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segunda-feira, outubro 31, 2022

Segredo para um coração feliz

 


As romãs estão grandes, pesadas. Tenho que as ir apanhando apesar de a casca ainda não estar bem tingida. Como estão tão grandes e pesadas, a casca de algumas abre e vão caindo bagos. Outras tombam e rebentam na queda. Mas já estão boas. Levei outra vez à minha mãe. Disse que ia dar uma grande ao meu tio. Fui agora pesar uma delas para não escrever aqui uma coisa fora da realidade. Pesava 538gr. 

De manhã, ao pequeno-almoço, junto bagos ao abacate, ao muesli e ao kefir. Ao almoço ou o jantar junto bagos à salada. Gosto bastante. Dão frescura e crocância. Comer só romã não tem muita graça, acho. Mas misturada é uma bela mais-valia.

As laranjas também vão caindo. Ainda pouco maduras, impossíveis de aproveitar. A casca também abre e caem deixando os gomos desfeitos no chão. Se calhar estão desabituadas de tanta água da chuva.

Com as limas a mesma coisa mas caem intactas. Uso-as para fazer chá e para temperar em vez do limão. Gosto muito de limas, são sumarentas, cítricas e com um toque a canela.

O jardim está muito verde, viçoso, húmido, e todos os dias temos que ir à socapa inspeccionar a aparição de mais cogumelos. Rebentam e crescem de um dia para outro. Há-os brancos, pequenos, pé filamentar, alguns mal se vêem, parecem pintinhas brancas, mas também os há castanhos, grandes, gordos. E há uns muito dissimulados, espessos como madeira, colados aos troncos. Temos sempre medo que o cãobeludo lhes chame um figo e não fazemos ideia do efeito que produziriam.

E hoje à tarde finalmente pusemos umas novas iluminações solares que, no outro dia, comprei. 

Uma é uma grinalda com bolas brancas de papel que, quando se iluminam, ficam com uma cor quente, bonita. A outra é um projector com sensor. E a terceira, a mais controversa, é uma fita daquelas que se ilumina em pontinhos corridos. 

O meu marido, se, em geral, tende a ter mente aberta, nestas coisas é assaz conservador. Conservador e minimalista. Isto de eu querer ter grinaldas ou fitas luminosas no jardim tira-o do sério. A mim não. Sou toda a favor de energias renováveis; e ter luzinhas que se acendem à noite depois de terem acumulado energia durante o dia parece-me muito bem. Acabei eu por colocar quase sozinha a grinalda e a fita pois ele teme que o jardim fique a dar-se ares de natal. Não gosta, é avesso a excessos, a pimpineirices, a gracinhas. Não gosta nada. Sobriedade é o seu nome do meio. Como não adoptei para mim nenhum dos seus nomes, sobriedade comigo não consta. Pelo menos, nestas coisas.

A grinalda ficou junto à vedação no terraço da cozinha. Assim há sempre luz. E acho que até fica com um ar bem bonito e acolhedor. O projector foi pacífico, ficou a apontar para a porta lateral e foi ele que o pôs.  O que deu luta mais a sério foi a fita das luzinhas. Quando comprei, pensei que fossem luzinhas brancas e só quando cheguei a casa é que, vendo a embalagem, fiquei na dúvida se não serão luzinhas às cores. Resolvi ir trocar. Ele disse que não era preciso, que se poriam pelo natal. Mas eu acho que não, se não é para trocar, vamos esperar pelo natal porquê? No corredor lateral que dá acesso ao jardim das traseiras, perto da porta do lado, achei que se poderia colocar no muro, entre floreiras suspensas. Creio que nem se vê da rua. Nem assim ele queria pôr. Pus eu. Consideremos que está ali a título experimental. Se se vir da rua e for feio, retiro e logo se vê. Mas agora quero ver como fica. As outras, entretanto, já estão acesas. Presumo que o botão da fita não ficou ligado. Amanhã tratarei disso.

