Mostrar mensagens com a etiqueta Richard Avedon. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Richard Avedon. Mostrar todas as mensagens

domingo, março 08, 2020

Eros em visita




Estendeu na terra atapetada de erva a toalha de pano que comprou aos vendedores ambulantes em Lagos e deitou-se ao sol. Quando ele chegou perto dela, deu uma gargalhada e exclamou: 'Mas o que é isto? Passaste-te?'. Ela soergueu-se sobre um cotovelo, colocou a mão em concha sobre os olhos e perguntou: 'Porquê?'. Enquanto falava, segurava as folhas de couve. Riu também. Depois explicou: 'O sol está forte. Não tinha protector solar. Fui ver o que poderia usar e lembrei-me disto'.

Deitou-se de novo e ajeitou as duas folhas. Ele riu. Cada folha cobria um seio mas a meio de cada folha havia um orifício através do qual saía o mamilo. 'Um curioso modelo. Qual a ideia?', ironizou ele. Ela, maliciosa, explicou: 'Para te facilitar a vida.' Ele ajoelhou-se e, tendo a vida facilitada, fez o que tinha a fazer.


Num outro dia, quando chegou a casa, ela estava na sala a ler. A sala quase às escuras. Um foco de luz incidia no livro. Admirou-se: 'Vieste mais cedo.' Ela esclareceu: 'Estava doida para ler este livro'. Estava coberta por uma mantinha muito fina, branca, que parecia renda. Ele reparou nos seus ombros despidos: 'Estás nua?'. Ela respondeu: 'Não. Apenas despi o vestido para não o amarrotar. Liguei o ar condicionado para não ter frio'. Ele sorriu. Ela disse: 'Mas completei com um adereço.'. Ele olhou-a e percebeu que o sorriso dela era daquela malícia que tão bem conhecia: 'Ah sim? Ora deixa cá ver...'.

Destapou-a.

'Ah... ' Ela percebeu que ele tinha gostado do que tinha visto mas, sabendo-o distraído, não ficou com a certeza que ele tinha visto tudo. 'Viste a minha flor?'. Ele não percebeu, admitiu que fosse uma metáfora: 'A tua flor? '. Em voz baixa, ela esclareceu: 'Um malmequer. Para ver se tens sorte.  Desflora-me. Devagarinho. Mal-me-que, bem-me-quer. Anda, vem ver qual o veredicto. Aproxima-te.'


No dia oito, quando estavam a almoçar, ela descalçou o sapato e com a ponta do pé acariciou-lhe a perna por debaixo das calças. Ele começou por se admirar mas depois sorriu. Ela voltou a calçar o sapato e pediu que ele lhe desse o cheese naan à boca. Ele disse: 'Deixa-te de coisas'. Ela insistiu: É Dia da Mulher. Sê simpático'. Ele sorriu: 'O que é que ganho com isso?. Ela olhou-o nos olhos. 'Nem queiras saber'. Ele quis saber: 'Diz lá'. Ela disse: 'Estou a pensar numa coisa. Mas é surpresa.'.

Pegou no pé do copo, balouçou o vinho enquanto aspirava o seu odor, depois bebeu um pouco, devagar, sentindo o sabor. Disse: 'Frutado, umas notas de romã, umas notas de madeira. Bom.'

Depois, voltou a olhá-lo nos olhos: 'Vá, agora o cheese naan, bebé'. Ele separou um pequeno triângulo e deu-lho à boca. Ela saboreou o queijo derretido, quente, e percebia-se que estava agradecida. Então ele perguntou: 'E agora...?'. Ela sorriu mas muito ao de leve: 'Agora ganhaste o direito à sobremesa, baby...'


______________________________________________________________

A primeira e a última fotografias são de Helmut Newton, a segunda é de Marino Parisotto e a última de Richard Avedon. Segundo Nina Simone Wild is the wind.

________________________________________________________________________

quinta-feira, março 15, 2018

Recrutas do destino




Da varanda vê-se toda a cidade, as suas luzes no preto vínico da noite, doces linhas curvas de cúpulas e colinas no seio da obscuridade. O small talk, nas mesas postas a rigor para um jantar de grande solenidade, perde-se por entre o barulho dos copos e dos talheres, flui num murmúrio indistinto; as palavras e as vozes são intercambiáveis, de todos e de ninguém, histórias que se passaram com quem está sentado ao lado, mas que poderiam perfeitamente ter acontecido ao conviva da frente, sussurro que se desvanece como um agradável e indiferente buliço.Os jantares de um certo tom são uma representação sagrada, Mistério medieval que põe em cena a anónima insignificância de toda a gente. Qualquer pessoa poderia estar no lugar de uma outra ou ser outra, por trás da máscara do papel social o rosto marcado pelos anos é mais ou menos o mesmo; diante de um cocktail homens e mulheres são todos iguais tal como diante do amor e da morte, recrutas do destino dispostos em fila nos seus uniformes.

 

......................

Excerto de Instântaneos de Claudio Magris
Arioso de Bach
Fotografias respectivamente de Helmut Newton e de Richard Avedon

......................................................

quinta-feira, setembro 14, 2017

Uma toca música com colheres e outra sinos com os pés.
(Se, com coisas destas, eu ia perder tempo com os tais das campanhas negras que aparecem sempre que há eleições? Ia, ia... )



Pois muito bem, sim senhor. 
Sim senhor e sim senhora que aqui somos todos pela igualdade de géneros.
Igualdade ou identidade? A esta hora já não vou lá pelo sentido, é mesmo só na base da oralidade. E agora não sei. Mesmo. Acaba em 'dade' mas não sei se devia dizer igualdade ou identidade. Também não interessa. Que o que interessa é que. 
As coisas estão animadas lá para as minhas bandas. Quero dizer, numa das minhas bandas. Que, na verdade, num dos meus poisos, tudo meio paradão, em compasso de espera. Estamos naquele limbo que antecede os momentos decisivos de vai ou racha e, se for, tudo muda e, se não for, tudo terá que mudar mas no sentido oposto. Portanto, aquele silêncio pesado que antecede as tempestades. No outro poiso, uma guerra. Um dizia-me: 'A ferro e fogo'. Outra dizia: 'Isto assim não se aguenta muito tempo'. Outra desesperava: 'Mas por quanto tempo aquele senhor ali vai continuar a fazer das dele?'. E eu: 'Calma. É peciso inteligência. Tudo menos precipitação'.


