma vista de olhos panorâmica e disse: São usados. Livros antigos. Ainda pensei: Restos? Fundos? Olhei em volta, a ver onde estavam os livros novos. Não. Comecei a ver melhor. Se calhar. Livros e outros objectos, todos antigos.

Perguntei: Mas, então, agora é um alfarrabista? A resposta óbvia: Mas não estás a ver que sim?

Curiosa, fui folheando. Primeiras edições. Livros com dedicatória. Primeira edição dedicada a. vários de Urbano. Seria a sua biblioteca? Mas muitos, diversos. Salas e salinhas lá dentro. Recantos. Vitrines com livros ainda mais antigos, peças especiais.


Eu estava sem conseguir perceber o que é que tinha acontecido. Googlei logo ali e obtive o esclarecimento: de facto, a Sá da Costa tinha estado insolvente mas felizmente houve um aproveitamento do espaço, uma nova vida. Agora, ali, apenas o local e o nome são Sá da Costa. Pertence agora à Livraria Castro e Silva e dedica-se, como se estava a ver, ao alfarrabismo. 

Um fascínio. Tanta coisa, tão bem exposto. Coisa para se estar ali durante horas. Como é possível ter passado tantas vezes ali e, convencida que tinha fechado, nem ter reparado que estava aberta com tais tesouros lá dentro?


É que não são apenas livros: há restos de livros, sebentas, cadernos, restinhos de azulejos, molduras, quadrinhos, objectos decorativos, coisas que não sei o que são ou para que servem. Um mundo.

Fiz muitas fotografias. Não as ponho aqui todas pois talvez fosse fastidioso. Mas, acreditem, é daqueles lugares onde se pode estar uma tarde. Ou um dia. Ou muitos dias ao longo de semanas. Ou de meses. Vai fazer parte do meu roteiro. 

O meu marido que é muito sensível a pós e cheiros, foi lá para fora. Mas foi mais porque não é de estar a observar detalhadamente ou mexer nestas coisas pois o espaço não tem aquele cheiro empoeirado e abafado que muitas vezes torna quase irrespirável o ar dos alfarrabistas escusos, escuros, encafuados. Não, este espaço é arejado, luminoso. Muito agradável.


Gostei de tudo. Mas onde me perdi mesmo foi nos caixotinhos que, à direita de quem sai, se perfilam ao lado uns dos outros com folhas soltas, postais, fotografias.

Uma coisa fascinante mas, ao mesmo tempo, um bocado triste. Objectos pessoais, recordações de família ali à venda.

Mas sobra-me algum pragmatismo: quando alguém herda uma casa cheia de objectos, gavetas cheias de cartas, papelinhos, retratos de amigos e familiares e não tem onde guardar toda esses restos de uma vida -- de facto, montes de tralha -- mais vale que o entregue para que se encontre quem os estime.

Também eu tenho um leque maravilhoso com mais de cem anos, com dedicatórias, uma caixinha de cartas, um espelho de toucador, uma cadeira, um candeeiro, tudo comprado num antiquário. E também eu passei pela situação, já aqui referida algumas vezes, de, ao fim de vários fins de semana a 'desmanchar' uma casa, acabar por assistir passivamente a ver despejar gavetas cheias para sacos grandes do lixo. Já não havia disponibilidade mental e emocional para continuar a ver coisa a coisa, para resover para quem ia isto, aquilo e aqueloutro, para ali estarmos confinados durante o fim de semana a ver coisas velhas. Trouxe muitas coisas, algumas nem sei para quê. Daqui por uns anos alguém andará a pegar em tudo isto que aqui tenho também sem saber bem o que fazer a cada coisa.


Tirei algumas fotografias das caixas. Vi as dedicatórias. Por exemplo, esta que aqui vos mostro. Há cerca de sessenta anos, alguém ofereceu a fotografia desta menina aos seus padrinhos. Se calhar, a menina, hoje uma mulher talvez já com netos, não saiba que a sua fotografia está a venda, muito menos aqui no meu blog, atravessando o vasto espaço que liga o mundo. Talvez alguém se enterneça como eu me enterneci, talvez alguém sem família venha a comprar a fotografia, talvez a emoldure e reconstrua uma memória que não é sua. Sabe-se lá.


É esta a magia dos alfarrabistas, dos antiquários. Um mundo que se desdobra desde o passado até ao presente, transportando memórias, vestígios de outras vidas, vislumbres de outros tempos. 

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E aqui termina a reportagem fotográfica pela Lisboa bela e eterna. Por aí abaixo há mais sete posts que contêm apontamentos colhidos no domingo passado. O último foi o que fiz dedicado a montras. dele poderão ir saltando para os anteriores.

E porque Chiado e livros nos fazem evocar o nosso Eça, despeço-me com ele.


Até já