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segunda-feira, dezembro 11, 2017

Como uma estrela explodindo, eterna e sem duração






Eu era fã dos Livros do Brasil. Aquela editora era um guião cultural para mim. Uns livros puxavam outros. Uns autores abriam-me a porta a outros. Quando ia à Feira do Livro era lá que a colheita era mais segura. 

Steinbeck veio, certamente, assim. E o que eu gostava daquela prosa crua. Livro após livro. Não sei se hoje, relendo, acharia o mesmo. Mas é o que guardo: uma escrita viril, palavras que me traziam a dureza, os sentimentos crus, uma rectidão que eu aprendia a respeitar, uma secura de prosa que continha a vida inteira lá dentro. 

Procuro na Paris Review. Não chegou a dar a entrevista que tinha em mente. Adiou, adiou até que se esgotou o tempo. O que leio são extractos, apontamentos, cartas.

Da introdução a essa resenha feita por Nathaniel Benchley em 1969, retiro isto: 

Há muito tempo, atribuiram-lhe uma citação segundo a qual o génio seria um rapazinho a perseguir uma borboleta por uma montanha acima. Mais tarde afirmou que o que dissera relmente fora que o génio é uma borboleta a perseguir um rapazinho montanha acima (ou uma montanha perseguindo uma borboleta por um rapazinho acima, não me lembro bem) e acho que, de muitos modos, se sentia incomodado por ter apanhado a sua borboleta tão cedo.
Acho extraordinárias estas definições e variações em torno do intangível conceito de 'génio'.

E agora a palavra a John Steinbeck:
O dever do escritor é elevar, ampliar, encorajar. Se a palavra escrita contribui alguma coisa para o desenvolvimento da nossa espécie e da nossa cultura em expansão, foi isto: a grande literatura foi um apoio a que recorrer, uma mãe a consultar, uma pedra de toque para identificar os tropeções da insensatez, uma força na fraqueza e uma injecção de coragem para a cobardia doentia.
(...)

Quando escrevo, às vezes sinto que estou muito próximo de uma espécie de inconsciência. Nessa altura, o tempo altera-se e os minutos desvanecem-se numa nuvem de tempo que é uma só, tem apenas uma duração. Já pensei que se fosse possível desligar a nossa preocupação com a duração, o tempo poderia não a ter. Nesse caso, toda a história e pré-história poderiam efectivamente ser um clarão sem duração, como uma estrela explodindo, eterna e sem duração.


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O discurso de Steinbeck ao ser agraciado com o Nobel em 1962



John Steinbeck, biografia de um escritor americano



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E, por falar em genialidade, lá em cima, numa gravação de 1932, Schnabel interpreta Beethoven Sonata 30 E Major 1st Mov Op 109 

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E caso não se importem de continuar no mesmo comprimento de onda, queiram, por favor, descer ao encontro do monge budista que engoliu um canário: Henry Miller.

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Um monge budista que engoliu um canário


Em 1962, para a Paris Review,  em Londres, George Wickes entrevistou Henry Miller que tinha, então, setenta anos. (Viveria até 1980).


Sobre ele escreveu, na altura, o entrevistador:
Aos setenta anos, Henry Miller lembra um monge budista que engoliu um canário. Transmite imediatamente a sensação de ser uma pessoa calorosa e bem disposta. Apesar da cabeça careca, rodeada de um halo de cabelos brancos, não há nada de velho nele. O seu corpo, surpreendentemente ligeiro, é o de um jovem; todos os seus gestos e movimentos são jovens. 
A sua voz é magicamente cativante, um baixo sonoro mas calmo, com grande alcance evariedade de modulação; Miller não pode ser tão inconsciente como parece do seu fascínio musical. Para perceber todo o sabor e honestidade do homem é preciso ouvir as gravações da sua voz.
Numa daquelas minhas coisas que não se explicam mas que estão comigo desde que nasci, teria eu uns catorze ou quinze anos, resolvi oferecer um livro aos meus pais, presumo que pelo Natal. 

Promenando por entre as estantes, o Sexus chamou a minha atenção. Folheei como sempre o fiz (e faço) e devo ter achado que era mesmo aquilo que era adequado para uma jovem púbere oferecer aos seus pais. Imagino a perplexidade deles ao receberem um presentão daqueles. Mas nunca se deram por achados, nem com isso nem com nada. O que sei é que o esconderam. Lá o descobri e li às escondidas. 

E o que também sei é que tudo o que lia me parecia natural. Tanta coisa tão cedo li que nunca nada me pareceu impróprio. Hoje posso dizer que muito do que sou, resulta, sem dúvida, de toda a incrível mescla que papei em menina e moça.

Depois desse livro, ainda li mais um ou outro dele mas, de repente, aqueles livros já não me traziam nada de novo. Talvez fosse jovem demais para perceber algumas subtilezas. Um destes dias hei-de tentar retomar o pulso àquela escrita. 

Há pouco, preguiçando aqui no meu sofá e continuando a leitura das entrevistas da Paris Review -- e lendo, em particular, a que acima referi -- apeteceu-me ir ouvir a voz de Henry Miller. 
Sou muito sensível ao timbre e a tonalidade das vozes, em especial das masculinas. Acontece-me desiludir-me de um homem apenas pela sua voz. Não sei se há explicação racional mas é assim mesmo. Exemplifico com um caso muito recente: há uma pessoa de quem tenho ouvido incontáveis e encomiásticas referências -- que é um furacão, que é super inteligente, que é corajoso, mesmo fisicamente corajoso. Pois bem: ouvi-o no outro dia e a minha expectativa, de imediato, caíu por terra. Uma voz frágil, uma voz que quer agradar. Um desapontamento

Portanto, Youtube com ela, à procura da voz de Henry Miller. Estou aqui há que tempos a ouvi-lo, há numerosas entrevistas, algumas conversas entre ele e Anaïs Nin. 


O texto seguinte refere-se ao vídeo que escolhi para aqui partilhar convosco:

Filmed when Henry Miller was 81 years old, Henry Miller: Asleep & Awake is an intimate documentary in which the author speaks about writing, sex, spirituality, and New York. 

The film opens in Miller's bathroom, a shrine covered with photos and drawings, where Miller graciously points out the highlights of his "gallery." 
His voice is raspy as he talks about philosophers, writers, painters, and friends. The unique and prolific life of a singular American artist are beautifully captured in this film.