Porque tenho dois poisos, duas ocupações. Ontem, ia a sair a pé da garagem, um colega, no carro, a entrar. Abriu o vidro, cumprimentou: 'Ora viva quem agora tem dois ordenados!' Informei-o: 'Pois queira saber que é a primeira pessoa que se lembrou disso. Todos os outros acham que posso trabalhar a dobrar recebendo apenas um único ordenado'. Riu-se e provocou. Mas a provocação dele não posso eu escrevê-la aqui. Desiludi-o: 'Pois saiba que nem isso'.

Acho que tenho que falar com a santa padroeira do sindicato dos enfermeiros para ver se marco aí uma greve a reivindicar uma carreira e mais uns quantos leros para ver se abano a credibilidade da geringonça, que, francamente, só com a geringonça é que uma pouca-vergonha destas poderia acontecer. Se fosse noutra era, arregimentava-me no sindicato dos maquinistas. Agora é no dos enfermeiros.

Mas isto para dizer que se eu fosse esquizofrénica a coisa talvez fluisse ainda melhor. Duas ocupações, preocupações antagónicas, ritmos e equipas diferentes. Mas, enfim, não me queixo. Não corre mal. Não há monotonia.


A política é que anda monótona. Para o peditório das campanhas negras eu não dou mais, não. Os gentinhos escolados da jota, acabadinhos de receber lições de sumidades tais que nem a galinha rangélica ou a múmia cavaca, são useiros e vezeiros em perfis falsos, denúncias anónimas e outras babaquices e, consoante quem se apresenta a votos, assim eles escolhem os alvos. Agora é o Medina. Mas acho que a última coisa a fazer é dar palco a esses trampolineiros. Portanto, adiante que se faz tarde.

E só me apetece é falar de perfumes, fragrâncias, aldeídos, jasmim, bergamota. No outro dia, o H. falava-me no musgo de cedro, raríssimo. Coisas assim. Disso eu gosto. Ou músicas. Musiquinhas boas. Balanceamentos, mão dadas, conversinhas soltas e enleantes.

(E, com isto, adormeci. Mas adormeci para valer. Que coisa, isto.)


E, se, à partida, tinha alguma em mente, à chegada é que não tenho de certezinha absoluta. Só sei é que, há pouco, quando algum saudável propósito me animava, vi dois vídeos que reservei para sobre eles construir uma prosa. Agora que a mente abandonou a corpo, indo dormir e deixando-o a escrever sozinho, para aqui estão, despropositados.


Angels in heaven - Chris Rodrigues e a Spoon Lady



A complexa dança do tocadores de sinos do Alasca


__________________________

E amanhã logo mostro a Juju. Era para ser hoje mas distraí-me e agora acho que aqui já não cabe. Mas agradeço à querida MP e ao simpático P. a sua descoberta. 

As fotografias que plantei ali em cima são de Richard Avedon.

E o melhor é descerem até ao post abaixo em que se fala de 'palavras que fazem mal'.  Ao menos é capaz de ter uma linha de rumo já que este me quer cá a mim parecer que não tem.

_________________________

sexta-feira, agosto 16, 2013

'Subitamente, no mês de Agosto', com Richard Avedon, Mario Testino, Tim Walker, os meus cães fiéis, os meus trendy gatinhos, os meus amores ciumentos --- [Mas sem a Drª Marta Rebelo porque no meu canil e no meu gatil mando eu, eu e só eu. Além disso ela já não é Provedora dos Animais, para que haveria de estar aqui, ora essa? ]

Gosto muito de animais. Muito. Muito. Gatinhos, tanto que eu gosto deles.

Ao fundo do meu jardim tenho um gatil. Felpudos, vaidosos. Pós-modernos. 

Gosto de me deitar no meio deles. Toda nua mas com uma unha de cada cor para fazer pendant com eles. Nada de cores fortes, não, cores suaves, mimosas como os meus doces gatinhos.



Mas também amo cãezinhos. Amo de paixão. Amo. Mas esses não os tenho no jardim, tenho receio, sei lá. Receio que se peguem com os pussy cats, não quero correr o risco. Por isso, o canil é no meu closet. Não há problema, são limpos, tenho-os sempre escovados, tratados, pêlo tratado com amaciador, máscara hidratante. Sentam-se nas bergères e fazem-me companhia. Quando me visto e dispo olham-me apreciadores, invejosos. Tenho que ter algum cuidado, no entanto: já não é uma nem duas vezes que surpreendo um olhar malicioso, uma troca de olhares entre eles, não sei. 


Brinco muito com os meus amiguinhos, tão fiéis, tão brincalhões. Tomo-os nos meus braços e eles entregam-se, generosos, meigos. Há um, todo branco, macio, macio, que me olha nos olhos, que me desafia. Finge-se de paciente, deixa que eu o pegue, que o levante no ar, e nada me diz. Nessas alturas visto-me de branco para ele perceber que quero que ele me aceite como uma sua igual, uma gatinha branca. Ainda hoje o fiz. Mas reparei um olhar de censura nele. Só, depois, quando, preocupada, me vi ao espelho é que percebi: o soutien era preto. Que gaffe!



Mas depois há um outro, nada a ver com os restantes, nada de mignon, é um big guy, negro, impõe respeito. Não tenho preconceitos, vocês sabem, mente aberta. Não tenho que esconder os meus amores, era o que faltava. Sou uma mulher livre, moderna. Adoro animais, adoro, para quê negá-lo? 

Por isso, de vez em quando, tiro-o do canil e vou lanchar com ele. Visto-me de branco para que melhor se acentue o contraste. Eu virginal, ele feroz. Mas é só aparência, ele é um querido, meiguinho que só ele, estico o meu braço sobre a mesa e assim faz ele também, e ali ficamos em silêncio, olhando-nos nos olhos, ele e eu.

Não sei se era do calor ou se quê mas todo o tempo olhava para mim, olhar fixo, de boca aberta.


Mas o meu amor por animais não se extingue nos cãezinhos e nos gatinhos, ora essa, claro que não. Por isso, não tenho apenas um canil e um gatil. Tenho também uma capoeira. A grande sala da minha casa é agora uma capoeira. As paredes amaciadas pela patine são o décor perfeito para as minha belas aves. E para mim.




É com os faisões e pavões que aprendo a arte da sinuosidade, da subtileza. Visto-me com um vestido justo, leve, alvo, complemento-o com plumas, uso-as como asas, ou como uma coroa, e arrulho. Sei que há alguém que costuma ser sensível ao meu canto. Ao meu assobio. E espero. Espero uma resposta, um assobio de volta. Assalta-me, então, uma dúvida e, em silêncio, pergunto-lhe: You know how to whistle, don't you? Como ele não responde, não diz nada, grito-lhe: une os lábios e sopra...! Vá...!

