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segunda-feira, julho 25, 2022

Livros, músicas, poemas, pinturas, amores... pode haver uma preferência acima de todas as outras?

 


Estou numa fase da minha vida em que leio pouco. O tempo anda-me tão curto que não me reserva espaço para a leitura. Hoje de tarde, mal acabei de almoçar deu-me uma pancada de sono. Deitei-me no sofá e adormeci. Quando acordei, peguei num livro e fui para o jardim. Mas apeteceu-me estar na conversa em vez de estar isolada com o livro.

Contudo, o mundo dos livros continua a ser um mundo que me atrai. O mundo das palavras. Ler o que os outros escrevem. Encontrar a diferença nas palavras dos outros. Não é apenas a história, é também a maneira de cerzir as palavras. Não procuro coisas espectaculares, não procuro palavras desconhecidas, descrições surpreendentes. Não sei explicar bem o que procuro. Talvez a sinceridade, talvez a espontaneidade, a franqueza visceral. Talvez o acto do desnudamento com elegância, talvez a atenção aos pormenores, talvez o olhar inteligente sobre as coisas, sobre os outros. Talvez a forma primitiva e única de olhar para dentro de si próprio e para dentro dos outros e das coisas.

Rejeito em absoluto a banalidade. Não percebo o que leva alguém a escrever banalidades e muito menos percebo quem as consome.

E, no entanto, quantas vezes aqui escrevo eu banalidades...? Tantas, tantas...

Quando aqui escrevo, raramente sei sobre o que vou escrever. Escrevo o que, no momento de começar a escrever me ocorre. Pode ter a ver com o que acabei de ler ou de ouvir ou posso não ter nada para dizer e, por isso, escrevo sobre o que se passou nesse dia ou sobre alguma coisa que me ocorre. Outras vezes tenho vontade de escrever sobre algumas coisas mas prefiro não, deixo-as para mais tarde ou para outro contexto. Espanta-me que tenha sempre tantas visualizações, em média mais de duas mil e quinhentas por dia. Recebo mails de pessoas que se sentem próximas e querem conversar comigo mas, logicamente, desconheço a maioria dos que me leem. Acredito que, por vezes, os desaponto. Talvez, por vezes, pensem que, afinal, não me conhecem. Outras, se calhar, acreditam que me conhecem bem de mais.

E, no entanto, estou convencida que ninguém me conhece completamente. Há coisas que nunca verbalizo e que, estou em crer, fazem tanto parte da minha vida quanto as que exponho. Nem sei se saberia escrever sobre aspectos tão pessoais. E, no entanto, gosto de ler o que as pessoas são por dentro, como pensam, como é o seu passado, como interpretam a vida. Gosto de estar por dentro da sua intimidade. Posso não me sentir cúmplice mas, mesmo com algum distanciamento, gosto de ler as descrições das vivências, das dúvidas, dos desequilíbrios, das vulnerabilidades, das alegrias. Claro que se, por detrás (ou por dentro) das palavras, estiver alguém que tem um percurso cheio de momentos interessantes que possam ser partilhados, ou em estado puro ou reprocessados, tanto melhor.

Como já referi algumas vezes, alimento a secreta esperança de ainda vir a ter tempo, espaço e vontade de escrever mais a sério. Gosto muito de escrever. Mas gostava de ter tempo para reler, para burilar a escrita, para encontrar as ligações musicais que tornam a escrita mais próxima das emoções, ou para descer mais fundo na procura da verdade intrínseca. Gostava de ser capaz de escrever bem, pausadamente, pensadamente, não apenas à pressa, descuidadamente, superficialmente. Gostava de ser capaz de bordar com palavras e que o avesso ficasse tão perfeito quanto o direito. Gostava de conseguir encontrar o gume sobre o qual a escrita se equilibraria.

Talvez um dia. Talvez. 

Quando penso nos livros que mais me marcaram hesito. Um livro é lido diferentemente por quem o lê e nós próprios vamos mudando ao longo da nossa existência. O livro e a sua circunstância. 

Quando li A Selva fiquei fascinada. Teria talvez dezoito anos e o meu namorado da altura ofereceu-mo. Mas já antes tinha ficado fascinada com Liza, a pecadora. Aí teria uns quinze e trouxe-o da biblioteca do liceu. Ou com As sete partidas do mundo. Teria uns catorze e trouxe-o de uma amiga e vizinha cujo marido era médico e, na altura, estava em África. Ou, depois disso, com A Bastarda. Ou com A virgem e o cigano. Ou com Por quem os sinos dobram. Ou com O Arco do Triunfo. Ou com A montanha mágica. Ou com A insustentável leveza do ser. Ou com o Amor nos tempos de Cólera. Ou com o Ensaio sobre a Cegueira. Ou com Carne de cão. Ou com o Stoner. Ou com As oito montanhas

Com tantos fiquei fascinada, tantos, tantos. 

Se os relesse agora sentiria o mesmo? Ou o que na altura me pareceu novo, único, agora saber-me-ia a déjà-vu? Não sei, não arrisco a desilusão, prefiro mantê-los intocáveis na minha memória. Não os releio. 

E sou incapaz de dizer qual prefiro. Não coloco livros num pódio. Tal como com todos os amores. Aquilo que amamos e respeitamos não é sujeito a comparações.

Mas há quem tenha feito uma lista dos livros preferidos em todo o mundo. Não sei se resulta de uma pesquisa rigorosa mas, ainda assim, estive a espreitar.

Deixo o link, caso queiram verificar: Os Livros Favoritos do Mundo — lista completa em português


Supostamente em Portugal é o Memorial do Convento. 