Henry Miller: "Asleep and Awake" (aka. Bathroom Monologue) 1975



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sexta-feira, junho 23, 2017

Porque é que gosto de ver o Karl Ove Knausgård a falar da 'Madame Bovary'


Muito bem. Para começar um disclaimer: nunca li nenhum dos livros do Karl Ove Knausgård. Já ofereci, porque ouvi dizer que são bons, mas nunca me aventurei. Grandalhões de mais, ainda desloco um pulso, sei lá. Ou então é porque ainda não me despertaram atenção suficiente. Não faço ideia.


Mas acho que o fulano tem pinta. Já li uma entrevista e achei que tem carisma. Ou, se não é carisma, é qualquer coisa nessa base.

Agora estive a ver este pequeno vídeo e achei graça. Primeiro, ele de facto tem pinta. Ao princípio parece que está ali desorientado com uma farripa de cabelo, dá vontade de lhe sugerir que corte o cabelo à escovinha ou que use bandelete. Depois lá se organiza.  Tem pinta. A seguir gosto da forma como está vestido. Não é qualquer um que aguenta uma roupa assim, tudo em escuro, mas ele, com aquele belo cabelo grisalho, com aquela barba e aqueles olhos valoriza qualquer toilette. Mais: não percebo nada do que ele fala mas gosto de o ouvir. Faz-me lembrar a Pipi das Meias Altas. Está bem que ele é norueguês e a Pipi era sueca mas para um mau ouvido a coisa soa parecida.

Depois, gosto do lugar onde ele está a falar, ao ar livre, rodeado de verde.

Finalmente, como, no século passado, gostei de ler a Bovary, gostei agora de ouvir a opinião dele.

E pronto, é mesmo só isto que tenho a dizer sobre a entrevista. 

(A fraca erudição não me dá para muito mais -- e quem dá o que tem a mais não é obrigado).



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terça-feira, maio 31, 2016

António Araújo e José Rodrigues dos Santos
- fascismo, marxismo, O Pavilhão Púrpura, pancada na cabeça e faz de conta que é literatura


Ao dar uma circulada pelos blogs, passei pelo Malomil. Aí, José Rodrigues dos Santos, com o seu cérebro de plástico na mão, parece perplexo talvez porque António Araújo, autor do dito blog, escreve sobre a sua mais recente obrícula no Público. António Araújo deu ao artigo o título Fascismo é quando um homem quiser.


Comecei a ler, mas o texto era dose: tinha amuse bouche, entrada, sopa, prato de peixe, prato de carne, doce, fruta, café e digestivo e, portanto, estando eu a ver se faço dieta, dei uma atravessada um tudo nada rápida pelo texto, gabando a paciência de António Araújo.

É certo que António Araújo, ex-assessor cultural do ex-Cavaco, só pode mesmo ter uma resiliência notável. Senão como perceber que tenha aguentado tantos anos em vão a tentar enfiar alguma cultura na empedernida cabeça do seu ex-presidente?


Para além disso e para além de ser Jurista e Historiador (conforme comprovo no Público), é pessoa de uma prolixidade ímpar. Tenho-o também por pessoa com algum pendor obsessivo pois, volta e meia, se lhe dá para embicar com alguma pobre alma, desencanta dúzias e dúzias de fotografias para ver se avacalha a imagem do coitado (como recentemente fez com Boaventura de Sousa Santos lá no Malomil).
Não gosto do verbo avacalhar mas estou com falta de imaginação. Também me lembrei de ajavardar mas não me parece melhor. Abardinar não sei se existe. Enlamear parece-me excessivo. Bem, se me ocorrer melhor já cá volto para edulcorar a coisa. Para já, fica assim.
Outra vez, lá no seu Malomil, num assomo de completa maluqueira, escreveu um tratado a propósito da capa da revista do Expresso na qual se via Fernando Medina com um smartphone. Não consegui ler tudo, achei que aquilo, mesmo para alguém com uma grande pancada na cabeça, já era delírio a mais e, portanto, preferi não testemunhar tal exercício de tresleitura a propósito de uma simples fotografia.

Bom, mas dizia eu que o bom do António Araújo lhe deu desta vez para gastar o seu provecto latim com um assunto que, em meu entender e às cegas, não mereceria sequer um parágrafo. Deu-lhe, imagine-se, para desmontar as balelas do José Rodrigues dos Santos no seu O Pavilhão Púrpura:
O texto de José Rodrigues dos Santos representa um lamentável exemplo de como uma amálgama confusa de referências e factos históricos pode conduzir a conclusões erradas (...)
Já o contei aqui uma vez. A única coisa que comprei do dito histriónico apresentador de programas alarachados de televisão foi um livro de entrevistas que o dito fez a escritores. Ingenuamente pensei que não tinha muito que enganar. Mas oh oh, se tinha. Eu deveria era ter ido devolver o livro: que coisa mal escrita, mal pontuada... Intragável.

Portanto, que o prosápias dos santos, a quem nitidamente falta metade da cabeça (capaz de ser, justamente, porque acha que o cérebro é para usar na palma da mão), lhe dê para encher páginas e páginas de tretas é lá com ele e com as mariazinhas que gostam do género. Agora que um senhor doutor jurista e historiador se ponha ao mesmo nível e se ponha a rebater as balhelhices do outro é que me parece incompreensível.

Alguém, em seu pleno juízo, liga alguma importância às rocambolescas deduções que uma criatura quem nem um gráfico sabe ler e que nem uma entrevista sabe fazer? José Rodrigues dos Santos sabe alguma coisa de marxismo, fascismo, codex, sexo de Cristo ou como dar banho ao cão para que alguém se ponha a ler o que ele diz e depois a rebatê-lo...?


E, portanto, com vossa licença, deixem que confesse: depois de ler o texto de António Araújo sobre as teorias de cão de caça do José Rodrigues dos Santos só me ocorre dizer que tão maluco deve ser um como o outro.

E, no fim de tudo, só retiro mesmo, mesmo, uma conclusão: que o António Araújo está melhor agora do que quando andava a ver se conseguia fazer alguma coisa do Cavaco. Via-o nas fotografias muito penteadinho, muito enjoadinho, muito cinzentinho, Aliás, nem sei se não estou a fazer confusão. Olho para o antes e para o depois e não me parece o mesmo. Este agora, colorido, bronzeado, mais despenteado, com ar mais desempoeirado, parece-me outro.

Seja como for, o António Araújo que vejo agora com ar malandreco na fotografia do Público mostra que está a caminho da regeneração. Só falta fazer uma cura qualquer para ver se deixa de andar a perder tempo com nulidades.

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O oposto: um exemplo de contenção e pontaria, reduzindo tudo ao título do post, é este delicioso post do Valupi no Aspirina B:


Sócrates, não mates o procurador, pá


Delicioso.