Tenho ainda a reportar que enquanto dava atenção ao francês que a minha menina linda estava a praticar, o mais novo foi para o meu computador. Disse que ia jogar ou ver vídeos. Deixei, claro. Passado um bocado vi-o a teclar furiosamente. Perguntei o que estava a fazer. A irmã disse: 'está a ver se descobre o teu código de acesso'. Fui ver. O teclado bloqueado. Tanto para mexeu e carregou que o teclado bloqueou, não tugia nem mugia. E foi ela, sozinha, que resolveu tudo. Apenas fui solicitada para escrever a password de desbloqueio de ecrã no teclado virtual que ela invocou, indo depois às definições de teclado.

Gera-se sempre uma tal dinâmica que cada um chama e mexe para seu lado. Quando damos por ela já fizeram das suas. O meu marido diz: deixa-los mexer em tudo, fazem o que querem, por isso não te admires. O mais novo, então, é exímio em deixar-nos às escuras. Já por duas vezes nos deixou sem conseguir ver televisão tal a jardinagem que fez nos comandos da box ou da televisão.

Em contrapartida, a irmã está cada vez mais decidida: ela põe a mesa, ela serve os pratos, ela arranja a comida ao irmão mais novo e, no fim, quer ser ela a lavar a louça. E lava tudo com rapidez e perícia, mesmo tachos e frigideiras. E acelera-me para eu ir limpando e arrumando ao ritmo a que ela lava. Ao lanche também quis ser ela a tratar de tudo e, quando resolveram querer ovos mexidos, quis ser ela a fazê-los. Batidos com água, conforme aprendeu com o pai.

Pelo meio, houve pinturas de halloween e não apenas fui a pintora como eu própria acabei com cara de bruxa. Os trabalhos de casa que eram para ser feitos e o estudo que era para ter acontecido ficaram um pouco comprometidos, claro. Não consigo arranjar determinação para os forçar ao que quer que seja. Já dei para esse peditório. Agora é a vez dos pais deles.

E este domingo de manhã, aproveitando a aberta do bom tempo, fomos passear e apanhar sol para a beira-mar com a minha mãe. Muita gente, muita vida. As pessoas começam a curtir o ar livre. Adoro isso. E a minha mãe, toda jovem e fresca, lesta na passada, conversadora e animada, também gosta.

Há bocado, ao fim da tarde, já hora nova, fui para o terraço onde habitualmente nos juntamos para tomar as refeições ao ar livre ou conversar. Fui ver anoitecer, ver as luzinhas solares (que ali estão desde o verão e que, na altura, também deram bastante luta) começarem a iluminar o espaço. Estava sozinha com o computador a ver se via o The Good Doctor. Mas distraí-me e não vi. Fiquei-me pela contemplação do momento. Um pássaro passou por ali. Silêncio. Anoiteceu. Soube-me tão bem estar ali, uma tranquilidade total. Pensei que me sinto bem, que os meus se sentem bem -- e que não peço muito mais que isso. Pensei também que, se um dia me der para tentar meditar, naquele momento em que é suposto pensarmos em situações ou lugares aprazíveis, vou pensar em instantes assim, instantes de serenidade e paz.


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Tenho pena que o vídeo abaixo não tenha legendas em português. A experiência de vida de Lize Venter é impressionante e um exemplo. Depois de uma infância marcada por um sofrimento obscuro, violada por um irmão mais velho, eis que agora consegue o apaziguamento que lhe permite ter o coração feliz. Muito bonito.

Secret to a happy heart - Finding Wonderland

Trigger Warning - This film contains reference to sexual abuse, which may be triggering for some viewers.  If you have been affected by a similar issue and you need someone to talk to, please reach out to an organisation or individual near you for help.  Take care.

“The secret is to surround yourself with people who make your heart smile. It’s then, only then, that you’ll find Wonderland”

Our relationships teach us about so much more than the hearts of the ones we love - they teach us about ourselves.  Relationships show us how to love and be loved, as well as who we want to be in life and who we don't. 

Surround yourself with those who bring out the best in you. The ones who not only want to see you smile but also try to make you smile when you’re down. The ones who try to make your day brighter. The ones who know your value and your worth and remind you of it. The ones who help you bloom.