Também não sei se o livro preferido de um país é sinónimo de o melhor livro publicado nesse país ou se o melhor livro escrito na língua desse país. Seja o que for. Nestas coisas, as estatísticas são o que são: uma abstração.

Ao lembrar-me de livros, reparo agora que falei apenas de livros em prosa. E, no entanto, sou também muito sensível a livros de poesia. Eugénio de Andrade, Sophia de Mello Breyner, Teresa Horta, Herberto Hélder, António Ramos Rosa, Pedro Támen. E tantos, tantos outros. E só estou a falar nos portugueses de Portugal.

E, no entanto, ao pensar em colocar aqui um poema lido é, uma vez mais, num poema que não é português e que nem sei dizer porque gosto tanto dele. Mas gosto. Já aqui o partilhei muitas vezes e frequentemente ando com ele a bailar-me na mente. Não sei porquê. Tal como ao escolher uma música para aqui se identificar comigo de uma forma muito próxima escolho uma vez mais a mesma que já aqui tantas vezes esteve. Ou ao escolher um pintor escolho aquele cuja obra é o mais despretensiosa possível, a simplicidade mais extrema, e que, apesar disso (ou talvez por isso), me toca quase comoventemente. 

É assim. São coisas que não se explicam. 




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Desejo-vos uma boa semana a começar já nesta segunda-feira
Saúde. Amor. Paz.

segunda-feira, junho 15, 2020

Kefir in heaven



Depois de uns dias a comer bem e mais do que devia, já ontem à noite me apeteceu aligeirar. E hoje, já apenas nós dois, enquanto ele comeu uns restos de arroz e carne grelhada, eu fiquei-me pela fruta comida ao mesmo tempo que o queijo e por um daqueles petiscos pelos quais me pelo. Aliás, devo dizer que adivinhei logo que a minha menininha mais linda ia gostar dele tanto quanto eu. E alguns dos meninos também. O meu filho e a minha nora também. Não convenci nem o meu marido nem a minha filha. Não são dados a mistelas das minhas. Sinceramente não compreendo porquê porque são uma delícia.

Conto.

Gosto de kefir de qualquer maneira. Mas há uma maneira de que ainda gosto mais. Como base, gosto do kefir puro, sem sabores ou geleias misturadas, sem açúcar. Gosto daquele que é relativamente líquido. E faço assim: coloco numa tacinha um bocado de kefir, misturo ou amêndoas ou outra coisa de que gosto muito e que compro no lidl, caju com arando, depois polvilho generosamente com canela e ponho um fio de mel. Misturo. E como com o coração adoçado, a boca ainda mais. Experimentem.

Para além do mais presumo que seja saudável. Talvez o mel ou os frutos secos não ajudem a perder peso mas uma coisa eu posso assegurar: ajudam a sermos felizes.

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E, para condimentar, sai um dos meus poemas preferidos (oh céus, porque é que gosto tanto deste poema?), um que cheira a canela.


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NB: Hoje andámos a apanhar orégãos. Uma farturinha perfumada. Há-os por todo o lado, viçosos, cheirosos. Amanhã talvez vos mostre a instalação que ali está armada na mesa da sala de jantar. Mas agora quero apenas dizer que, quando estávamos na colheita, um dos meninos, o mais novo, veio chamar-me para me mostrar uma flor. Pensei que era uma flor banal -- banal no sentido em que já vi mil vezes. Mas, quando a vi, fiquei pasmada com a sua insólita beleza. Ao fim do dia, já eles se tinham ido embora, resolvi ir vê-la de novo e fui munida. Tinha que fotografá-la. Primeiro contra o fundo verde em que estava, outra contra o fundo da pedra junto da qual estava. Maravilhosa. Há coisas extraordinárias nesta vida.

sexta-feira, maio 01, 2020

Dizer que hoje é o Dia do Trabalhador





Já é dia feriado e ainda bem. Não sei se me aguentaria inteira se tivesse que aguentar mais um dia assim. Aliás, a semana veio em crescendo e esta quinta explodi umas quantas vezes e estive em vias disso outras tantas. Não foi fácil. Cheguei ao fim do dia exausta. Fazem-me muita impressão as situações que não percebo e relativamente às quais, quanto tento que me expliquem, fico na mesma. Por exemplo, envolvi-me tanto num assunto que é crítico, esforcei-me, entreguei-me, expliquei, sensibilizei tanta gente que, quando estava convencida que ia deixá-lo em boas mãos, vejo que não devem ter percebido nada pois o entregam a quem tem zero competências para tal. Custa-me imenso assistir (de perto) a situações incompreensíveis. Apetece-me dar dois pares de coices. Claro que situações estúpidas há em todo o lado e aberrações é o que não falta  -- e uma pessoa vai adquirindo defesas para saber lidar com tudo. Mas pior é quando se trata de uma situação deveras crítica que requereria competências à prova de bala. Não um incompetente, não um desprovido. E a culpa não é dele, a culpa nunca é dos destituídos, a culpa é dos que, sabendo que é destituído, ainda assim o escolhem. Não se compreende. Ficou furiosa. Nem é bem furiosa. É desiludida. Descrente. Desinteressada.


Mas, tirando isso, foi todo o santo dia. Parece que, de repente, tudo entrou em roda livre.

Cansada. Dá ideia que, se uma pessoa se se distrai, é atropelada por uma manada desencabrestada. 