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E já cá volto para mostrar graffitis, casais e outras coisas. Até já.
Isto se conseguir que o computador desenvolva, o que, digo já, me está a parecer muito difícil. Esta coisa de eu não querer perder tempo a limpar o disco está a tornar-me a vida complicada...

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segunda-feira, maio 30, 2016

Sodoma divinizada


Como descrevi no post abaixo, com um sol ameno, um mar muito azul e gaivotas all over, é com prazer que me entrego à doce preguiça de existir e de ler.

O livrinho que estou a ler é dos que me sabem a doce rebuçado, talvez daqueles de Portalegre, muito bem confeccionados, bem apaladados.

Tenho estado aqui a ver se encontro um excerto que seja bem elucidativo mas acho que vou limitar-me a copiar o início e o fim justamente do texto que dá título ao livro.

Como supor que um poeta tenha um laboratório e sobretudo - para quê?
Mesmo quando faz ciência, o poeta não põe óculos - põe asas.
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Publicou o Sr. Álvaro Maia no Contemporânea um artigo bastante infeliz, criticando um do meu querido Fernando Pessoa sobre a bela individualidade de António Botto. Nesse artigo o Sr. Maia, sem argumentar, cobre o autor das Canções de insultos os mais grosseiros. E através duma pretensiosa e falsa erudição em que só se sente o vazio, não havendo na sua obrinha a mínima substância, não havendo enfim, nada, o Sr. Maia chega ao ponto, na sua bílis invejosa e despeitada perante a alheia formosura do corpo e do espírito que ele, coitado, não pode possuir, chega ao ponto, digo, de negar talento e arte ao grande poeta que é António Botto.

António Botto
Ora mais respeito pelos artistas, Sr. Maia. O senhor não tem o direito de cuspir na Arte lá porque é torto e feio. Se Deus lhe deu essa figura por alguma coisa foi e nessas condições o senhor, que se diz tão religioso, submeta-se sem revolta, sem gestos abomináveis de bílis plebeia, à vontade divina.

António Botto está já consagrado na alma de Fernando Pessoa, uma das mais altas individualidades de toda a nossa literatura, tão rica de Espíritos.

(...) não é para defender António Botto que aqui estou. (...) O que eu quero é precisamente atacá-lo nessa crítica tão insensata quanto vazia.

A propósito da bela individualidade de António Botto, o Sr. Maia ataca a luxúria e a pederastia, Obras Divinas. Incapaz de sentir os prazeres altíssimos da Carne-Espírito que o Verbo consagrou, ataca-os duma forma vil e tola. Como a Razão herética, filha da Serpente e do Anticristo, contraria o delírio da carne divinizada que é uma expressão de loucura bestialmente espiritual a negar a Razão, sacrílega anti-Loucura, anti-Vertigem, o Sr. Maia, esquecendo-se de que o racionalismo é filho dos últimos séculos de heresia e livre exame, enaltece-o encomiasticamente só para satisfazer a sua bílis contra a vertigem luxuriosa da Vida, antítese da Razão.(...)

O pederasta e luxurioso alheado das cousas divinas não é digno de censura por ser pederasta e luxurioso; é-o apenas como quaisquer outros homens  - o do lar, o comerciante honrado, o escroque por não exercer o vício misticamente.

Mas quem o pode hoje exercer no ambiente terreno, naturalista das nossas cidades e em que os nossos companheiros do vício se alheiam de Deus, sua própria essência?... Criem-se templos de Luxúria em que esta tome uma feição litúrgica e só então surgirá o verdadeiro sensualismo místico que há-de exprimir a divinização do Mundo, a divinização de Sodoma estabelecida exaltadamente pelo Verbo e pelo Espírito Santo de Deus!


[Excerto de Sodoma Divinizada - Leves reflexões teometafísicas sobre um artigo, por Raul Leal (Henoch)]

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A legenda da primeira fotografia das gaivotas é uma afirmação da autoria de João Chagas a propósito de Guerra Junqueiro que em 1904 'vai pôr o mundo científico de Paris ao corrente de trabalhos sobre rádio, feitos no seu laboratório' e faz parte do capítulo 'Cronologia, ou quase' do livro Sodoma Divinizada de Raul Leal, organização, introdução e cronologia de Aníbal Fernandes da ed. Guimarães.
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Lá em cima Bryn Terfel & Renée Fleming interpretam Là ci darem la mano (Mozart)

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E aceitem, por favor, o meu convite e desçam até ao azul do sol a sul.

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sexta-feira, maio 06, 2016

António Guerreiro e O Meças de J. Rentes de Carvalho.
E outros escritores, outros críticos literários, outros livros.
E uma Missa Luba e o Grupo Corpo.
E a subjectividade dos gostos e desgostos.


Depois de poemas que me tiram do sério, coisa a meio caminho da anedota ou do desalento, conforme o caso, ficou a apetecer-me falar de prosa. Prosa prosuda. E vem isto de que o António Guerreiro, crítico literário que eu respeito e aprecio, inteligente, de uma lucidez tantas vezes cortante, deu uma desanda pouco meiga no último livro do Patrão da Barca, J. Rentes de Carvalho de seu nome, autor do dito O Meças.


Pois não vou tirar teimas nem meter-me por aí que a minha sapiência é pouca para tão altas cavalarias e, ademais, ainda não li o livro.

O que posso dizer é que, se calhar porque a idade anda a dar cabo da minha bondade ou paciência, já não são muitos os livros-romances que me prendem do princípio ao fim sem que a vontade de saltar o muro apareça para me tentar. Ou é a história que me soa frouxa ou é a escrita que me parece não ter a tessitura da verdadeira literatura. Ou, se calhar, sou eu que me estou a tornar de má boca (literária).

Guto Stresser


Dantes devorava livros como quem devora pãezinhos quentes pela manhã, presa ao enredo, enlevada pela fraseologia, pela semântica, pelo trabalho bem acabado, sem alinhavos à vista (como o ALA gosta de dizer nas entrevistas). Agora, que perdi a inocência dos verdes anos, minha nossa, quase tudo me parece pão de véspera, culinária de brincadeirinha. Muita gente metida a escritora, muitas vacas sagradas, muito ungimento. E, eu, cansada, olho para a obra e não lhes sinto a mão, parece que não detecto arte ou aquele je ne sais quoi que faz a diferença. Escritores portugueses dos que ainda escrevem, então, poucos, poucos.

Emiliano di Cavalcanti
Ultimamente, para aí nos últimos meses, que me lembre, de romances encantei-me com alguns mas não de cá. John Williams com o Stoner e o Butcher's Crossing, Jean Giono com O Grande Rebanho. Veja-se bem o que recuei. Também Mathias Énard com o Fala-lhes de Batalhas, de Reis e de Elefantes, este recente.