And have the courage to be a good friend to those who choose you.


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Nesta noite de eleições brasileiras, as imagens são pinturas de Tarsila do Amaral e vêm ao som de Choro N° 1 (Heitor Villa-Lobos) pelas mãos de Turibio Santos

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Nota: Obviamente ficaria angustiada, desgostosa e preocupada se ganhasse o troglodita do Bolsonaro. É um Trump em versão ainda mais abestalhada e ainda mais ignorantão. Uma calamidade para o Brasil e para a humanidade. Foi, pois, com alívio que vi que foi derrotado. Que não volte. Que não faça estragos nem alimente ódios agora que se foi.

Mas tenho que ser sincera: não fico especialmente feliz com a vitória de Lula. Acho que o Brasil mereceria melhor. Não percebo como um país tão grande, tão incrível e diverso como o Brasil não consegue melhor do que um Lula para se posicionar contra o obscurantismo populista, violento, grosseiro e perigoso de um Bolsonaro. 

Mas, enfim, é o que é. 

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Uma boa semana a começar já nesta segunda-feira
Saúde. Serenidade. Felicidade. Paz.

quinta-feira, agosto 27, 2020

Certamente um salsifré desconjuntado




Só para explicar porque é que hoje isto não vai dar: adormeço de minuto a minuto. Vou ter que me deitar antes de conseguir escrever coisa com coisa. 

O dia foi dos bravos. Primeiro não conseguia fazer o upload do ficheiro para o portal da AT. Tinha onze megas e aquilo só permitira até cinco. Zipei, comprimi e o escambau e só foi até aos seis e tal. Aí comecei a moer a paciência a quem me poderia valer, nomeadamente o meu filho e a minha nora que tinham fotografado todos os documentos antes de os fundir num pdf. Mas eles também não conseguiam reduzir o suficiente. Isto para não irmos para uma repartição. De resto, ir só com marcação e já atirava para tarde de mais. Horas nisto. Ah, e isto porque tinha verificado que o que tinha feito no outro dia não estava registado. Liguei para saber. Horas para que me atendessem... e não atenderam. Hoje ligou a minha filha e ao fim de não sei quanto tempo lá apareceu alguém do outro lado que explicou como fazer tudo e, no fim, verificar que estava feito. Finalmente, embora excedesse uns cagagésimos, lá passou. E confesso: um peso que me tiraram de cima. Se há coisa que me perturba é saber que tenho coisa de responsabilidade para fazer, prazo a correr e, por isto, aquilo ou o outro, ver passar o tempo e não conseguir.

Pelo meio, o carro. Não contei na altura -- porque na altura foi tamanha loucura que não dava para tudo, muito menos para contar --- que, no primeiro dia da mudança, se avariou um carro. Era suposto, quando saísse o primeiro camião, eu ir antes para lhes abrir a porta da casa nova e os orientar dizendo qual o lugar de cada coisa, enquanto o meu marido ficava na casa antiga a orientar a carga do segundo. Só que ele, enquanto durava o carregamento do primeiro camião, resolveu ir adiantar serviço e ir levar sacos pejados de tudo e mais alguma coisa, o que achámos que mercia cuidado especial, para a casa nova. E, à vinda, o carro deu sinal de avaria grave e que parasse em segurança. Portanto, podem ver: momento mais inoportuno não podia haver. Por volta da hora de almoço, ele na oficina, dizem-me os homens que a camioneta já se tinha posto a caminho. E eu sem conseguir contactá-lo. Portanto, vi-me na situação de deixar a casa de portas abertas e coisas de valor lá dentro. Portanto, a confusão que foi não vos digo nem vos conto. Nesse dia tive que pedir ao meu filho e família que me viessem buscar e levar de boleia até à casa nova. Quando chegámos, como é bom de ver, já eles lá estavam com a camioneta à porta. Como entretanto houve réplica da primeira leva, depois uma little segundinha e arrumações pelo meio, fomos andando mesmo assim ou usando o outro carro que não é tão prático para o efeito. Um destes dias, já esta semana, liguei para a assistência da marca. Como está na garantia, disseram que um técnico haveria de me contactar. O técnico contactou e disse que, face ao que era, nem levar à oficina. Era de reboque e era já. E lá foi. O pior foi saber quando estaria pronto. Muito mau. Depois de muitos telefonemas lá disseram: a partir das cinco. 