Acontece que, em cima disso, há cada vez aquelas expressões que tudo o que é mente fraca usa e que a mim me deixam em polvorosa. Faço de conta que não ouço. Quem me veja dirá que não reparo. Mas só eu sei. Uma violência. E já nem sei se alguém, para além de mim, fica com brotoeja na alma. A coisa quando pega de estaca desenvolve-se com viço. Rebenta por todo o lado. Erva daninha. Uma pessoa sente-se sozinha, incompreendida, com vontade de hibernar, de recolher ao convento.

Explico-me. Gente que tem mais do que obrigação de saber falar, gente com formação na área das humanidades ou sei lá o quê, gente que andou nas melhores universidades e com toda a espécie de mestrados, mba's, pós-graduações e o escambau e, quando começa a falar, enfatuadamente diz: 'dizer que este período tem sido desafiante para todos' e, a cada pausa e recomeço, iniciam a frase da mesma enervante maneira, 'dizer que estou agradecido', 'expressar o reconhecimento por todos quantos', 'transmitir que o regresso não vai ser ao normal mas, sim, ao novo normal', 'isto não tem a haver com' 'mas tem a haver com'. E, ouvindo isto, eu sinto a crescer dentro de mim aquela impaciência que me faz ficar irrequieta na cadeira pois sei que tenho que aguentar e calar.

Faz-me ainda outra coisa: ter vontade de ganhar o euromilhões. Dou por mim a pensar: se me saísse o euromilhões, viria trabalhar só para sair em beleza. Deixá-los-ia falar e, quando acabassem, diria: 'não é assim que se fala, ó seus papagaios que nem ao menos sabem escolher o que papaguear. Vou-me embora, já dei demais para este peditório, já aguentei demais, e esta maneira de falar é a gota de água, deixá-los-ei com a vossa oca prosápia'. Claro que ficariam a olhar para mim incrédulos e, quando eu virasse costas, haveriam de ficar sem perceber o que se tinha passado, concluindo: 'mulheres...' Ou, então, diriam: 'Mas quem é que ela pensa que é? Nem falar sabe. Em vez de 'deixarei-os falar disse deixá-los-ei. Loura burra''.


Por vezes, quando a reunião é alargada e o tema não me diz directamente respeito ou não me é especialmente interessante, aproveito para ver mails. Sempre me poupa trabalho à noite e sempre desanuvio. Mas, então, estava eu nisto, a ver mails, dou com esta pérola: Se estiver de acordo, podia-mos deixar o outro assunto para depois para nos pudermos concentrar no problema que temos em mãos. 

Fiquei a olhar para aquilo, a sentir-me besta. Quando recebo uma coisa assim, hesito sempre entre fazer de conta que não vejo, responder arranjando maneira de escrever aquelas palavras como deve ser ou responder, assinalando abaixo, a encarnado, os erros. Se fizer de conta que não vejo, fico a sentir-me incoerente, acomodada, acobardada. Se responder usando as palavras bem escritas, corro o risco de os broncos acharem que não sei escrever. Se assinalo os erros, vão dizer que sou mal educada, deselegante, má colega. Portanto, depois de ficar a olhar, resolvi fechar o mail e prestar atenção à reunião. O que me intriga nisto é que juraria que ele, dantes, não escrevia assim. Fiquei a pensar: terá sido o corrector automático que lhe pregou uma partida? ou estará a ficar demente? uma pandemia de bestalhice?

Santa paciência.

Bem. Não digo mais nada. Não estou nas melhores condições. Nem consigo responder aos comentários.

Tenho limpezas grandes para fazer durante este fim de semana alargado mas a ver se neste dia do trabalhador arranjo maneira de poder agradecer e responder a cada um. Não levem a mal.

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Há poetas de que gosto muito. Há poemas de que gosto muito. Há pessoas que dizem poemas de que gosto de uma forma que me agrada muito. Por exemplo. Gosto dos poemas de Michael Ondaatje. Gosto de Tom O'Bedlam. A voz dele e as pausas são preciosas. E gosto deste poema, 'What we lost'.  Partilho-o convosco não apenas porque estou a ouvi-lo mas, também, porque me custaria que aqui tivessem vindo e saíssem com a sensação de tempo perdido. Assim, talvez gostem de ouvir o poema.


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As imagens -- que acho lindas -- são de Christy Lee Rogers

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Um bom Dia do Trabalhador.
Saúde.

segunda-feira, março 09, 2020

O que somos, o que perdemos





Hoje estou naqueles dias em que, à partida, me sinto tocada pela hesitação que deveria ser sinónimo de mutismo. Pode ser que, daqui a nada, ao começar a escrever, a voz me volte e eu consiga manter-me aqui. Passa da meia noite e só agora aqui consigo chegar -- não só porque estava ocupada como sentia que não me apetecia. 

Hesito sobre o que dizer quando estou tomada por muitas dúvidas. Nem sei se fale em dúvidas se em perplexidades mas, seja o que for, faz-me chegar a este ponto a sentir-me como que tolhida.

Tudo o que diga me soará a futilidade. E sei que não há respostas para as minhas dúvidas.


A começar esta coisa deste covid. Que raio de mundo é este? Tantos anos a construir uma civilização que, afinal, continua assente em pés de barro.
Satélites em órbita que traçam a nossa geo-referenciação para nos guiar por todos os caminhos por todos os lugares que resolvamos percorrer, sondas que exploram os confins do universo e o solo e a atmosfera de planetas onde a maioria, senão a totalidade, de nós nunca iremos, laboratórios que traçam a sequenciação do nosso dna, descodificando o que somos até onde nós próprios nos desconhecemos, tecnologias que armazenam e processam teras, petas, exas, zettas de informação útil e inútil em longínquos e ubíquos repositórios, veículos que vencem o espaço e o tempo transportando milhares e milhares de pessoas de continente em continente... e, afinal, um qualquer bicho constipado causa o caos em todo este admirável mundo e não há vacinas, não há tratamento, não há como travar sucessivas ondas de um choque que não pára de aumentar. É de doidos.