Estou no chão, e agora não sou uma gatinha trendy, nem uma coquette a brincar com os pet dogs, esses fofos. Agora não, agora sou a que chama, a que tem o corpo em chamas.

E então ouço. Um rugido. Não. Dois. Dois rugidos. Solto o meu canto de ave branca e espero. De novo ouço rosnar. Um som cavo, raivoso. O som dos ciúmes em fúria. Não me levanto, não preciso espreitar para saber o que se passa. São eles, os dois animais possantes que disputam a minha atenção. Fofos, tão queridos. Gosto de os saber assim, viris, dentes de fora, olhar cortante.



Aguardo então que resolvam a contenda entre eles. Sei que, daqui a nada, o meu amor me aparecerá, vitorioso, clamando recompensa.



Mas, quando ele aqui entrar, não vai encontrar uma gatinha pós-moderna, uma ave sinuosa, uma cadela pura. 

Vai encontrar-me a mim tal como sou nas noites de estio, uma loba, uma loba que desce da montanha, arfando, que busca o seu amor, uma mulher selvagem, sem regras, sem leis.

Depois se verá. A noite é longa. E quentes e perigosas são as longas noites de verão. 



*

Tiger in the night, Katie Melua




*   ***   *   ***   ***   *   ***   *


Até certo ponto, este post foi inspirado na leitura dos textos intitulados 'Subitamente, no mês de Agosto', no Malomil. Depois desse ponto, tresmalhou-se e não se inspirou em lado nenhum.

As fotografias usadas são de Tim Walker, Richard Avedon e Mario Testino.


*   *   *   *   *   *   *

A seguir a este post, se descerem um pouco mais, terão o que pode ser chamado 'serviço público à moda de o Um Jeito Manso' e que trata da análise do curriculum de Agostinho Branquinho numa tentativa para perceber porque terá ele sido escolhido para aquela Secretaria de Estado. Antecipo já aqui a conclusão: não dá para perceber.

*

E muito gostaria ainda de vos convidar a darem uma esticada até ao meu outro blogue, o Ginjal e Lisboa. Hoje, por lá, as minhas palavras andam caídas, no meio das chamas, guiadas pelo coração escarpado de Herberto Helder. Segue-se-lhe a música é de Aline Frazão.

*

E até parece que é segunda feira. Mas não: felizmente é sexta feira. Gozem-na muito bem, ok?


quinta-feira, dezembro 13, 2012

De que serve a beleza? De que serve a juventude? De que serve a inocência perante o fingimento e a lisonja? (E deixo uma adivinha, a ver se alguém descobre)







E, no entanto, fui, ah se fui, tão requisitada, tão admirada. A minha pele, os meus olhos, a minha boca. Toda eu. O meu corpo.

Deixa-me ver as tuas pernas e eu ria, fazia de conta que me envergonhava e, depois, como se estivesse distraída, mostrava-as. Mas havia em mim sempre um pudor que, de tão bonita que eu era, quase parecia artificial.

Deixa-me fotografar-te. E eu deixava. Não sorrias. E eu não sorria. Sorri apenas com os olhos e eu sorria só com os olhos. Ah que bonita que és. E, tantas vezes o ouvi, que imaginei que assim o seria para sempre.




Senta-te nessa cadeira, ao contrário, apoia os braços nas costas, espreita. Espreita como se me quisesses seduzir. E eu espreitava, sedutora.

Veste agora outra blusa que essa é muito fechada. E eu vestia. Deixa ver os ombros, deixa ver as pernas, deixa antever os seios. E eu, submissa, deslumbrada, a vida inteira pela frente e ainda tantos elogios por vir, tão bons, tanta ternura para receber, tão boa a ternura. 

Cada sorriso que recebia, cada pequena palavra, cada sugestão de prazer era sempre uma promessa de amor eterno, tão ingénua eu. Era uma dádiva, um presente que recebia agradecida.

Ficava triste, desiludida quando percebia que, afinal, era um plano secundário o que me estava reservado mas acreditava que, um dia, iria passar para primeiro plano. Queria tanto, tanto, tanto. Merecia tanto, esforçava-me tanto, fazia tudo o que me pediam.

Vamos ao cinema, e eu toda feliz. Depois do cinema podíamos ir jantar fora e eu agradecida, sim, sim, vamos, mas e se nos vêem? sempre eu com medo. Não vêem porque vamos para um sítio onde ninguém nos vê. E eu ria, sempre agradecida, sempre crédula, sempre submissa.

És a mulher mais bonita que já conheci, apetecia-me ficar a vida toda a olhar para ti, tão linda, tão linda, e eu lisonjeada, inocente, a alma acariciada. E essas palavras valiam por mil alianças, por mil papéis passados. As outras têm o resto, eu tenho o amor verdadeiro, a paixão, pensava eu.  Elas não são exigentes, contentam-se com tudo. Eu não, eu tenho a melhor parte. E iludia-me, iludia-me sempre.




Eu tinha, então, vinte anos e a minha pele era luminosa, os meus olhos sorriam, o meu corpo resplandecia.




Depois, eu tinha trinta anos um corpo firme, um ventre liso, uns seios firmes, uns lábios sorridentes, um cabelo brilhante. E tantos sonhos. Um grande amor, uma casa, uma família, sonhava eu. Mãe, vais ver, vou ter tudo, viagens, um jardim, uma laranjeira. E filhos também, mãe. Tantos sonhos.




Depois, eu tinha quarenta, uma pele mais espessa mas ainda macia, uns seios cheios, umas curvas mais pronunciadas, o cabelo ainda sedoso, com um suave ondulado, uns olhos que às vezes já se assustavam. Tão bonita que és, as mulheres mais maduras são melhores. E eu acrescentava, e tolerantes, e pacientes e o telefone tantas vezes sem tocar e o sofá tão frio e o espelho a começar a revelar as marcas do tempo. Vamos passar o fim de semana fora, tenho que ir em serviço. Clandestinos sempre, mas tão excitante isso, e tenho o melhor, tenho a vitalidade, o arrojo, o grão de loucura e um dia terá coragem e um dia será meu. E depois que já não podia ser, que aquilo não estava certo, que a mulher e os filhos e a família e tudo. E outra despedida. Tantas despedidas, tantas desilusões.