Como tenho dito, agora prefiro ensaios, cartas, diários, entrevistas, apontamentos. Parece que a escrita me soa mais genuína, que se alcança melhor a alma (mas não me perguntem: a alma de quem?) e a arte de escrever parece estar mais limpa.

Quanto aos críticos a coisa também está desengraçada: muita cagança, muita cátedra e pouca vida. Ou sou eu que não os acompanho devidamente. Dantes lia o Rogério Casanova mas tornou-se tão egocêntrico que, em vez de falar dos livros, só falava dele próprio. Gostava de ler a Ana Cristina Leonardo ou o Pedro Mexia mas como deixei de ler o Expresso agora não sei como estão. Aliás, a ela já quase lhe tinham tirado o pio, o que lamentei. O José Mário Silva não apreciava, nunca vi ali verdadeiro rasgo. O Eduardo Pitta escreve em jornais que não leio, nem sei como são agora as suas críticas. Aliás, também já não compro a Ler. Aquilo já não me interessava. E o António Guerreiro escreve no Público e eu não raramente leio o Público. É o que digo: ando arisca, um dia destes hiberno, fujo do que as outras pessoas gostam, deixo de saber de que falam quando falam da actualidade. 


Mas o que estou a dizer não tem a ver com o tema: como disse, sobre a contenda referida que fale quem leu o livro que eu cá não gosto de falar de cor nem sou de clubes ou religiões e, por isso, não vou dizer se o António Guerreiro se passou e embarcou nas suas próprias palavras ou se o Mestre da Barca desta vez não chegou a bom porto.
Seja como for, não gosto de ver violência nas palavras, especialmente quando dirigida a trabalho honesto. Que eu seja virulenta quando falo do láparo parece-me compreensível pois acho que o Passos Coelho deu cabo da vida de parte da população portuguesa e comprometeu muito do futuro do país; mas já me parece desajustado que se invista com agressividade e pouca elegância contra quem se afadiga a escrever, fazendo-o de gosto e não devendo nada a ninguém.
Emiliano di Cavalcanti
Mas, porque não li o livro, avanço na conversa e, se me permitem, desloco-me de novo para territórios mais gerais.

E uma coisa vos digo: por vezes tenho saudades de quando pegava num daqueles brasileiros que me prendiam a atenção da primeira à última palavra. Tenho ali uma estante com umas prateleiras deles. Era eu pequenina e um dos meus tios solteiros, que era todo dado às literaturas, andava a ler 'Olhai os lírios do campo'. Andava entusiasmado, falava muito no livro. Mais tarde, eu já adolescente, foi um dos que li. Mas não sei porquê, talvez porque já vinha com a cabeça feita, o livro não me trouxe uma grande novidade. Mas li outros dele e do Jorge Amado, do Guimarães Rosa, do Gilberto Freyre, do José Lins do Rego -- traziam-me mundos de longe, vozes cantadas, expressões muito de gente humilde ou transbordando vida, uma sensualidade que nascia da intimidade entre as pessoas e a terra ou o mar. Eu vivia imersa naquele mundo enquanto lia.

Não sei como seria se hoje voltasse a pegar naqueles primeiros livros. Talvez já os achasse coisa pouca. Não sei. Se calhar não, se calhar mantinha-se a sensação de estar a olhar para uma imensa catedral feita de palavras.

Mais tarde vieram Rachel de Queiroz, Lygia Fagundes Telles e o deslumbramento da Clarice Lispector. E a pujança de João Ubaldo Ribeiro. E a salgada, viril e vadia carne de Rubem Fonseca.

E não foram só os brasileiros que me abriram a porta para outros mundos.

Os russos. Ainda hoje tenho presente os dilemas terríveis de O Jogador e a escrita sublime que me consumia as entranhas. Ou os contos do Allan Poe que me arrepiavam, irresistíveis e medonhos. Ou Hemingway que me levava pelos montes, pelos mares, que me tomava nos braços com a paixão com que uma virgem deve ser abraçada. Ou Erich Maria Remarque que me conduzia através da guerra, que me dava a conhecer outros amores, outros horrores. Eu lia e outros mundos vinham até mim.

Inimá de Paula


Agora é raro. Por exemplo, gosto dos corpos suados e da linguagem popular e cubana de Pedro Juan Gutierrez mas a emoção dos primeiros não existiu ao ler o último livro que por cá se publicou. Mas acredito que é capaz de ser meu, o mal.

Geralmente agora o que é posto à minha disposição parece-me fraca história, servida por uma prosa deslavada ou presunçosa. Muitas vezes penso: estarei a tornar-me preconceituosa? Ou apenas mais velha? Será que daqui por uns anos só sou capaz de ler aforismos ou haikus? Quiçá, até, páginas em branco?

Mesmo a Ferrante. Escreve bem, claro. E a história vai, anda, é boa escrita. Mas se me atrai, página atrás de página, ou se me detenho a degustar a elegância da frase, a criatividade da composição? Não. Parece que falta ali oxigénio. Por isso fiquei-me por dois livros. Pode ser que um dia compre os dois últimos. Mas não agora. Cansei-me daquela densidade à qual me parece faltar algum fulgor.

Estava a passear pela internet e vi, na Revista Bula, uma selecção feita depois dos leitores e colaboradores terem escolhido os melhores inícios de livros brasileiros. As escolhas são o que são e sei lá se são os melhores ou se andam, sequer, por lá perto. É tudo tão subjectivo, Mas gostei de ler. Transcrevo apenas alguns.

Tarsila do Amaral

A Lua Vem da Ásia, Campos de Carvalho


Aos 16 anos matei meu professor de lógica. Invocando a legítima defesa — e qual defesa seria mais legítima? — logrei ser absolvido por cinco votos a dois, e fui morar sob uma ponte do Sena, embora nunca tenha estado em Paris. Deixei crescer a barba em pensamento, comprei um par de óculos para míope, e passava as noites espiando o céu estrelado, um cigarro entre os dedos. Chamava-me então Adilson, mas logo mudei para Heitor, depois Ruy Barbo, depois finalmente Astrogildo, que é como me chamo ainda hoje, quando me chamo.

Tarsila do Amaral

O Jardim do Diabo, Luis Fernando Verissimo


Me chame de Ismael e eu não atenderei. Meu nome é Estevão, ou coisa parecida. Como todos os homens, sou oitenta por cento água salgada, mas já desisti de puxar destas profundezas qualquer grande besta simbólica. Como a própria baleia, vivo de pequenos peixes da superfície, que pouco significam mas alimentam. Você talvez tenha visto alguns dos meus livros nas bancas. Todo homem, depois dos quarenta, abdica das suas fomes, salvo a que o mantém vivo. São aqueles livros mal impressos em papel jornal, com capas coloridas em que uma mulher com grandes peitos de fora está sempre prestes a sofrer uma desgraça.