Há uns meses, enquanto azafamadamente se discutiam futilidades, se alguém aventasse a possibilidade de pôr milhões de pessoas em quarentena durante semanas, fechar escolas durante semanas ou montar hospitais de campanha à porta dos hospitais de referência, pareceria loucura. E, no entanto, está a acontecer.

E, de repente, as pessoas, pelo menos as pessoas desses lugares sitiados, são forçadas a prescindir de tudo o que fazia parte do seu estilo de vida: não podem frequentar espaços públicos, não podem viajar. O consumo desce em fecha, a poluição diminui. Como se, de repente, um qualquer castigo divino ou, vá, uma misteriosa mão oculta forçasse as pessoas a perceber que conseguem viver sem excesso de consumo, junto dos seus, na sua terra, uma vida simples.


Esta coisa do covid deveria merecer uma reflexão profunda. Que vida queremos? Que vida faz sentido que levemos?
Convencidos que somos muito bons, uns cheios de si e alimentando-se da sabedoria e dos muito contactos que têm via redes sociais, outros cheios de propalados sucessos empresariais, outros cheios de academia e papers, outros cheios de cultura e referências, outros cheios daquela arrogância que se confunde com cinismo e pessimismo, não passamos é de animais muito estúpidos e dependentes. E tenho para mim que nem perante um tamanho abre-olhos os iremos abrir. Andamos encandeados com as ondas de poluição intelectual, estética. social e etc. que criámos à nossa volta e não sei se saberemos ver para além dela.

E, portanto, neste estado de espírito, só tenho a dizer que ontem de manhã fui ver os meus pais e à tarde estive a ver dois dos meninos a jogarem futebol e soube-me muito bem estar ao sol, num lugar desafogado e com uma bela vista, à conversa, e que hoje vi os outros meninos e deixei lá limões da minha mãe e orégãos made in heaven, e de tarde estivemos lá, in heaven, e passeei pelo campo e tive vontade de lá estar mais tempo, e estive a ler e a fotografar e depois, já aqui, estive a tratar da casa, a cozinhar, a ver as fotografias e a escolher estas que aqui vêem para partilhar convosco. 
[E agora chegou um mail de trabalho, alguém que coloca uma questão muito pertinente e concreta, e eu dei a minha opinião mas estou cheia de dúvidas pois se seguisse a minha intuição diria que nem pensar mas, perante a situação em concreto, acabei por dizer que, nesse caso, que remédio mas que redobrem cuidados. E tudo isto é surreal e prova que o caminho seguido a todos os níveis, deixando-nos sempre dependentes de terceiros que estão no outro lado do mundo, nos coloca, nestas circunstâncias, numa grande fragilidade.]

Tirando isso, com a consciência da minha efemeridade, ocorre-me que o mais certo é que nunca venha a desvendar mistérios que gostaria de desvendar, conhecer pessoas que gostaria de conhecer, ver as mãos que escrevem o que gosto de ler. O tempo é curto e cheio de acasos e a nossa vida é breve e cheia de incertezas, hesitações e limites.

De tarde estive a ler um livro e gostei tanto do que li que pensei que gostaria de saber o que pensa aquela pessoa quando não está a pensar no que vai escrever. Poderia perguntar-lhe. Mas depois pensei que se calhar o melhor mesmo é deixar que as pessoas que conhecemos através das palavras permaneçam nesse limbo de imaterialidade que as torna abstractas e inexistentes.

Talvez que se um vírus ou um meteorito ou um irremediável desatino climático, um dia, dizimarem parte da humanidade subsistam as palavras. Talvez também as pedras. Talvez também, algures, no espaço, numa qualquer nuvem virtual, subsistam as memórias de quem não soube guardar as flores, os pássaros, o amor.


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Desejo-lhe, a si que está aí desse lado, uma boa semana

domingo, dezembro 16, 2018

A primeira etapa de uma dose de cavalo.
[E, por causa disso, nem consigo falar do autor do descascador de canela]





O meu sábado esteve a rebentar pelas costuras e nem eu sei como lá coube dentro tanta coisa. Compras, supermercado, ida aos meus pais, almoço num tasco onde o peixe chega directamente do mar para saltar para o prato, entrega do colchão (que é alto, alto..., um disparate, não sei como não reparei nisso lá na loja), preparar o repasto para casa cheia ao jantar, pessoalzinho aos saltos e tudo na maior farra e forrobodó a seguir e, pelo meio, uma ida a correr buscar o presente que Leitor a quem muito agradeço me deixou num lugar secreto (e de que amanhã darei notícia).

Entretanto, enquanto os assados estavam a cumprir-se no forno, a sopa já feita, uma máquina de roupa a lavar, e antes de a casa se encher, vim iniciar aquilo que, com enorme esforço, faço uma vez por ano. Quando chegaram, interrompi e, quando saíram, retomei. E foi até há pouco. E parei porque já não conseguia mais. Fico impaciente, quase em estado de alienação, à beira de um ataque de fúria. 

Todos os anos pelo Natal gosto de oferecer fotografias à família toda. Mas, como sempre, deixo a selecção para a altura em que não posso postergar mais. E então, se quero escolher as melhores -- e começo sempre por ter essa aspiração -- tenho que rever muitas, muitas. Milhares. Não acabam. Forço-me a fazer uma selecção criteriosa mas, quando se está a ver fotografias durante horas, a capacidade de raciocínio esbate-se à medida que o tempo passa. 