E depois eu já tinha cinquenta e quase já não conseguia sonhar e o cabelo tão sem vida e o olhar tão sem brilho e os lábios tão já sem sorrisos e os seios já tão inúteis e as pernas tão já sem graça. Tens um charme especial, não há outra como tu, e eu ainda a tentar acreditar, e, depois, nova desilusão, e tanto cansaço já, tanta descrença. E a casa tão vazia, sempre tão vazia, e os meus ombros tão abandonados, e eu tão já afastada de tudo, de todos. 

Passaram os anos. E o tempo, como um mar forte e desatento, foi deixando as suas terríveis marcas. Onde está aquela que fui, tão bela, tão desejada? Onde estão os que me cortejaram, agraciaram, amaram, os que percorreram o meu corpo? Onde estão? Onde estão que me deixaram aqui sozinha?

Desloco-me até à janela, escondo-me atrás da cortina, espreito a rua. Protegida da luz fria, coberta pela penumbra que me acolhe, digo em voz baixa as palavras que, antes, a brincar, dizia como se ensinasse aqueles que diziam amar-me:


Tens de fazer o papel de quem ama e aparentar, por palavras, que estás ferido;
    procura ser convincente, seja de que modo for;
não é custoso acreditar em ti; qualquer uma se julga merecedora de amor;
    por má que seja, não há nenhuma a quem não agrade a sua beleza.
Muitas vezes começa, porém, o fingidor a amar de verdade;
     muitas vezes, aquilo que no começo, simulara ser, veio a sê-lo mesmo.
Mais ainda por isso, ó mulheres, tornai-vos fáceis àqueles que fingem!
    Há-de transformar-se em amor autêntico o que era, ainda agora, simulação.
É, então, hora de cativar o coração, sorrateiramente, com palavras meigas,
    tal como galga a água corrente a ladeira da margem;
não hesites em louvar-lhe o rosto, os cabelos
    e os dedos esguios e o pé delicado;
dá deleite, mesmo às mais castas, o pregão da sua beleza;
    as donzelas cuidam da figura e ela dá-lhes prazer.


Sei bem de cor estas palavras, sei bem, tantas vezes as disse. Ensinava a arte de amar, eu, eu que julgava saber a arte de amar, eu tão ingénua, tão afinal sem nada saber, sem nada ter. De que vale a beleza do corpo quando ela é tanta que ofusca tudo o resto? De que vale a juventude quando é tão efémera? De que vale a esperança quando é tão perecível?

Quase sem querer, como um autómato demente, continuo em surdina,


Se me perguntas quanto tempo deve ela queixar-se, magoada, pois que seja curto,
    não vá a raiva reunir forças, à custa da demora excessiva;
que os teus braços lhe envolvam, de pronto, a alvura do colo,
    e acolhe o seu pranto no teu regaço;
dá-lhe beijos enquanto chora, dá-lhe a experimentar os prazeres...


Mas interrompo-me, ninguém me ouve, nenhuns braços virão para me envolver, nenhuns beijos virão afastar os meus prantos. Tanta a demora, tão excessiva a demora.

Já não tenho a quem ensinar, eu que nada sei. Vazia. Vazia eu numa casa vazia, tão fria, tão escura. Vazia. 

Olho-me no espelho enevoado. Procuro uma companhia nem que seja a companhia daquela que me olha no espelho. 




Choro. E a mulher que me olha chora também. Tem vinte, trinta, quarenta anos, não sei, mas chora como eu. Trazia já a solidão no olhar. A minha vida perdeu-se algures por aí e eu não dei por nada.


*

Este texto é a continuação do que escrevi ontem (e, aos que me preferem num registo mais animado, não sei o que dizer, talvez apenas que isto tem dias...). 

A música é Baby, I'm a fool e é, uma vez mais no Um Jeito Manso, Melody Gardot.

Catherine Deneuve aqui é fotografada por Jeanloup Sieff, Richard Avedon (a antepenúltima) e Helmut Newton (a penúltima). Não conheço a autoria da última.

Não identifico o texto transcrito, a itálico. Deixo para que adivinhem.

*

Como escrevi nos comentários de ontem não me foi possível hoje nem responder aos comentários - e tanto que o queria fazer, tão interessantes e generosos eles são - nem escrever no Ginjal, facto pelo qual me penitencio. Aceitem, por favor, as minhas desculpas. Tentarei fazê-lo amanhã.

E, por hoje, nada mais. Apenas, ainda, desejar-vos um dia muito feliz.

quarta-feira, julho 04, 2012

Por una cabeza. Tango, moda, fotografia. (E deixo que a imaginação me leve nos seus braços. Estou farta de austeridade!)


Não me apetece falar de política, nem de economia, nem da licenciatura à pressão do Relvas, nem das empresas que estão em gestão corrente, sem administração, porque o governo não tem mão nas distritais do PSD e a governação está, de facto, entregue a um saco de gatos, nem me apetece falar das localidades que estão sem transportes porque acabaram com o comboio do Tua e deixaram de pagar os autocarros, nem me apetece falar da tristeza que é tudo isto. 

O País tem gente tão forte, tão competente, tão capaz e, entregues que estamos a um fraco rei (que, como é consabido, é condição quase suficiente para fazer fraca a forte gente), para aqui estamos a definhar.

Passo em relance a blogosfera e meio mundo passa a vida a lamuriar-se, meio mundo diz mal disto tudo, gente amargurada, gente colada às paredes, destilando tédio, desânimo.

Uma ou outra voz se eleva para dar um murro na mesa, uma outra voz que se ergue para nos mostrar um pensamento livre, uma imagem feliz. Mas a maioria do que vejo é um desfiar lento de desalentos, de cansaços, vidas que se esvaem neste lento passar de dias, sem esperança.

Por isso, que se dane a pobreza franciscana para que querem atirar o país (o nosso e mais alguns), que se dane a tristeza e a abulia. Não tenho paciência para martírios, para desfiar penas. Não critico os outros, os que o fazem. Cada um é como é. Mas eu também sou como sou. 


Por isso, vamos lá: música, por favor (e que me desculpem o encore):

John Williams / Carlos Gardel - Por una cabeza (Violin: Katica Illenyi (Illényi Katica))



Deslizemos, meus amigos.

Quem por aqui me costuma visitar conhece a minha paixão por tangos.

Tenho um sonho: que um dia alguém se chegue ao pé de mim, me puxe pela mão e me conduza com saber e mestria. E, com arrojo, me faça deslizar no salão, me faça rodopiar, livre, ágil, destemperada, feliz. Durante anos lancei esse desafio ao meu par habitual mas seria mais fácil o Relvas recolher ao convento do que o meu par dançar tango (ou valsa ou qualquer outra dança que requeira levantar os pés do chão).