Aproveitámos para ir à casa velha buscar mais cenas: três quadros que tinham ficado para trás, um relógio de parede, talheres, pratos de cozinha, roupa.

Quando chegámos aqui a casa, foi o do costume: depois de estar tudo mais ou menos limpo e arrumado, chegamos com mais uma dúzia de sacos grandes cheios de coisas e lá voltamos ao mesmo: mais coisas para arrumar.

E foi aí, ao pretender guardar um papel importante junto dos outros papéis importantes, que não encontrámos a pasta com papéis importantes.

Lembrávamo-nos bem: havia uma pasta com papéis verdadeiramente importantes e uma outra com recordações. E sempre dissemos: temos que ter cuidado com isto, estes papéis não se podem perder. Dias nisto. E hoje apareciam todas as pastas com toda a espécie de documentos excepto os verdadeiramente importantes. Corremos tudo. Às tantas já só me apetecia chorar. Um desespero. Uma pessoa puxa pela cabeça, revira tudo... e nada. Até que pensámos que, na volta, lá tinha sido deixada. Às dez da noite resolvemos lá voltar. Corremos tudo -- e aproveitámos para trazer mais uma ou outra coiseca... --  e da porcaria da pasta sem sinal.

Pensei: terá sido no dia da primeira leva quando estava na eminência de ter que deixar a casa aberta e os homens entregues a si próprios que, antes de sair, peguei em coisas verdadeiramente importantes e as guardei? Lembrámo-nos: usei um saco de desporto encarnado. Na volta a pasta ainda lá está. Quando regressámos à casa nova, fomos logo ver esse saco. Vazio. Pensámos que teria ido junto com outras coisas. Talvez enfiado em prateleiras altas. Escadote. Nada. Desistimos. Cansados, exaustos, impacientes, já embirrando um com o outro por tudo e por nada. Fomos ambos tomar banho. Jantámos perto da meia noite. Entretanto, ele lembrou-se que pode ter tirado os documentos dessa pasta e misturado com outros numa caixa. Aparentemente acertou pois, antes de se ir deitar, já veio mostrar-me uns quantos. Parece que ainda não encontrou alguns mas a esta hora já não consigo querer saber. Até ver ainda não se perdeu nada mas isto de conseguirmos guardar memória de tudo o que fazemos é uma loucura. Eu até com coisas mais simples: as chaves de casa, o telemóvel, o comando não sei do quê, a fita métrica. Todo o santo dia a perguntarmos um ao outro se viu isto ou aquilo. Isto dá conta da cabeça a uma pessoa.

Agora são quase três da manhã. Já dobrei duas carpetes para as levar esta quinta-feira para serem trocadas por umas clarinhas que estão in heaven. Não sei a que horas zarpamos. A minha filha, que se nos vai juntar com os meninos, diz que só vai a seguir ao almoço. Mas temos mantimentos a comprar pelo que vamos forçosamente antes. A ver se consigo descansar, caraças, que isto não tem sido moleza, não.

Também passei o dia no rescaldo das grandes dores que tive há uns dois ou três dias: agora dói-me mas é dor suportável, natural em quem fez tanto esforço. Mas querem crer que hoje, que voltei a andar para aqui e para acolá, a arrumar coisas para trazer e, forçosamente a carregar pesos (que é o pior), parece que até estou melhor? Vá lá, ao menos isso.

Mas isto para dizer que, com este lindo programa de festas, cheguei aqui e adormeci e, mesmo agora, escrevo uma, adormeço durante duas. Acredito que o texto esteja um salsifré, engatado e esburacado, com bocados sem sentido e com erros a dar com um pau. Mas não dá para mais ou melhor. Bem sei que deveria era ter ido já dormir: mas tenho isto de gostar de estar aqui às quinhentas da noite a deixar os dedos voar sobre as letras.