Mas é uma coisa extraordinária pois, quando existem crianças, durante um ano tudo neles muda. O bebé era muito bebé e agora é um traquinas. Dois dentinhos, depois vários, cabelinho pouco, depois cabelinho rasinho, depois uns caracolinhos lindos. Gatinhava e agora corre e salta. Um espertalhão, cheio de autonomia. A menina, numa altura, estava completamente desdentada, noutra vez estava toda pintada, a cara era a de uma gatinha, e estava aborrecida nesse dia. Agora já tem uns dentes grandes e continua linda. O mano do meio umas vezes está com o cabelo todo rapadinho, outras a tocar a guitarra que era do pai, os outros a ouvirem com atenção, outras a jogar futebol, a fazer grandes defesas. E os outros meninos, os primos. Um ainda era muito menino e depois já ficando rapazinho, cada vez mais bonito, meu primeiro menino, o que abriu no meu coração o caminho a todos os outros. E o mano desportista, grande, já mais alto que a prima apesar de uns meses mais novo e já sem muita diferença do mano velho, menino querido, sempre boa onda, sempre amigo de todos. Umas vezes brincam in heaven, outras vezes no parque, outras em volta de uma mesa cheia a apagar bolo de anos, outras no jardim da minha mãe, ela toda contente, rodeada de gente alegre e brincalhona. Um ano passado em revista.


E não só eles: o resto da família, outros bebés, outros miúdos e outros graúdos. Tento descobrir bons ângulos de cada um deles. Dizem que sou a repórter da família e que as únicas fotografias em papel que têm são as que dou. Algumas coloco em molduras. Gosto de oferecer molduras bonitas com fotografias em que estejam bem.

E a verdade é que fico contente ao rever todos esses momentos. Mas as pastas com fotografias não param. Não param, senhores. Porque é que tiro tantas fotografias...? Que seca. Chego a um ponto em que deixo de abrir todas as pastas, em que a saturação toma conta de mim, quero lá saber se deixo melhores fora da selecção... Por exemplo, hoje, cá em casa, fotografei-os e acho que algumas fotografias devem ter ficado bem. Mas nem tive ânimo para as passar para o computador e escolher algumas. Já chega, caneco.


E a dose ainda não acabou. Agora que já seleccionei cerca de duzentas, tenho que resolver, uma a uma, quantas faço de cada e a quem as darei. Depois tenho que ir mandar imprimi-las. E depois, quando as for buscar, largas centenas, tenho que separá-las por envelopes, emoldurar algumas. Muito, muito trabalho. Um disparate.

Por isso, chego ao fim de um dia como o de hoje e estou francamente esgotada. É que se a coisa estivesse concluída, o cansaço pelo dia ter-me-ia já passado. Assim, com a perspectiva de haver ainda uma trabalheira louca pela frente, parece que não consigo descansar.

E, por tudo isto -- e a esta hora -- peço que me desculpem mas, creiam-me, estou mesmo incapaz de articular palavra. Gostaria de ter conseguido falar sobre alguma coisa que fizesse algum sentido para quem me lê mas hoje não deu para mais do que isto. Lamento.


E o que me arrelia ainda mais é que gostava de ter falado da entrevista do Michael Ondaatje ao Público.  Gosto muito de ler ou ouvir os criadores -- não para relacionar o que dizem com a sua obra mas porque acho que, na generalidade, são pessoas diferentes, interessantes. Gosto de saber como pensam, como trabalham. Pura cusquice. Mas gostei de ler aquela entrevista e gostava de ter conseguido falar sobre isso pois admiro-o, gosto de o ouvir falar -- e um dos seus poemas é um dos poemas que muito me toca. Nem sei porquê, não sei o que tem aquele poema mas sei que o acho viciante. Já aqui coloquei esse poema algumas vezes e depois de um vídeo com uma entrevista que também vou partilhar, vou colocá-lo de novo.




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As pinturas são de diversos pintores japoneses e eu deveria aqui referi-los um por um mas, se me ponho a fazer isso, adormeço.

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Um feliz dia de domingo

sábado, agosto 18, 2018

Passear à beira-rio, jantar em Cantão.
[E um amor inexplicável]




E, assim sendo, hoje o fim da tarde e a noite foram passadas no bem bom passeio à beira rio, o sol já posto, a temperatura afável, muita gente flanando. Em momentos assim, o tempo parece suspender-se, o vagar parece abraçar as árvores, as silhuetas, os corpos. O entardecer no verão de Lisboa é coisa boa e bonita de se viver. 

Podem os dias ser árduos, tormentosos, complexos que, dêem-me um cair de noite assim, todos os meus problemas se evaporam como que por artes mágicas. Quem me visse e ouvisse, de mim diria que tenho uma vida fácil, isenta de preocupações, que os meus dias são brincadeira de criança. E, se calhar, são mesmo.


Como nós, muitos outros passeiam, conversam, riem. Outros fazem poses, casais fazem românticas selfies. Alguns sentam-se a olhar o rio e a linha do horizonte, outros abraçam-se ou beijam-se, isolados do resto do mundo -- como se para ali, para aquela amena ponta do mundo, tivesse convergido toda a paz do mundo.

Até ali fui encontrar uma conhecida directora-geral que volta e meio vejo na televisão, sempre muito assertiva, e que hoje, por ali, andava perdida, meio pardalita, com um aspecto frágil e solitário. Disse: até me apetece ir dizer-lhe uma palavrinha de conforto. O meu marido disse: havia de ter graça que a fosses chatear. A mulher deve estar à espera de alguém. Não me pareceu. Inclino-me para que lhe tivesse apetecido respirar ar puro em ambiente de liberdade.