Adiante.




Por isso, fico-me por aqui, sozinha no meio da sala, hesitando entre dançar eu, sozinha, ou deixar-me estar parada, imaginando que estou a ser levada nos braços de um exímio bailarino.

Claro que me preparei a rigor. Limpei o centro da sala, o tango requer espaço para os volteios, para os requebros, para os golpes de raiva, para os abraços quentes de paixão, para as quedas sensuais, para os galanteios descarados.

Iluminei a sala de forma a que a minha sombra apareça reflectida, quero que o cenário fique despido mas iluminado, uma iluminação íntima. Sou, pois, apenas eu e a minha sombra.

Depois o vestuário. Comecei por me despir toda. A seguir perfumei-me (Chanel, claro). Depois os sapatos: bem altos, saltos de agulha, pretos. E mais nada...? Não! Não ficaria bem, o tango requer um belo vestido.

Abri o roupeiro e hesitei. O quê? O que seria apropriado a uma bela noite de tango? Sedas, cetins? Nada me agradava. Até que vi o vestido perfeito: renda preta transparente sobre o meu corpo nu, uns folhos femininos no ombro, as costas livres para poder sentir as mãos do meu par, para lhe dar oportunidade a conduzir-me como deve ser porque condução que é condução tem que ser pele contra pele. Nada de jóias, claro. Apenas uns pequenos brincos pretos, brilhantes.

Muito bem, já está. Vejo-me na sombra da parede. Depois fecho os olhos. O tango avança e eu danço em pensamento. Um pouco antes do fim da música abro os olhos, estou imóvel sentindo a música.

E, então, olho a parede e vejo que uma sombra desliza abraçada, tomba e logo é amparada até ao volteio final, por una cabeza. E o meu coração começa a bater descompassado, feliz.

*

Entretanto, vou até à janela e vejo o sol a raiar sobre o rio. A madrugada chegou enquanto a minha sombra voava, despegada da realidade.

São, pois, quase horas de sair à rua e enfrentar mais um dia. Rio-me. E se fosse vestida assim, de transparências pretas?

Mas claro que não, ninguém repararia. Mais vale guardar a toilette para uma ocasião em que alguém dê valor à criação artística que é aquele vestido.

Dirijo-me, pois, de novo, até ao roupeiro. Tem que ser uma coisa discreta. Hoje é dia de reuniões. As férias aproximam-se e há mil coisas a preparar. Tenho que ir simples, discreta.

Opto pois por uma leve mousseline, um tom pérola, um suave drapeado, um toque de transparência, um estreito cinto a marcar a cintura. Visto, vejo-me ao espelho. Está bem assim. Mas depois volto atrás. Falta qualquer coisa.




Dispo-me de novo, reviro o roupeiro, experimento saias, vestidos, blusas, até calças eu tento, e nada, nada me agrada.

Até que tenho uma ideia: retomo o vestido, o cinto, os sapatos cor de pele, quase invisíveis mas, então, acrescento umas luvas altas e uma capeline, uma enorme capeline. Já sabem que gosto de ser invisível, assim ninguém me vê. Ainda assim, acrescento uns óculos escuros, enormes. Mas antes passo um bâton nos lábios, um bien rouge, claro.

Estou pronta.

*

As fotografias são de Richard Avedon (1923-2004), fotógrafo americano.

E, se ainda vos apetecer continuar na minha companhia, então venham daí. Lá, na minha outra casa, no Ginjal e Lisboa, a love affair, hoje a coisa não está para grandes brincadeiras. As minhas palavras olham a realidade em torno de um poema do Poeta Embaixador Luís Filipe Castro Mendes. A música é maravilhosa; Teresa Berganza canta Manuel de Falla.

*

Tenham, meus Caros, uma belíssima quarta feira. E gozem a vida, meus Caros!

*

(PS: Se ainda não tinham visto antes, tomara que agora não tenham perdido o filme que neste momento, enquanto escrevo, está a passar na RTP1, As vidas dos outros, um dos melhores filmes que vi nos últimos anos)

quinta-feira, fevereiro 09, 2012

O abúlico P do grupo dos PIIGS (ie, um elo pouco inteligente); Merkel, Alberto João Jardim e o piegas e complexado Passos Coelho; e, por falar nela: Merkel e Sarkozy, Dinner for One. E, para haver alguma coisa que se aproveite, o Staatsballet Berlin, a Maria Guinot, de Chirico e Richard Avedon (aqui há de tudo...)


Alinhado com o chefe Passos Coelho, diz Paulo Portas que nós não somos a Grécia e, como é seu hábito, contabiliza pelos dedos o número de razões que o comprovam. 


Nós somos quase a Irlanda, acrescentam em uníssono.

E todos, por aquelas bandas políticas, repetem esta mensagem. Querem demarcar-se dos gregos sarnentos, acham preferível colar-se aos irlandeses que são mais limpinhos.

Errado. Errado! Numa estratégia negocial (e o que eu gosto de negociar…?! vocês nem imaginam… ) o inteligente seria fazer justamente o contrário.

O nosso grande problema - e quando digo nosso refiro-me, por exemplo,  a Portugal, à Grécia, à Espanha, que também vai de mal a pior - é que os mercados ‘atacam’ quem lhes parece mais vulnerável. 

Uma vítima isolada é sempre uma vítima frágil.

  • [Abro aqui um parêntesis para voltar a recordar que os ditos 'mercados' se têm uma parcela racional e razoável, têm também um lado negro, funesto, especulador, ganancioso, apostando fortemente no incumprimento e isto porque têm fundos que ganham com isso e, por isso, fazem de tudo para que haja mesmo incumprimento, bancarrota – tal como agora há fundos que apostam na morte antecipada dos segurados. E se isto tudo vos parece necrófago e acham que estou a delirar, cliquem aqui e vejam com os vosso próprios olhos. E vamos ver qual o desenlace da tragédia grega em curso.)


Voltando à cold cow: Passos Coelho, como se tem vindo a demonstrar, é uma pessoa com algumas limitações* e as pessoas assim, para não se sentirem inferiorizadas, gostam de se rodear de gente mais fraca ainda, como é o caso, por exemplo, do grande guru da economia e finanças portuguesas, o engenheiro civil Moedas, do sonsinho trapalhão Gaspar, do atarantado Álvaro e outros que tais. Por isso, é gente que não pensa e que, de resto, também não tem experiência. Gente assim apanha-se à mão e isto é um perigo para nós, portugueses.