Tarsila do Amaral
(auto-retrato)

Dom Casmurro, Machado de Assis


Uma noite destas, vindo da cidade para o Engenho Novo, encontrei no trem da Central um rapaz aqui do bairro, que eu conheço de vista e de chapéu. Cumprimentou-me, sentou-se ao pé de mim, falou da Lua e dos ministros, e acabou recitando-me versos. A viagem era curta, e os versos pode ser que não fossem inteiramente maus. Sucedeu, porém, que, como eu estava cansado, fechei os olhos três ou quatro vezes; tanto bastou para que ele interrompesse a leitura e metesse os versos no bolso.

Tarsila do Amaral

O Ventre, Carlos Heitor Cony


Positivamente, meu irmão foi acima de tudo um torturado. Sua tor­tura seria interessante se eu a explorasse com critério — mas jamais me preocupei com problemas do espírito. Belo para mim é um bife com batatas fritas ou um par de coxas macias. Não sou lido tampouco. A única atração que tive por livro limitou-se à ilustração de um tratado de educação sexual que o vigário do Lins fez o pai comprar para nosso espiritual proveito. Só creio naquilo que possa ser atingido pelo meu cuspe. O resto é cristianismo e pobreza de espírito.


Tarsila do Amaral
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Grupo Corpo - Parabelo


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Lá em cima era Antonella Ruggiero interpretando "Kyrie" (Missa Luba)

As imagens não têm nada a ver mas, uma vez que falei bastante de brasileiros, apeteceu-me ter aqui pintores também brasileiros.
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E, por agora, por aqui me fico.

Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma sexta-feira muito feliz.

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segunda-feira, janeiro 04, 2016

Alberto Manguel: o discípulo fala dos tempos em que substituía os olhos de Borges. E fala de Machado de Assis, Roberto Bolaño e Paulo Coelho. E mostra a sua incrível biblioteca!


A leitura de Uma História da Curiosidade, que me tem trazido deleitada, fez-me ter vontade de conhecer o autor, Alberto Manguel. Mostro-vos três dos vídeos que, pela sua curta duração, me parecem adequados a tê-los aqui pois mostram um pouco da sua opinião e da sua relação apaixonada com os livros. Os dois primeiros são falados em espanhol com legendas em português-brasileiro. O terceiro é falado em francês, sem legendagem, mas, na esperança de que haja muitos leitores que o percebam eporque me agrada muito, optei por também o incluir.

1.

Alberto Manguel: O discípulo de Borges


 O escritor e bibliófilo argentino Alberto Manguel fala da sua relação com o Jorge Luis Borges, de quem foi os olhos


   

2.

O escritor e bibliófilo argentino Alberto Manguel analisa a produção literária latino-americana (nos antípodas, Machado de Assis e Paulo Coelho; e, de caminho, desanca Roberto Bolaño)


 

3.

Le Voyageur et la tour - Alberto Manguel | La Grande Librairie




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Como acima referi, tenho já quase pronto um post que contém um texto, um longo texto, sobre 'Que consequências têm as nossas acções?', que transcrevi do livro 'Uma história da curiosidade'. O início do capítulo de onde transcrevi o excerto começa assim: Aprender, como os cães, as regras da lealdade e da obediência é, para Dante, um processo demorado e doloroso. Contudo, já é tarde e já não consigo revê-lo minimamente nem ajeitar uma ou outra imagem que ainda quero confirmar ou decidir-me por uma música. Por isso, fica para amanhã -- ou de manhã, se conseguir madrugar, ou para a hora do almoço.

E, assim sendo, por agora, fico-me por aqui.

Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma bela semana a começar já por esta chuvosa segunda-feira.

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domingo, agosto 31, 2014

'E se os bárbaros vierem desta vez?' e 'A palavra no osso' - Ana Cristina Leonardo no seu melhor no Actual e o Expresso de parabéns por saber valorizá-la. Os leitores agradecem.


Eu sei que, no post abaixo - no qual falei na oposição a sério ao Governo feita este sábado por Marques Mendes na SIC (e agora até me estou a lembrar que o PS e o PCP bem que poderiam aprender com ele em vez de andarem na brincadeira, como andam) - disse que o post seguinte seria sobre o que andei a fazer durante o dia e que ia mostrar fotografias e tudo.

Mas, como também referi, pelo meio ainda ia dar uma espreitadela ao Expresso. E assim fiz. E aqui estou para dizer uma coisa que me faz adiar para amanhã a reportagem fotográfica prometida.









E o que quero dizer é que gostei muito da crónica da Ana Cristina Leonardo 'E se os bárbaros vierem desta vez?'. Muito justamente o seu espaço no suplemento Actual do Expresso chama-se Isto anda tudo ligado pois de liaisons, geralmente pouco inocentes, se constroem os textos de Ana Cristina. 


Desta vez, começa por ir buscar a abertura de 'Este país não é para velhos' para citar Cormac McCarthy e para depois perguntar, ela própria, Como se enfrenta o Mal sem arriscar a alma?

Um pouco mais adiante, Ana Cristina  prossegue: É impossível para quem esteja minimamente atento ao que acontece no mundo, não ter dado conta dos profetas da destruição. Perseguições e limpezas étnicas e religiosas, mortandade desenfreada, violações de mulheres, raptos de jovens e crianças, execuções sumárias, gente enterrada viva, conversão ou morte! Como uma onda gigante que se adivinhou muito ao longe e que vem galgando o mar já próxima das margens. No terreno onde tudo isto germina jorram poços de ouro negro, estende-se uma manta de petróleo. Convém não esquecer. Perante isto há quem olhe atónito a televisão, leia, incrédulo, as notícias, vá sabendo coisas de que preferia continuar ignorante. Há cerca de 70 anos, a Europa despertava do pesadelo nazi levado a cabo em nome da superioridade rácica. Hoje o que se ouve são gritos de 'Allah Akbar'. A burocracia da morte foi substituída pelo tumulto guerreiro mas depois de Auchwitz ninguém terá perdão se desviar o olhar.


Mais uma crónica marcante de Ana Cristina Leonardo. 