Resolvemos ir ao dim sum, gracinhas gastronómicas de que tanto gostamos. Costuma estar folgado, silencioso mesmo quando tudo à volta fervilha. Mas, mal entrámos, percebemos que hoje, ali, o filme era outro. Gente, gente, gente. Salvo a nossa mesa e uma outra com africamos, tudo asiático. Todo aquele amplo salão estava repleto de asiáticos. Não sei se japoneses, chineses ou what. Mesmo as duas salas privadas estavam cheias. Felizmente, lá nos arranjaram uma mesa. Não tinha vista de rio como aquelas onde costumamos sentar-nos mas, em tempos de escassez, não se pode ser esquisito... e conseguir jantar sem reserva nesta noite lisboeta é milagre.


A grande maioria eram mesas redondas. Repletas. E eram só travessas de santola, lagosta e lavagante. Tantas travessonas. Um empregado não fazia outra coisa senão ir ao aquário pescar grandes crustáceos. E as empregadas, sem parar, iam levando marisco de grande porte, enquanto os empregados iam levando Cartuxa que, segundo alguém comentou na nossa mesa, custam 20 euros cada. E vá de levar garrafas. A espaços, a malta de uma mesa levantava-se, todos riam, faziam um brinde e zás: copo abaixo. De penálti. 


E logo outra mesa, como que ao despique, se levantava, e outro brinde. E venham mais cartuxas.

Penso que é escusado dizer que, para o fim, parecia que tínhamos desembarcado em plena Cantão. Conversas muito alto, risos, uma alegria, uma animação, tudo bem regado, homens, mulheres, rapazes, raparigas, tudo num chilreio, numa galhofa. Enquanto nós comíamos, na calminha, os nossos crepes de arroz com carne e mel, a nossa sopinha wantan, os nossos bolinhos também de carne e mel com molho de soja, os nossos raviolis de legumes grelhados, os nossos crepes viatnamitas e outros petisquinhos daborosos, nas outras mesas rolava o tinto, devoravam-se suculentas lagostas e ria-se aberta e ruidosamente.


Observei-os a todos de gosto. Cantão em Lisboa. O ambiente dos bazares, dos restaurantes de rua, aquela boa disposição que parece congénita, inocente, famílias inteiras na maior festança, amigos divertidos. O meu marido contrapôs: tudo já com os copos. Mas o meu marido, apesar de saber dizer de cor e até com uma certa graça, poemas e poemas, desde Camões até aos poetas mais improváveis do romantismo, é um pé em termos de poesia, tão pragmático que até chateia. Portanto, na mesa ninguém lhe deu ouvidos.

Não sei de onde veio toda aquela gente. Verdade seja dita: é a primeira vez que ali vamos jantar. Almoçar, sim, muitas vezes. Mas jantar não. Na volta aquilo é malta daqueles belos hotéis que se aloja ali na zona para arejar a nota no casino e que, à noite, antes de se deslocar até às machines e à roleta, vai fervilhar de animação enquanto se enche de marisco e tintol. Conhecido meu que é dado ao jogo (coisa que a mim me assusta) diz-me que, por ali, aquilo até ferve de chineses endinheirados. Mas não sei. Podem ser simples excursionistas.


O que sei é que, por ali, pela beira-rio, tudo é bonito, tranquilo. Árvores floridas, a calma das águas, o perfume do ar, a suavidade de quem passa. E eu, como sempre me acontece, senti-me de férias, bem comigo e com os outros, confiante, feliz da vida. Problemas...? Quais problemas...? Desconheço. (É tão bom ser uma incorrigível simplória).

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E, não me perguntem porquê, apetece-me agora ouvir um dos poemas de que mais gosto. Mas é um gostar tão inexplicável que me sinto até um pouco constrangida por estar a colocá-lo aqui para aí pela terceira vez apesar de não encontrar explicação para gostar tanto dele. Mas gosto. E quando se gosta de uma coisa ou de uma pessoa de uma forma assim tão orgânica e irracional, não devemos tentar contrariar ou justificar: simplesmente aceitar e desfrutar o prazer de gostar.
(...)
left with no trace
as if not spoken to in the act of love 
as if wounded without the pleasure of a scar.

You touched 
your belly to my hands 
in the dry air and said 
I am the cinnamon 
peeler's wife. Smell me.



The Cinnamon Peeler
de Michael Ondaatje (lido por Tom O'Bedlam)

segunda-feira, setembro 25, 2017

Panorâmico de Monsanto: a beleza e a tristeza da decadência


No post abaixo poderão ver a extraordinária vista a partir do Panorâmico de Monsanto, o primeiro dos três edifícios que visitámos durante este dia de domingo, no âmbito do Open House Lisboa.

Aqui, agora, vou tentar dar uma ideia do estado de triste abandono a que está votado há anos depois de nenhum destino lhe ter assentado bem. 
Fez-me lembrar aquelas mulheres muito bonitas e desejadas, as Marilyns desta vida, que toda a gente acha belíssimas e que, não obstante, não conseguem acertar na companhia, não alcançam uma vida feliz, sentindo-se frequentemente solitárias, mal amadas e tendo, frequentemente, destinos trágicos ou, pelo menos, desoladores. 
Assim o Panorâmico: talvez belo demais, talvez bem situado demais, talvez com uma vista deslumbrante demais, talvez com demasiado potencial. 