Tudo pequenino...? Ah isso não sei.
Mas que tem limitações, lá isso tem,
basta olhar-lhe para o fácies.

  • [Outro parêntesis, agora para falar das limitações de Passos Coelho. Há pouco vinha a ouvir na TSF o Proença de Carvalho e o Nogueira de Brito. A propósito do que Passos Coelho diz, nomeadamente, que os portugueses devem ser mais descomplexados e menos piegas, dizia o insuspeito Nogueira de Brito que como é sabido Passos Coelho tem algumas limitações a nível do vocabulário e que, portanto, usa palavras desapropriadas porque não conhece muitas mais]



Volto à cold cow: o que deveria ser feito era Portugal, Irlanda, Grécia, Espanha, Itália, pelo menos estes (PIIGS, com muito orgulho e não inferiorizados), unirem-se, delinearem uma estratégia comum e, solidariamente, defenderem na UE uma solução conjunta que implicasse equilíbrio e desenvolvimento.

Os Gladiadores de Giorgio de Chirico

Havendo um bloco coeso de países em dificuldade, um bloco com o peso que este teria, de certeza que outro galo cantaria. A ver se andavam para aí de cimeira em cimeira atrás daquela galinha loura (galinha! estou a chamar-lhe galinha. Pensavam que a cow de que eu estava a falar era ela, jurem lá...) com cabelo cortado à tigela, filha de pai pastor luterano e educada no regime comunista - bela mistura como background - a ver se andavam anos neste faz que chove mas não molha, deixando a Grécia agonizar, deixando que Portugal para lá caminhe, deixando que a coisa vá piorando para toda a gente na Europa.

  • [Já agora por falar na Merkel: que não morro de amores pelo Alberto João é sabido e ressabido. Mas que admita que uma bardajona qualquer (e desculpem-me o linguajar...) ande por aí a dar lições de moral, apresentando como mau exemplo o que foi feito numa parte do território português, acho uma coisa intolerável. Onde é que pára agora o piegas do marido da D. Laura? Não os tem no sítio para vir a terreiro dizer àquela galinha intrometida para se ir meter lá com os da terra dela?]



&&&&&

Bom, mas nem tudo é mau dos lados de Berlim. Não confundamos uma dirigente parva com uma nação.

Um exemplo? Vejam, por favor.



&&&

E tenham, meus Caros, uma boa quinta feira!

****

... e de bónus...

Audrey Hepburn por Richard Avedon

 Música*, por favor.

[* Já depois de ter publicado este post, voltei cá para incluir esta uma música, 'Silêncio e tanta gente' de Maria Guinot e agradeço à minha leitora Pôr do Sol que, no comentário à história de ontem a'o homem das mãos vazias' ma recordou; ficaria talvez melhor lá, ao pé daquele homem, mas apeteceu-me colocá-la hoje aqui - é uma voz dissonante na aridez dos temas destes dias de apreensão e isso é coisa que faz tanta falta. Precedi-a da belíssima fotografia de Avedon para ficar melhor acompanhada]

quarta-feira, novembro 09, 2011

Miguel Relvas, o ministro que não tem almofadas; Tozé Seguro, que vai à Troika pedir um subsidiozinho - teatrinhos. Vamos mas é fugir deles. Vamos voar - Richard Avedon dá-nos uma ajuda e Maria Gabriela Llansol explica-nos porquê


Quando o assunto é relativo a empobrecimento, tenho dificuldade em discutir quem é que deve empobrecer mais ou se, os que vivemos do que nos pagam (trabalho, bolsas, subsídios ou pensões – propositadamente deixo de fora os que vivem de especular financeiramente e que são os eternos poupados à austeridade) já estamos suficientemente penalizados ou se ainda há alguma ‘almofada’ de empobrecimento.

É certo que os funcionários públicos, face aos benefícios complementares que têm (a ADSE é um deles), podem ser considerados um grupo até aqui privilegiado e, portanto, poderia ser defensável que agora fossem penalizados com a sonegação dos dois subsídios para ajudarem na redução da despesa - poderia ser… mas não é.

Mas pensemos agora nos trabalhadores de tantas empresas do sector empresarial de Estado, que não têm nenhuns desses benefícios ou garantias (diuturnidades, ADSE, segurança no emprego, carreiras, etc), que estão tão sujeitos à precaridade do mercado como os das empresas privadas, e que, mesmo nas empresas rentáveis – e há várias! – estão a levar pela medida grossa, como se fossem funcionários públicos. Há muita injustiça nisso.

Por isso, não vou embarcar nesta divisão entre os que ‘podem’ ou ‘merecem’ e os ‘outros’. Nesta empreitada a que o governo meteu mãos à obra, de atirar com o país para o buraco, somos todos vítimas indefesas e é isso que deveremos interiorizar. Alimentar rivalidades é um passo no caminho de um clima fraticida. Não embarco nisso.

Segundo o governo, depois desta campanha de empobrecimento, daqui por muitos anos, daqui por 10 anos (segundo a bruxa má, Merkel), o país renascerá por si só.

Não creio. Pobreza gera pobreza. Nenhum país caminha para trás no tempo durante tantos anos de seguida. A ser verdade acabaríamos na rua, desgraçados e esfaimados, como cães ao lixo. Isso não acontecerá. Qualquer coisa acontecerá antes, qualquer coisa que quebre este enguiço.

Que muitos hábitos de pseudo-riqueza devem ser corrigidos, disso não tenho dúvida, nunca o tive. Não faz sentido ir de férias a crédito, ter carros de alta cilindrada para andar na cidade e comprados a crédito, não faz sentido toda a gente ter comprado casas para as quais não tinha dinheiro nem para a entrada e com planos de pagamento a 50 anos, não faz sentido que as pessoas acumulassem créditos em cima de créditos, não faz sentido muita coisa. Mas, não nos esqueçamos que, no conjunto, isso são peanuts.

Porque o que não faz mesmo sentido é que empresas (públicas e privadas) se metessem em avultados planos de investimento e sem capitais próprios, tudo alavancado; não faz sentido que empresas comprassem milhões, muitos milhões de acções em bolsa com financiamento bancário e sem garantias; não faz sentido que muita gente tenha enriquecido espectacularmente com rendimentos inexplicáveis e sem ser tributado por isso – e, no conjunto, estou a falar de poucas pessoas e de poucas empresas mas que ilustram o Princípio de Pareto (também conhecido por lei ABC), ou seja, cerca de 20% ou menos de pessoas ou de empresas são responsáveis por cerca de 80% dos problemas (dívidas incobráveis, imparidades, etc) - é a classe A, os ilustres. Pelo contrário, cerca de 80% das pessoas ou empresas respondem por aproximadamente apenas 20% ou menos dos problemas - é a classe C, a ralé, isto é, quase todos de nós. (... para os mais curiosos: esta lei aplica-se a quase tudo o que mexe e mesmo a coisas que não mexem, como sejam os stocks).