Têm sido variadas e todas muito boas as suas crónicas. No outro dia escreveu uma outra cheia de sul, de sol, de cheiro a figos, de sons da infância. Sendo eu neta de algarvios que rumaram a norte mas que conservaram lá as suas raízes, revi-me naquelas palavras. São assim, como ela as descreveu, as recordações que tenho das estadias nas casas das tias e primas que por lá ficaram. Lembro-me das casas caiadas rodeadas de campo, da quietude noctívaga das casas, do latido abafado dos cães, da sombra de um gato a equilibrar-se num muro, da robustez das figueiras, do leite viscoso dos figos, do aroma inebriante das alfarrobas na zona de Loulé, lembro-me de uma casa grande e fresca numa rua de Faro, do olhar reptiliano das gaivotas e do gingado nervoso das andorinhas-do-mar, de faróis, do horizonte iluminado por traineiras, da rouquidão dos motores que passam ao largo apontando à barra, lembro-me de outras casas, de outras vozes, de outros calores. Estava lá tudo, na bela crónica de Ana Cristina.

Esta semana assina também uma excelente recensão: deu-lhe o título A palavra no osso e fala do livro Ouro e Cinza de Paulo Varela Gomes. Ultimamente têm sido bissextas as suas incursões nesta área e é pena. Esta de hoje não apenas está muito bem escrita como dá uma visão muito clara do que deve ser o livro e, lendo a sua opinião, dá vontade ir conhecê-lo. Quando regressar à cidade, irei certamente comprá-lo.


Transcrevo parte do seu texto: O rigor da informação presente na frase serve-nos de trampolim: (...), não existe na escrita de Paulo Varela Gomes uma palavra a mais nem uma palavra a menos. Apenas a palavra (eticamente) justa. Ao rigor da sintaxe alia-se o rigor semântico. Em contracorrente, o edifício de palavras construído por P.V.G. não corre o risco de se desmoronar no vazio. Aqui não há crochet, há carpintaria. Não há frases em bicos de pé, há proposições com sentido. 


Os seus textos e os de Pedro Mexia, quer nas crónicas quer nas breves (e irregulares no caso dela) recensões críticas são das razões que me fazem ter vontade de ler o Expresso, fidelizam-me como cliente do jornal em papel.

Depois de no outro dia ter criticado a falta de critério na selecção de alguns colaboradores para o Expresso Diário não posso agora deixar de felicitar o Expresso pela valorização de Ana Cristina Leonardo como crítica literária. E, se me é permitido, aqui deixo uma sugestão:  bem que a sua crónica semanal Isto anda tudo ligado poderia ter mais espaço e estar em lugar de maior destaque.



Critico quando acho que devo criticar, louvo quando acho que devo louvar. E isto aplica-se a tudo e a todos.


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A música lá em cima é Big My Secret de Michael Nyman e faz parte da banda sonora de The Piano. Acho que liga bem com a Ana Cristina Leonardo.

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E por tudo e por todos, permitam que vos diga que, caso queiram saber o que achei da charla semanal de Marques Mendes na SIC e do que acho dos socialistas e comunistas que nem a brincar sabem fazer oposição, deverão descer até ao post já a seguir.


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Desejo-vos, meus Caros Leitores um belo dia de domingo.



domingo, março 23, 2014

As crónicas semanais de José Tolentino Mendonça, Pedro Mexia, Ana Cristina Leonardo e outros que me mantêm presa ao Expresso. Com eles apetece primaverar. As suas palavras não se limitam a alegrar canteiros bem ordenados, a sua floração inédita dá-nos o endereço da torrente. Que coisa são as nuvens, fraco consolo e isto anda tudo ligado. Ah pois é.


Depois de, no post abaixo, vos mostrar uma mãe aflita, a patinar em seco, tentando explicar à filha o que significa 'virgem' e de, no seguinte, ter entrado na Maison Chanel para ver o enigmático Lagerfeld a preparar o desfile primavera/verão 2014, aqui, agora, parto para outra.

Poderia fazer a vontade aos leitores que entram no Um Jeito Manso escrevendo nos motores de busca frases como: 'revelada orientação sexual de deputados e ministros' ou 'artigo sobre a homossexualidade dos que votaram contra a co-adopção'. 


Desde há vários dias que estas questões me aparecem, algumas referindo os nomes em concreto. Claro que, logo no dia seguinte ao ex-dirigente do PSD Carlos Reis ter protestado contra a votação do PSD e CDS, confrontando alguns políticos com a sua coerência pessoal dado que, segundo ele, são homossexuais, recebi, de alguns leitores, o texto em questão com os nomes bem explícitos. Não publiquei nada na altura tal como não me pronuncio agora


Os nomes que lá aparecem são nomes de quem sobejamente se afirma a homossexualidade mas, assumi-lo publicamente, é coisa que é com cada um e não serei eu que aqui me farei eco disso. Aliás se eu sou favorável à co-adopção isso tem a ver com a minha consciência e não com a minha orientação sexual e, portanto, não é disso que vou aqui falar hoje.

Também não me pronunciarei sobre uma questão que ultimamente me aparece muito nas estatísticas do blogue: a magreza, que prenuncia doença, de uma certa figura pública. É doença, sim, mas não me parece que seja tema para aqui falar. Só se for para dizer que admiro a coragem dos que, apesar de ser notória a magreza e de saberem que poderão passar a ser olhados com uma certa comiseração, continuam a exercer as suas funções, tomando, inclusivamente, posição em assuntos controversos e, por isso, sujeitando-se a críticas e censuras incómodas.

Gostaria, pelo contrário, de falar de alguns artigos sobre a dívida portuguesa: é pagável? é para esquecer? fazer o quê? varrer o assunto para baixo da carpete? ... what...? - mas agora não me apetece.


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Estou in heaven, na maior paz. Isto está a maravilha de sempre, a natureza delicada e pujante (se é que possível conciliar conceitos aparentemente contraditórios) que sempre me surpreende na primavera. E, quando estou assim, mergulhada em quietude e beleza, não me apetece nem um bocadinho falar em dívida descontrolada ou em estúpidos que não sabem lidar com situações complexas.

Além do mais, é quase uma da manhã, estou perdida de sono e estou a fazer tempo para o Downton Abbey que nunca mais começa. Ainda hei-de perceber a anormalidade das cabeças dos responsáveis pela programação das televisões que enchem os horários mais acessíveis com porcaria e mais porcaria e deixam as coisas boas para horas absolutamente impróprias. A estupidez instalou-se em todo o lado, senhores.

Por isso, se me permitem, em vez de falar de coisas chatas, vou antes primaverar.


Uma vez mais vou buscar as luminosas palavras do Pde. José Tolentino Mendonça.