E, no entanto, quanta beleza na sua decadência. Abandonado, maltratado, riscado, partido... e cheio de vida impressa nas suas paredes. E tão elegante nas suas curvas, no equilíbrio dos seus volumes, na distribuição entre desníveis e recantos, no balanceamento feliz entre a luz e a sombra. Tão belo apesar de tão sem destino, tão sedutor apesar de tão esquecido, tão promissor apesar de num tão triste estado de acentuado declínio.

O que eu faria com ele se pudesse decidir já o disse no post abaixo. Não há dinheiro? Há. Há sempre dinheiro quando o retorno é garantido. Mesmo em épocas de crise (e estamos a sair dela), dinheiro é o que não falta para bons investimentos.

Não falei ainda de um outro aspecto: o local em que está implantado. No meio da Serra de Monsanto, num dos seus pontos altos, entre arvoredo, frondoso arvoredo. Um local que parece fora de Lisboa. E, no entanto, dentro de Lisboa. Dali deveriam partir caminhos pedonais, caminhos para bicicletas (até caminhos para se andar a cavalo ou de atrelado).

O Panorâmico de Monsando deveria ser um ex-líbris de Lisboa e não a quase ruína que é.


Mas vejam o que os meus olhos viram.

























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Vejo um lugar assim e, apesar de me deixar entusiasmada com tanto que ver e fotografar, sinto pena. Penso que, com excessiva facilidade, se deixam perder preciosidades que, em tempos, alguém sonhou e desejou. Penso que se deixam perder oportunidades que, certamente, outros agarrariam e estimariam. Que se deixam perder ideias, riquezas, tesouros -- como sempre o fizemos, nós os portugueses que parece que nos desinteressamos da nossa história e das nossas heranças e que, desprendidamente, tudo deixamos esvair por entre os dedos. Perdem-se as memórias e os valores e nem se percebe porque se perdem. E o tempo passa e vai levando consigo quem se lembra dos sonhos que em tempos alguém sonhou. Ficam, depois, apenas frágeis memórias.

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Nem sei se vem a propósito mas apetece-me ouvir:

"What We Lost" de Michael Ondaatje (lido por Tom O'Bedlam)



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Pensava que teria tempo para falar dos dois outros lugares que visitei mas fica para amanhã
(embora um ou outro tema da actualidade me estejam a convocar).
Verei como me organizo.

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E queiram, por favor, continuar a descer para testemunharem as belas paisagens que do Panorâmico se avistam

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quarta-feira, abril 26, 2017

Hugo Soares e João Almeida, a geração rançosa que não consegue tirar o sarro pafioso que se lhes colou à pele.
E a companhia que procuro para limpar o espírito: John Berger, Michael Ondaatje


John Berger, “Ways of Seeing”

No vídeo abaixo, John Berger conversa com Michael Ondaatje e o que eu gosto de ouvir falar assim. Podia passar dias a ouvir falar pessoas como eles. Quanto mais a poluição me cerca, mais eu preciso de me isolar junto de quem usa palavras limpas.

Talvez o mal esteja em mim que não sei fugir para onde não se ouçam os comentadores e os deputados descarados ou os homens e mulheres dos aparelhos partidários velhos e relhos. De vez em quando distraio-me e dou por mim, sem querer, a ver na televisão gente como um tal Hugo Soares do PSD que, qual Kardashian da política, é conhecido por ser conhecido (e tem como currículo o ser do aparelho do PSD e aparecer a dizer coisas que não significam nada ou que, desinspiradamente, tentam reescrever a história) ou o João Almeida do CDS que, por mais barba que deixe crescer, nunca perde o ar de bebé chorão que não tem um uma ideia fresca naquela cabeça.


Cansa-me tanta falta de qualidade. Cansa-me a Cristas que não tem vergonha e tenta desesperadamente falar por parangonas, cansa-me a Leal ao Coelho que é um dos poucos animais sem vida que o PSD ainda arrasta juntamente com um póstumo Passos Coelho, cansa-me toda essa gente que não percebe que não acrescenta nada, que deslustra a política.

Por isso, agora, a ver se me animo, tenho estado entretida a ouvir gente inteligente. É tão bom ouvir ou ler as palavras de gente inteligente. 

Deixem que partilhe convosco.

John Berger conversa com Michael Ondaatje


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Michael Ondaatje: a música nas palavras



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quinta-feira, abril 14, 2016

A mon seul désir


Depois de, no post abaixo, ter falado no Dia do Beijo pela falta do qual não dei (mas sem problema -- porque beijos há sempre que um apaixonado quer), aproveito a boleia e vou dar um passeio pelo tema. Mais ou menos.

Com vossa licença.




As mulheres deverão falar de roupas, de perfumes e sapatos, de arrumações e de penteados, de frustrações e desencantos, de jardins ou dos filhos. As mulheres deverão dizer mal dos homens ou deverão fazer humor umas com as outras, irmãzinhas da internet, almas gémeas para o resto da vida. De vez em quando falarão de livros, da espessura dos personagens, compararão escrevinhadores, retribuirão conselhos. Mas, geralmente, deverão brincar com personagens blogosféricos, desejavelmente machos alfas, elas mocinhas excitadas, lolitas après la lettre. Poderão ainda soltar uma solidária lágrima na mão de um ou outro que se faça de sensível ou deixar conselhos ou risos feitos de letras, muitas letras, na caixa de comentários de uns ou outros, consoante uns ou outros simulem uma ou outra situação.

