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domingo, julho 08, 2018

A banalidade do mal


Já o conhecia há bastante tempo. Superficialmente. 
Homem de família. Simpático, bem disposto, divertido. Popular. Anedota fácil. 
Recentemente disseram-me dele, recomendando-o: relacional, bom trato, um tipo porreiro. E despachado, daqueles que fazem acontecer.

Sim. De facto. Não digo que não, pelo menos na aparência. Demais, aquilo do 'porreiro' não sei bem o que é, muita coisa pode lá caber dentro. E, no entanto... 

Penso que por ontem ter falado dele:
-- um déspota populista, amigo dos desvalidos, frequentemente divertido, aparentemente boa onda, que escolheu pessoalmente a quem distribuir prendas e prebendas deixando toda a gente agradavelmente surpreendida e supinamente agradecida, que se faz acompanhar ao almoço e ao café de subordinados que se sentem orgulhosíssimos por estarem a ser promovidos a acólitos, a quem vejo tomar toda a espécie de decisões incompreensíveis, contraproducentes, ora num sentido, ora em sentido contrário, a quem ouço diariamente gritos, dislates e impropérios, que interpela os outros aos gritos, que grita ainda mais alto se logo não acorrem, que, no acusa e destrata e, acto contínuo, ri e conta anedotas para, se tal lhe ocorrer, de seguida expulsar o interlocutor da sala como se de um objecto descartável se tratasse -- 
recebi um mail de um Leitor, a quem muito agradeço, com um vídeo.

O mail tem como assunto o título do vídeo que corresponde ao nome de um livro. A banalidade do mal de Hannah Arendt. Muito agradeço ao P. por mo ter enviado -- e é um facto: nada pior do que a banalização do mal. O mal praticado por motivo nenhum. O mal desalheado da consciência. O mal sem remorso, sem arrependimento. E, igualmente mau, a aceitação, por parte de alguns, desse mal. Como se o mal fosse mero acidente sem relevância, como se quem o praticasse não fosse mau e responsável pelos mal que pratica. E, ainda por cima, como se fosse bom merecer a atenção de quem pratica o mal.

Salvo as devidas distâncias e proporções, não posso deixar de estabelecer alguma relação.

No outro dia alguém me dizia, com algum espanto, depois de eu relatar alguns dos mil sucedidos: quando falo com ele, não me relata nada disso e, de resto, mostra sempre muita consideração por si.

Respondi. É um facto: comigo mostra sempre consideração. Mesmo quando faz coisas que me desagradam profundamente, mostra estar a ter consideração. Genuinamente penso que não se apercebe do mal que faz. Pelo contrário, se percebe agastamento nos outros, fica agastado como se não percebesse e fica abertamente contrariado. Também já o vi a gozar os outros pelas costas. E usa epitetos achincalhantes para se referir aos outros. Mas também goza pela frente, humilhando as pessoas. E já o vi lançar insinuações maldosas, desprovidas de sentido. E ri-se, satisfeito, com o que diz e faz. Acredito que não tem consciência do mal que faz. Para ele é normal. É banal.

Tenho constatado de perto: há pessoas que são perigosas. Podem destroçar a vida dos mais fracos como se nada de mal fizessem. Repito: acredito que nem dêem por isso. Tal como, quando ando, não reparo se pisar uma fiada de formigas. Não reparo, não fico arrependida -- até porque, como nem dei por nada, farei a mesma coisa mil vezes mais. É a mesma coisa. 



As fotografias mostram Adolf Eichmann (1906 - 1962), um dos principais organizadores do holocausto e de quem Hannah Arendt fala

terça-feira, março 29, 2016

Hannah Arendt e o amor
- não é por nada mas em alguns aspectos até parece que, nisto do affair com o Heidegger, se juntou a fome com a vontade de comer


Estava eu folheando a revista Bula e dou com umas cenas da Hannah Arendt armada em poeta, uma coisa que, a meu ver, é muito chocha, daquelas experiências a que algumas pessoas se dedicam quando lhes dá para o lirismo -- passarinhos pipilantes, gotas de chuva, pingo, pingo, amores incompreendidos, ventos que parecem lamentos e ameaçadoras nuvens cinzentas. E, quando já eu estava a franzir o sobrolho, dou com uma dissertação que ainda me deixou mais desconfiada: um texto todo prosa, com um título todo a armar-se ao poderoso mas, ó senhores, uma basbaquice de dar dó.