Mas as situações inerentes à Classe A são as que sobejamente se conhecem e que continuarão a ser poupadas (porque 'senão fogem', porque 'senão põem o dinheiro lá fora' – como se já não usassem offshores, como se já não tivessem o dinheiro a salvo...) e, ingenuamente, deixamos que todas as atenções se virem para os pobres cerca de 80% de pessoas ou empresas que pouco ou nada contribuíram para o buraco em que estamos.

Voltando onde ia: dizia eu que muitas correcções são indispensáveis, muitas, muitas. Toda a máquina tem que se pôr a funcionar, com competência, sem amadorismos, sem despesismos, com focalização no que são os verdadeiros objectivos estratégicos do país.

Mas não basta fazer isso para que o País se desenvolva, nem pensar.

O País tem que ter políticas inteligentes e estratégicas de desenvolvimento. São indispensáveis políticas activas, sólidas, postas em prática de forma consistente ao longo de anos, no sentido de fazer crescer a economia. O País não pode ser objecto de experimentalismos, voluntarismos, gestos ignorantes e impensados. Os países não devem regredir. A humanidade deve caminhar no sentido do desenvolvimento. Não posso aceitar que nos impinjam um caminho de retrocesso.

Por isso me parecem irrelevante os actuais teatros - com tão fracos figurantes...! -  a que andamos a assistir. Não consigo já nem ver nem ouvir o Relvas com aquele seu ar de velha gaiteira a falar de almofadas, nem o Seguro com aquele seu ar de sofredor menino velho, um maçador de primeira, a falar nem sei de quê que não consigo fixar nada do que ele diz, credo.

O País a precisar de um comando a sério, de uma visão, de um líder e só nos sai disto.

E a propósito: alguém me explica porque carga de água é que agora é o Relvas que por aí anda, armado em primeiro-ministro? Que é feito do outro, do marido da D. Laura? Só dou por ele quando anda no estrangeiro; parece que só tem coisas para dizer quando está longe, não é?

Já não há paciência.


(((((())))))


Mas eu disse que não quero alimentar rivalidades que só servem para criar a divisão entre os que deveriam estar do mesmo lado. E disse que já não há paciência, não foi? Então, não vou aqui ficar a remoer nisto. Vou partir para outra. Venham comigo.

Olhemos o mundo de uma outra perspectiva. Elevemo-nos. Vamos voar.

Música! Maestro.



Nureyvev

Sylvie Guillem

Mikhail Baryshnikov e Twila Tharp

Stephanie Seymour

Cyd Charisse



<|||>

 
O pensamento é impelido pela geometria dos corpos.

Quando o corpo e o espírito são dois amantes experimentados, surge a proporção escondida, sabem extrair de quase nada o ardor imenso de criar.

Chegámos a um estado de tão profunda fragilidade e pequenez, que se tornava importante saber se tínhamos vivido ou se tínhamos sonhado o nosso passado. A diferença é mínima, mas o desencanto pode ser mortal.

Ir buscar plenitude, é garantir a respiração harmónica e metódica do meu corpo nascido para perdurar.


<>

(As palavras são de Maria Gabriela Llansol, claro; a música pertence à banda sonora de África Minha e as fotografias, como é bom de ver, são de Richard Avedon)


«»

Se vos apetecer agora ouvir violoncelo, recomendo-vos que ouçam Sol Gabetta, magnífica, ali ao lado, na minha outra casa: esta semana na Música no Ginjal há cordas.

«»


Agora, enquanto vos escrevo, chove que Deus a dá e troveja que é um susto. Mas, se quando me lerem, ainda estiver assim, não se deixem enevoar - sorriam, aqueçam-se. E, meus Amigos, tentem ter um belo dia.

  

terça-feira, outubro 25, 2011

Hoje não tenho paciência para esta crise que nos corrói a alma e, por isso, ao som de Let it Rain pela Tracy Chapman, os meus últimos livros posam para mim, as mulheres posam para Richard Avedon e desfilam numa fantástica metamorfose em Women in Art ao som de Bach


De vez em quando, dá-me uma neura contra esta gente toda que ao longo de décadas deu cabo do país e que para aí anda, armada em moralista, enquanto recebe na conta bancária a subvençãozinha ou que parqueia as suas empresas em offshores ou em países em que a carga fiscal é mais favorável, contra estes rapazolas todos que para aí andam nas televisões e nos blogues a alardear sound bites sem saber do que falam, sem terem quaisquer conhecimentos sobre dados básicos que são essenciais para formar opinião. Uma poluição mental que me enerva.

Já se admite que não faltam nem 20 anos para que não haja dinheiro para reformas, toda a gente já dá como adquirido que, na administração pública, subsídio de férias e natal, viste-los; fazem-se as contas e vê-se que o dinheiro da troika não vai chegar e que, no final do programa, com esta austeridade que vai sugar a sociedade portuguesa até ao tutano, estaremos piores do que estávamos antes. Empobrecemos um pouco mais todos os dias e o pior está para vir. E eu, que pensava que andava a trabalhar para garantir o meu futuro e que estava tranquila quanto ao futuro de filhos e netos, vejo agora, com aflição, que afinal o mundo em que eu pensava que vivia, ruíu - e parece não haver quem perceba que a trajectória que está a ser seguida é ruinosa, trágica.

Mas hoje não quero maçar ninguém com isto.

Nem quero maçar-me a mim própria.


Música! maestro.



E, vai daí, peguei nalguns dos meus últimos livros comprados, pu-los em pose para a fotografia e eis que aqui estão eles, todos aprumadinhos para as visitas.

Os meus mais recentes livros e - desculpem lá a parvoíce - as minhas últimas écharpes
[O que é que as écharpes estão ali a fazer? - perguntarão vocês
Não faço ideia, mas gosto muito de livros (e de écharpes também)]


Passo então a relatar-vos, mostrando-vos um bocadinho da primeira página. No caso do poema, escolhi o poema 'Fotografia do Porto' para mandar um abraço aos meus leitores desta bela cidade:


Barbara Kingsolver - Lacuna  (Vencedor do Orange Prize 2010, Finalista do Pen/Faulkner Award)

'No princípio eram os uivadores. Começavam sempre os seus bramidos às primeiras horas da manhã, quando o horizonte começava a clarear. (...) Tal como era no início, assim é todas as manhãs do mundo.