A uma, em particular a uma, tolerar-se-á que fale do corpo inteiro e das ansiedades da vida. A outras achar-se-á graça que simulem ser livres no verbo e licenciosas nos hábitos mas, lendo-se, logo se percebe que aquilo é muita prosa e pouco amor, ou pouco mundo (que vai dar quase no mesmo). De resto, as mulheres deverão ser figurinhas alinhadas, bem comportadas, bem arrumadas junto à mediana. E, se não for isso, as mulheres desalinhadas arriscar-se-ão a ingressar no indistinto exército das mulheres sem cabeça, sem saber, sem querer.

Pois bem. Não aqui.

Aqui mora uma mulher que é mulher de corpo inteiro, uma mulher que não rejeita nem ignora nenhuma parte do seu corpo, do seu espírito, da sua vontade.
Por isso, meus Caros, vamos lá.


A mulher despiu-se. Ia tomar banho. Viu-se ao espelho. Sorriu. Tinha tirado a maquilhagem, tinha apanhado ao de leve o cabelo. Estava nua em frente de si própria. Com que olhos os outros a vêem quando a olham e ela vestida, com o seu 'costume'? Tentarão imaginá-la assim como está, nua?

Encostou-se à parede e deixou-se ficar a adivinhar-se. Os seios pequenos, as ancas generosas. O olhar malicioso. O gosto pela sedução. A mulher conhece-se.

Entrou  na banheira, a água lavou-a, a água percorrendo o seu corpo maduro, o seu corpo de mulher muito amada. 

Depois saíu, de novo em frente do espelho. O aquecimento sabe-lhe bem, o jacto de ar quente varrendo-lhe o corpo. Tão bom.

Então ele entrou.

Ela protestou, 'Abre a porta sem pedir licença... Além disso, entra ar frio. Não devia'. Ele disse: 'Protesta sempre'. Ela respondeu: 'Pois, estou aqui a arranjar coragem para pôr um creme, o creme está mais frio, e você entra, ainda me arrefece mais'.

Então ele diz: 'Vá, diga lá: onde é que está o creme?'. Liga o aquecedor de parede, encosta o creme para que fique quente e começa a tirar pequenas porções, a passar o creme pelo corpo da mulher. De vez em quando aproxima-se mais, torna-se abusador. Ela zanga-se: 'Oi! Que é lá isso? E esse profissionalismo...? Ai.'. O homem diz que é muito profissional, que ela já vai ver, que esteja calma.

Ela sorri, baixa o tom de voz, diz que sim, que ele lhe mostre. E ele mostra - cada vez melhor.

Então ela diz: 'Mas isso qualquer um faz.' Ele continua a passar o creme sobre o corpo da amada. Ela insiste: 'Um massagista ao domicílio... e só faz isso?'.

Ele diz que pode fazer mais. Ela diz 'Então vá, faça'.

Ele fala-lhe, então, naquela fotografia que antes tinham estado a ver. ´Desde que eu não caia'. Ele responde, a voz segura, ''Não vai cair. Vai subir ao céu' e começou a preparar as cordas. 


Quando ela estava assim, mas não tão alta, ele aproximou-se, encostou os lábios à sua pele, passou-lhe as mãos por todo o corpo, aspirou o perfume que dela se soltava, e disse, sussurrando. 'Gosto desse creme, a pele fica macia. E cheira bem, tem um toque de canela'. Ela, então, disse que sim, e sorriu. Depois, com malícia, disse que as especiarias tornavam o seu corpo mais apetitoso, ele que experimentasse. Ele obedeceu, aproximou-se ainda mais. Ela fechou os olhos e pediu 'Mas espere, ainda não, ainda falta uma coisa'. Ele protestou 'Mau...'. Ela não cedeu 'Falta, sim. Baixe o som à música'. Ele baixou. E ela, então, acrescentou 'Baixinho, bem baixinho, ciciando, a voz rente à minha pele, diga-me um poema'. Ele disse 'Ah, já cá faltava. ...Agora?'

Ela, firme 'Agora'.  Ele rendeu-se 'Vá. O que é que eu não faço por si...? Qual?'. Ela, de olhos fechados, disse: 'O que quiser. A votre seul désir'.

E ele disse. 'The cinnamon's peeler' enquanto ela se balouçava, perfumada e disponível. 


Depois cheirou-a. Longamente. Com vagar.

No fim, com cuidado soltou-a, pegou-a ao colo. Abraçada, ela aninhou-se.

Depois, irónica e suave, disse-lhe: 'Olhe, esteve bem. Hei-de contratá-lo mais vezes'. E ele disse: 'Obrigado. Ainda bem que correspondi. Mas espere, ainda falta uma coisa.'. Ela riu-se 'Ainda...? Puxa...!'. Ele beijou-a na boca. Depois disse: 'É que hoje é o Dia do Beijo'.

E ela, então, disse, 'Ora bem, assim sendo, chegue-se que agora é a minha vez'.

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As fotografias que aqui puderam ver e que me inspiraram são de Nobuyoshi Araki e fazem parte de um conjunto de 400 que vão estar patentes na exposição

Araki -- Musée Guimet, Músée National des Arts Asiatiques, em Paris, disponível  desde este 13 de Abril até 5 de Setembro 2016

Lá em cima, o violoncelista russo Vladimir Tonkha interpreta uma Chaconne de Tommaso Vitaly 

De novo trouxe aqui o poema de que tanto gosto,"The Cinnamon Peeler" de Michael Ondaatje (lido por Tom O'Bedlam).
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E, caso estejam para aí virados, queiram, por favor, descer até ao post seguinte onde falo de beijos e do que importa nesta vida onde tantas vezes se esquece que todo o prestígio do mundo não vale uma noite de amor.