As suas crónicas semanais quase justificariam o Expresso e fazem com que não me sinta burra de todo por comprar um jornal que aloja opinadores que atentam contra a inteligência de quem os lê como é o caso de um tal João Vieira Pereira de quem nem consigo pronunciar-me, um Henrique Raposo que escreve como um rapazola armado em esperto, um Duque cuja opinião varia consoante o sentido do vento, um Daniel Bessa cujos textos têm a consistência da enxúndia, um Henrique Monteiro que fala do que não sabe com uma soberba que induz em erro os incautos, um Ricardo Costa que disserta sobre evidências ou que se arma em zandinga, ou um José Mário Silva que não tem gosto literário apurado ou que, ao fazer uma crítica, revela coisas que o autor certamente gostaria de reservar para o momento certo (como é o caso da absurda recensão que faz do último livro de Dulce Maria Cardoso, o 'Tudo são histórias de amor').


No entanto, para ser justa, terei que dizer que não é só José Tolentino Mendonça que me cativa dentro da casa que é o Expresso. Pedro Mexia, sempre: é um príncipe na forma como escreve. Clara Ferreira Alves é outra âncora. Miguel Sousa Tavares também. João Garcia, Nicolau Santos, Fernando Madrinha são sempre portos seguros onde não se pode deixar de ir. Desde há pouco tempo, o Expresso tem uma das mais lúcidas vozes do jornalismo português: Pedro Santos Guerreiro. Um prazer ler o que escreve e provavelmente a ele voltarei amanhã. 


E não deixo também de ler as crónicas de Ana Cristina Leonardo, 'Isto anda tudo ligado'. Anda triste com isto tudo, ela, e compreendo-a, também eu me sinto muitas vezes cercada por mediocridade; além disso, do que percebo, as coisas não estão fáceis para ela. Por vezes, ao ler o que escreve, fico preocupada por ela. Depois de ter tido um lugar de destaque no Expresso, a sua presença tem vindo a reduzir-se. Não percebo porque não aparece mais na crítica literária. Nem sempre concordei com ela mas, apesar de uma ou outra divergência, reconheço que é culta, inteligente, que tem uma forma irreverente de estruturar as ideias. Por isso, lê-la não nos deixa indiferentes. O Expresso deveria reconsiderar alguns critérios: há nomes que atraem leitores e Ana Cristina Leonardo é seguramente um deles.


Quando penso em negócios a que eu gostaria de deitar mão, um deles é o de ter uma revista literária. A LER caminha cada vez mais para ser carta fora do baralho. O mercado de língua portuguesa tem espaço para uma nova revista. Tenho bem claro na minha cabeça o que seria uma revista boa e rentável e tenho também bem claro quem é que eu contrataria. Não contrataria nem o kitsch Valtinho, nem o inconsistente José Mário Silva, nem o Casanova, esse chato pedante. Mas contratava os acima referidos da área da escrita literária e talvez também o António Guerreiro. Gostava de quando ele escrevia no Expresso. E mais uns quantos, alguns bem improváveis (que aqui não divulgo porque o segredo é a alma do negócio e sei lá se um dia não me abalanço mesmo a isso).



Mas adiante, que já se faz tarde e eu ainda para aqui na conversa.

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Green Kalahari, se faz favor.

Que Abdullah Ibrahim solte as suas mãos sobre o piano e deixe que a música nos envolva



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Esquecemo-nos que as estações se conjugam como um verbo e que, por isso, a pimavera não é apenas um fenómeno exterior, um substantivo que descreve anualmente a natureza à nossa volta, mas é uma realidade que posso dizer de mim: 'eu primavero'. 



Desde o fio de erva à vegetação mais grandiosa, tudo passa por um incrível processo de rejuvenescimento. 

A vida parece uma rebentação, um contágio imparável, um sobressalto. 

Quando, de repente, tínhamos tudo para nos pensarmos completos, gastos ou acabados, descobrimos que a vida é o aberto. A verdadeira sabedoria, aquela que nos faz tocar o coração da vida, é a sabedoria do inicial, do verde tenro, do primaveril, do incessante. 

Desde que nascemos estamos não só prontos para morrer, mas estamos sobretudo preparados para nascer, as vezes que forem precisas.

Primaverar é persistir numa atitude de hospitalidade em relação à vida. Ao lado do previsto, irrompe o imprevisível que precisamos aprender a acolher. 


Misturado com aquilo que escolhemos, chega-nos o que não escolhemos e que temos, na mesma, de viver, transformando-o em oportunidade e desafio para a confiança.


A primavera não tem uma linha demarcada: transborda sempre e temos de preparar-nos para isso. Ela não fica a alegrar apenas os canteiros muito bem ordenados. A sua floração inédita dá-nos o endereço da torrente, para lá da vida que pensamos domesticada pelos nossos cálculos.


Pobres de nós: achamos que conseguimos dominar completamente o mundo com os nossos cinco sentidos! Precisaríamos, na verdade, de cinco mil para perceber um pequeno quinhão do que somos.

Há quanto tempo não caminhamos assobiando, ou seguimos com um fio de erva nos lábios, sem mais, sem pressas nem pretensões, acreditando simplesmente no valor de ser e que, por isso, nos dão a possibilidade de estar, de vaguear, de medir o momento apenas com o peso e a leveza da própria marcha?



Quando vamos de um lado para o outro estamos, normalmente, presos aos motivos que justificam a deslocação. 

Mas - temos que reconhecê-lo - uma viagem assim é demasiado curta. Há uma outra viagem que só começa quando as perguntas sobre o que fazemos ali deixam de interessar. 

Estamos, ponto final. Viemos.







Não é o saber ou a utilidade que a definem, mas o próprio ser, a expressão profunda de si. 



A sabedoria dos que primaveram não consiste, assim, num reconhecimento prévio, mas em alguma coisa que se descobre na habitação do próprio caminho.






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O texto acima, em itálico, é formado por excertos da crónica 'PRIMAVERAR' de José Tolentino Mendonça da Revista do Expresso deste sábado.


As fotografias foram feitas este sábado in heaven onde a primavera rebenta fora de canteiros, livre, iluminada, feliz como os inocentes pássaros e coelhos que são os verdadeiros donos deste espaço.


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Recordo: por aí abaixo há vídeos bons de ver.

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Desejo-vos, meus Caros Leitores, um belo domingo. 
E primaverem, meus Caros, primaverem. 


segunda-feira, janeiro 13, 2014

'Um discurso sobre a beleza'. A conversa entre dois 'beaux esprits': Pedro Mexia entrevista James Wood. Ou a crítica literária como 'uma história sobre histórias, um juízo sobre a beleza do objecto analisado'.




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Qual o objectivo da crítica literária num jornal ou numa revista? Servir de montra ao criticado ou ao crítico? 

Mostrar que, quem escreve, ou seja, o crítico, sabe muito sobre literatura, sabe invocar referências, sabe estabelecer comparações ou sabe detectar estilos mas sabe detectá-los de forma a que pareça uma descoberta reservada a espíritos iluminados?