Ali Smith - Amor Livre e outras histórias (Prémio Saltire para o Primeiro Livro em 1995)

'A primeira vez na vida que fui para a cama com alguém foi com uma prostituta em Amesterdão. Eu tinha dezoito anos e ela chamava-se Suzi, suponho que não era muito mais velha que eu. (...) Eu tinha andado a pedalar toda a tarde, sempre sozinha.'


Italo Calvino - Os amores difíceis

'No compartimento do comboio, ao lado do soldado de infantaria Tomagra, veio sentar-se uma senhora alta e formosa. Uma viúva provinciana, é o que devia ser, a julgar pelo vestido e pelo véu: o vestido era de seda preta, apropriado para um luto prolongado, mas com guarnições e laços inúteis, e o véu passava-lhe em volta do rosto caindo-lhe de um pesado chapéu de tipo antiquado. Havia mais lugares livres no compartimento, notou o soldado de infantaria Tomagra; e pensou que a viúva iria escolher um deles; afinal, apesar da rude vizinhança dele, soldado, ela veio sentar-se ali mesmo.


Penelope Fitzgerald - A Livraria (Vencedora do Booker Prize)

'Em 1959, Florence Green passava de vez em quando uma noite em que não sabia com toda a certeza se dormira ou não. Tal devia-se às suas preocupações sobre se devia comprar a Old House, uma pequena propriedade com armazém próprio na primeira linha de praia para abrir a única livraria de Hardborough.


Rita Ferro - A menina é filha de quem? (romance autobiográfico)

'(...) Fui a única a nascer de parto natural. Como resultado esterilizei a minha mãe. Talvez tenha sido uma benção para ela. Talvez tenha sido o meu primeiro estigma. Na vida é tudo talvez e por isso me mantenho em prova. tudo o que escrevo neste livro é verdade e o que for também o é. Foi assim que fui habituada: a acreditar em mentiras. Boas, magníficas mentiras.'


Alice Vieira - Os Profetas

'O que ides ler não é invenção de espírito cansado ou desejoso de vingança. Não guardo rancor a ninguém. Juro que tudo o que aqui deixo escrito é a mais verdadeira das verdades. Nada inventei, nada conto por me terem contado - a não ser o que ouvi da boca de homens sábios. Não conspirei, não denunciei, não testemunhei falso, não entreguei ninguém às fogueiras da Inquisição. De nada me arrependo. E agradeço com igual fervor aos que me fizeram descer aos infernos como aos que me ajudaram a vislumbrar as portas do paraíso.


José Saramago - Clarabóia

'Por entre os véus oscilantes que lhe povoavam o sono, Silvestre começou a ouvir rumores de loiça mexida e quase juraria que transluziam claridades pelas malhas largas dos véus. Ia aborrecer-se, mas percebeu, de repente, que estava acordando. (...) Tinha o tronco forte, os braços grossos e duros, as omoplatas revestidas de músculos encordoados. Precisava desses músculos para o seu ofício de sapateiro. As mãos, tinha-as como petrificadas, a pele das palmas tão espessa que podia passar-se nela, sem sangrar, uma agulha enfiada.'


Julian Barnes - Arthur & George (Finalista do Booker Prize 2005 e do International IMPAC Dublin literary Award 2007)

'Uma criança quer ver. Começa sempre assim, e então começou assim. A criança queria ver. Já andava e conseguia chegar ao puxador da porta. fazia-o sem qualquer tipo de finalidade, era o mero instinto turístico da infância. Havia uma porta para empurrar; ele entrava, parava, olhava. Não havia ninguém a observá-lo; voltava-se e saía, fechando cuidadosamente a porta atrás de si. O que ali viu tornou-se a sua primeira memória. (...) Quando a descreveu publicamente, sessenta anos haviam passado.'


Dulce Maria Cardoso - O Retorno (...e uma bela encadernação)

Mas na metrópole há cerejas. cerejas grandes e luzidias que as raparigas põem nas orelhas a fazer de brincos. Raparigas bonitas como só as da metrópole podem ser. As raparigas daqui não sabem como são as cerejas, dizem que são como as pitangas. Ainda que sejam, nunca as vi com brincos de pitangas a rirem-se umas com as outras como as raparigas da metrópole fazem nas fotografias. A mãe insiste para que o pai se sirva da carne assada. A comida vai estragar-se, diz, este calor dá cabo de tudo, (...)'


Ines de Fressange - La Parisienne (...e uma bela, elegante encadernação)

'Il n'est pas nécessaire d'être née à Paris pour avoir le style de la Parisienne. J'en suis le meilleur example: j'ai vu le jour à Saint-Tropez! Avoir l'attitude made in Paris est plus un état d'esprit. Être rock et jamais bourgeoise par example. La parisienne ne tombe jamais dans la piège des tendances: les laisser infuser et s'en servir à bon escient, voilà sa recette secrète! Et garder toujours un objectif: s'amuser avec la mode. elle suit quelques règles, mais aime bien les transgresser aussi, ça fait partie du style.'


José Luís Peixoto - Gaveta de Papéis (Prémio Daniel Faria 2008)

O Porto é uma menina a falar-me de outra idade.
Quando olho para o Porto sinto que já não sou capaz
de entender a sua voz delicada e, só por ouvir, sou
um monstro que destrói. Mas os meus dedos são capazes
de tocar-lhe nos ombros, de afastar-lhe os cabelos.
Entre mim e o Porto, existem milímetros que são
muito maiores do que quilómetros, mesmo quando
os nossos lábios se tocam, sobretudo quando os nossos
lábios se tocam. De que poderíamos falar, eu e o Porto,
deitados na cama, a respirar, transpirados e nus?
Eis uma pergunta que nunca terá responta.

<>

E agora, em homenagem às bravas mulheres que lutam diariamente para sobreviver, para tomar conta da casa e da família, que conseguem progredir profissionalmente e que não abdicam da sua feminilidade, aqui vos deixo uma fotografia e um pequeno clip.


by Richard Avedon

<>

E agora para todos os homens que gostam de mulheres e, em especial, para todas as mulheres que, tal como eu, adoram ser mulheres, uma fantástica sucessão de rostos de mulheres na arte de todos os tempos.





Tenham um belo dia!