Não consigo, uma vez mais, agradecer individualmente os comentários ou os mails mas a resposta a um é sim, aconteceu, aconteceu durante aquele período em que nem pudemos confortar-nos e apoiar-nos mutuamente nem despedir-nos condignamente -- e agradeço a simpatia. E era bom que fosse uma raposinha, sim, Ana, e a Jeitinho agradece a sua sempre presente gentileza. E obrigada pela app que acredito que me seja preciosa para identificar as flores, arbustos e árvores. E obrigada pelo bom conselho de reencaminhamento do correio, dica preciosa. E um obrigada especial a quem curte as suas casinhas e, mesmo de longe, lia sobre as minhas andanças; e um outro à menina-bonita, Maripa de seu nome, sempre com uma palavra de solidariedade e simpatia. E um dia farei uma reportagem, sim, talvez não a planta mas um conjunto de pecinhas de um puzzle. E hoje fui também comprar um cartão para a máquina pois quando quis fotografar as flores descobri que o cartão se tinha esgotado. A Lei de Murphy, quando lhe dá para se auto-demonstrar, é um ver se te avias. E, com vossa licença, agora é que vou mesmo dormir.

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Pinturas de Tarsila do Amaral, ao som do Dueto, com Chico Buarque e Clara Buarque

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E votos de um dia feliz. Aproveitem-no bem, ok?

sábado, abril 27, 2019

Que mundo é o de Sophia?
[Sophia, a robot humana]





Já não gotejo. Em contrapartida, estou como se estivesse sedada. Um comprimido por dia, ainda por cima de ínfima dimensão, e fico assim, neste estado. E esta noite vou tomar a terceira dose a ver se deixo de estar congestionada como ainda estou. Quero voltar ao normal. Nem tenho dormido com o vidro da janela completamente aberto pois receio que o frescor da noite, que me sabe tão bem, me faça pior. Tenho ideia que é à terceira que isto se cura. Não tive febre pelo que deve mesmo ser coisa de nada, só resfriado, influenza benigna, coisinha de gente retardada que se constipa quando os outros já curaram meia dúzia. O pior é que me diminui a energia a um ponto que não se imagina. Ainda eu estava apenas a sentir-me doente, sem ter tomado nada, e já estava inerte. Imagine-se agora, com um comprimido letal por dia. Para que se perceba: cheguei a casa e nem me despi. Vá lá, descalcei-me. Mas vim para o sofá com a roupa do dia. Quando dei por mim, estava o meu marido a perguntar-me o que jantávamos. E eu a querer acordar para lhe responder e só a adormecer. Quando o ouvi dizer que podíamos comer atum lá arrebitei: fiz um esforço e, ao fim de um bocado, consegui abrir os olhos. Arrastei-me até ao quarto, troquei de roupa e lá consegui chegar à cozinha. Liguei o forno no máximo. Descongelei salmão. Num tabuleiro coloquei pera aos quartos, depois os lombos de salmão em cima, temperei-os com sal, orégãos e azeite e levei ao forno. Nessa altura, baixei a temperatura. 

Regressei à sala e adormeci de novo. 


Acordei com ele a chamar-me. Felizmente o salmão não ficou esturricado. Mas também não se queimaria pois deixei a temperatura nos 150º. Quanto muito, secaria. Mas não secou. 

Lá fui. A mesa estava posta. Havia também arroz e salada. Comi um poucode salmão com salada. Também consegui lavar os pratos. Mas, mal cheguei de novo ao sofá, voltei a adormecer.  Já passava das dez, acordei de novo: era ele a perguntar-me se já tinha falado com os filhos. Liguei ao meu filho e, logo a seguir, tocou o telefone e era a minha filha. Não sei se voltei a adormecer mas sei que acordada não estou.

E agora aqui estou. 