Ou, antes, o crítico deve deixar-se envolver pelo ambiente da obra em apreço e, ao escrever, deve deixar que os leitores intuam aquilo de que se está a falar, e, para tanto, deve transmitir uma opinião pessoal, deve tomar partido?

E o que esperam os leitores de uma crítica literária?

Sei que não há resposta única: claro que isso depende de quem lê. Se estivermos a falar de colegas de profissão, aí talvez haja algum ciúme ou alguma exigência pouco indulgente. Se estivermos a falar do autor da obra analisada talvez haja orgulho ou desapontamento.

Mas, se estivermos a falar do grupo mais expressivo, o dos potenciais leitores da obra, estou certa que preferem saber o que o crítico, enquanto pessoa, pensa sobre o que leu, se gosta ou não e porquê. Coisa simples.

Não serei a melhor pessoa para falar sobre isto. Sou leiga, sou simples amante de livros. E não tenho pretensões a parecer o que não sou, limito-me a dizer o que penso de forma franca. Além disso, confesso que, quando tenho fraca impressão sobre uma pessoa, me estou nas tintas para a sua opinião.

Ou seja, se por algum motivo, em relação a algum crítico já o apanhei a dar passos em falso ou a ter atitudes parvas ou a vender o que considero ser banha da cobra, então, a partir daí, santa paciência, não dou qualquer crédito ao que escreve.

Acontece-me isso em relação a alguns dos pretensos críticos literários da nossa praça.

De resto, há uma coisa. Sei bem que não pode um leitor de críticas num jornal, pedir muito - tão diminuto o espaço que lhes é reservado que, em abono da verdade, não se pode chamar àquilo crítica. São meras breves recensões, assim a modos que uma breve recomendação de compra ou, por vezes, o seu desaconselhamento.

Não sei o que torna uma pessoa apta a ser contratada por um jornal como crítico literário mas deve haver algum critério. Contudo, esse critério não é para mim muito evidente tal a diversidade de níveis que me é dado aperceber.

Como já aqui o referi algumas vezes, uma das pessoas que leio com mais atenção e em cujas opiniões mais me revejo é Pedro Mexia. Salvo uma ou duas excepções, coincido na apreciação que ele faz das obras mas, mais do que isso, gosto da forma como ele fala dos livros. Não precisando de recorrer ao artifício exaustivo da transcrição, ele consegue, na perfeição, levar o leitor para dentro do ambiente da obra.

Mas Pedro Mexia tem mostrado ser também um excelente entrevistador. 

De todas as entrevistas que já lhe li, quero salientar a que fez no penúltimo Actual do Expresso a que, muito acertadamente, dá o título UM DISCURSO SOBRE A BELEZA


O entrevistado é certamente alguém que Pedro Mexia admira dado que é um dos grandes críticos literários da actualidade. Estou a falar de James Wood de quem Pedro Mexia diz: James Wood é talvez o crítico literário mais influente da última década, um dos mais amados e detestados. (...) Em conversa, não pode estar mais distante da pose de crítico feroz e arrogante: é afável, acessível e até confessional.


Na abertura da entrevista, Pedro Mexia dá o tom: A crítica literária é uma história sobre histórias, um juízo sobre a beleza do objecto analisado. James Wood diz nadar na "mesma água" dos livros que critica e gosta daqueles que, nas palavras de Henry James, lidam com "um presente palpável e íntimo".

A entrevista é toda ela uma peça de antologia e figurará certamente num próximo volume de entrevistas que Pedro Mexia se resolva a publicar.

Por isso, tenho alguma dificuldade em escolher excertos mas, porque quero ilustrar aquilo de que estou a falar, transcrevo um pouco ao acaso:


Parece muito ligado ao mundo real, digamos assim, aos textos que têm a ver com o mundo real e não com os próprios textos.

É isso mesmo. Sempre me pareceu natural ligar a ficção, que está tão cheia de vida, ao mundo real. Sei que há um certo tipo de teóricos e de filósofos a quem a palavra 'vida' ou 'real' provoca todo o tipo de questões filosóficas. Mas temos de usar palavras como essas, porque a maioria das pessoas entende o que se quer dizer quando se diz que determinado livro tem alguma coisa a dizer-nos sobre a forma como vivemos.

Há várias palavras que usa e que toda a gente usa para descrever um livro. Quando fala de um 'grande' escritor, ou de uma passagem 'muito bonita', usa a mesma linguagem que os leitores usam.

Exactamente, quero usar a mesma linguagem que os leitores usam. E também a que os escritores usam. Parece-me que a grande separação não é bem entre teoria e literatura, é entre uma aproximação erudita à literatura, que se aprende nas universidades, onde normalmente não se é encorajado a pensar em quão bonita uma coisa é, mas simplesmente a olhar para ela de forma neutra, de um ponto de vista histórico ou técnico. A maior separação é entre essa forma de ler e a forma como a maioria das pessoas lê. As pessoas não lêem de uma forma neutra, lêem com muito interesse. Para escritores e leitores, a primeira pergunta é sobre qualidade, sobre avaliação. Mas julgo que nas universidades essa questão é colocado de parte porque não parece relevante. Entra-se na aula e tem de se falar com os alunos da forma, da estrutura ou da linguagem, mas não se julga. Muitos de nós julgam, e eu gosto de manter essa qualidade crítica viva.


Nem mais - digo eu.

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Estava a apetecer-me colocar aqui um vídeo em que se visse James Wood a falar mas depois pensei que, não estando legendado, alguns Leitores poderiam não perceber e, portanto, escolhi antes um em que James Wood se mostra de forma informal e bem disposta. Os risos dos filhos são uma delícia.




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E agora, para o James Wood não se ficar a rir por achar que é o único a ter direito a vídeo, vou também à procura de um equivalente com o Pedro Mexia. A ver se o apanho por aí a tocar cavaquinho ou a cantar karaoke ou coisa do género.

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Hélas. O Pedro Mexia não se dá a esses desfrutes e, portanto, aqui está ele a falar do livro da sua vida, um livro de que eu, por acaso, também gosto muito. 




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A música lá em cima era June Tabor & Oysterband interpretando Love Will Tear Us Apart e escolhi-a apenas porque gosto muito de June Tabor e achei que era uma boa companhia para os dois 'artistas' convidados de hoje.


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Muito gostaria ainda de vos convidar a irem até ao meu Ginjal e Lisboa onde hoje tenho Cora Coralina e as suas extraordinárias palavras. Vão gostar, vão ver.


E, por agora, é isto. 
Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma bela semana a começar já por esta semana.