Não é que ela, como filósofa, não tenha obra capaz. Tem, e as suas palavras mantêm-se e manter-se-ão válidas forever. Não que eu seja entendida, claro, até porque é sabido que eu é mais cozinhados (podia dizer que eu é mais bolos mas, não, não gosto de fazer bolos porque requerem que se siga a receita e eu sou demasiado anarca). Mas, com a ligeireza que me caracteriza, posso dar-me ao luxo de mandar umas bocas a propósito de alguns temas mais exquisites. Por isso, com a devida licença dos fundamentalistas, deixem que o diga: uma pessoa pode ser boa na sua área mas sê-lo apenas num determinado ramo. Ora o ramo da Arendt, cá para mim, devia ser mais o mal, não o amor -- pelo menos a julgar pela conversa que abaixo transcrevo.

Hannah Arendt  e Martin Heidegger

E digo isto porque acho que ela não devia perceber bem o que era isso do amor -- e não percebia que não percebia -- senão não falava como o descreveu, como se isto do amor fosse matéria sujeita a dissecações e a escalpes e como se alguma vez uma criança fosse um 'entre' duas pessoas que se amam e mais não sei o que ela para ali diz, senhores...

A confusão que vai na cabeça das pessoas que têm o vício de dissertar sobre tudo e sobre nada mesmo do que não conhecem é uma coisa que aflige. Pôr-se uma pessoa a cortar o amor às postas é assim como pôr-se um burocrata da gramática a retalhar as estrofes do Lusíadas. 
Quando se encontrava o sujeito e se conseguia acasalá-lo com o predicado e com todas as outras coisas que, quando aprendi, se chamavam complementos directos e indirectos e que agora mudaram de nome, já uma pessoa se tinha alheado do sentido da coisa.
Senhores, nada pior que gente chata que tinge de mau feitio tudo aquilo em que toca, que isto de contar orações nos Lusíadas ou filosofar a propósito das crianças expelidas só pode ser mau feitio. Ora vejam bem o que aquela alma de Deus foi capaz de dizer sobre o amor (que é uma coisa tão simples, tão sem gramáticas, tabuadas ou receitas).

O amor é uma poderosa força antipolítica


“O amor, em virtude de sua paixão, destrói o ‘entre’, esse espaço que nos relaciona com outros e nos separa deles. Enquanto dura seu encanto, o único ‘entre’ que pode inserir-se no meio de dois amantes é a criança, o próprio produto do amor. A criança, esse ‘entre’ com que os amantes agora estão relacionados e mantêm em comum, é representativa do mundo onde ela também os separa; é uma indicação de que eles inserirão um novo mundo no mundo existente. Por meio da criança, é como se os amantes retornassem ao mundo do qual seu amor os expeliu. Mas essa nova mundanidade, resultado e único final possíveis de um caso de amor, é, num certo sentido, o final de um amor, que deve superar novamente os padrões ou ser transformado em outro modo de estar juntos. O amor por sua natureza não é mundano, e é por isso — não por raridade — que é não apenas apolítico, mas antipolítico, talvez a mais poderosa de todas as forças antipolíticas humanas.”

(Trecho de “A Con­dição Hu­mana”, de Hannah Arendt)

...

E já agora, para que não pensem que tenho alguma coisa contra a senhora -- claro que não tenho -- vejam bem um dos seus poemas (supostamente feito a pensar no seu amor, o Heidegger, aquele chato que, no meio de algumas de jeito, se se distraía enchia páginas a falar da coisidade das coisas e de outras coisidades do género)

Por que você dá sua mão
Envergonhado, como se fosse um segredo?
Você é de uma terra tão distante
Que não conhece o nosso vinho?

...


De qualquer forma, não sou fechada à erudição pelo que se houver aí algum Leitor dado às ciências ocultas e que consiga descortinar siso e profundidade, quiçá até profundidade de campo, no primeiro texto ou sentido estético no pequeno poema, pois é só explicar-me, mas explicar devagarinho, que eu, com a minha abertura de espírito, cá estarei para tentar alcançar.

....

Já agora, porque acima referi aquilo de ela ser expert no mal (e isto de dizer que ela é uma expert já sou eu a querer portar-me bem; podia, em vez disso, falar em skills -- e, lá por estar com este linguajar de consultora de meia tigela, que não se pense que há menos respeito; isto é só mesmo uma maneira de sacudir a poeira), uma cena do filme homónimo dirigido por Margarethe von Trotta:

Hannah Arendt  (Banalidade do Mal)



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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma bela quarta-feira (corrijo, depois de ver o comentário abaixo) terça-feira!

E divirtam-se, ok?