Porque será? Porque estou aqui? É esta coisa de os meus dedos quererem dançar no teclado,  dançar mesmo que seja sozinhos, escreverem palavras que nem eu sei o que vão ser. Pois que seja, não me importo. É como se fosse outra, alguém que não sei quem é e que escreve sem me pedir autorização. Só sei o que escreve quando vejo escrito.

E isto faz-me pensar. Deve ser o primeiro pensamento que tenho hoje: e se eu não fosse eu mas 'alguém' que tivesse sido clonado e que se fizesse passar por mim? 'Alguém' não: uma coisa.

Pensamento meio delirante.

E se, num salto quântico, o tornar completamente delirante, vou parar lá onde todos os caminhos vão convergir.


Ao mesmo tempo que temo o uso perverso e desregulado da inteligência artificial, atrai-me muito. Pode ser uma ajuda potentíssima. E pode ter utilizações múltiplas e cada uma mais insólita que a outra.

Estive a ver a Sophia a conduzir uma sessão de meditação.

Cada vez vão humanizando mais o objecto. Sorri, tem rugas de expressão, semicerra os olhos, abre-os, diz piadas. Não tardará o dia em que conversará connosco de uma forma tão inteligente e sensível que preferiremos a sua companhia à dos humanos. Virá o dia em que as pessoas se apaixonarão pelos seus robots. O Her deixará de ser ficção. A inteligência das coisas será cada vez menos artificial. 


E chegará o dia em que poderei accionar uma opção no computador ou numa pequena coluna em que eu digo aqui uma coisa e, do outro lado, um robot escreverá outra ou eu direi, com esta minha voz, alguma coisa e, do lado de lá, daí, chegar-me-á alguém que lerá os vossos pensamentos e mos dirá com uma voz estranhamente humana. E quando eu disser maluquices ouvirei alguém a rir ou a querer corrigir-me. A emocionar-me. Chegará o dia. E não faltará muito.

O mundo está a caminhar rapidamente e quando percebermos que estamos a ser ultrapassados... só espero que não seja tarde demais.


Mas, enfim, não é dia para conversas dessas. Precisaria de ter grande parte dos neurónios activos e o que se passa é que nem um, único, deve estar em condições.

Vou, pois, introspeccionar-me de olhos fechados, a pensar na lua a banhar o rio, esteja ela como estiver, loura, esbelta, gélida, esquálida, promissora, fugidia. Tanto faz. O rio é tolerante, sempre uma boa cama.


Mas, antes, vou partilhar convosco um vídeo em que se vê como Sophia tem aprendido umas coisas. Jimmy Fallon até fica desconcertado.  Até já canta, ela, a coisa.


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sexta-feira, maio 06, 2016

António Guerreiro e O Meças de J. Rentes de Carvalho.
E outros escritores, outros críticos literários, outros livros.
E uma Missa Luba e o Grupo Corpo.
E a subjectividade dos gostos e desgostos.


Depois de poemas que me tiram do sério, coisa a meio caminho da anedota ou do desalento, conforme o caso, ficou a apetecer-me falar de prosa. Prosa prosuda. E vem isto de que o António Guerreiro, crítico literário que eu respeito e aprecio, inteligente, de uma lucidez tantas vezes cortante, deu uma desanda pouco meiga no último livro do Patrão da Barca, J. Rentes de Carvalho de seu nome, autor do dito O Meças.


Pois não vou tirar teimas nem meter-me por aí que a minha sapiência é pouca para tão altas cavalarias e, ademais, ainda não li o livro.

O que posso dizer é que, se calhar porque a idade anda a dar cabo da minha bondade ou paciência, já não são muitos os livros-romances que me prendem do princípio ao fim sem que a vontade de saltar o muro apareça para me tentar. Ou é a história que me soa frouxa ou é a escrita que me parece não ter a tessitura da verdadeira literatura. Ou, se calhar, sou eu que me estou a tornar de má boca (literária).

Guto Stresser


Dantes devorava livros como quem devora pãezinhos quentes pela manhã, presa ao enredo, enlevada pela fraseologia, pela semântica, pelo trabalho bem acabado, sem alinhavos à vista (como o ALA gosta de dizer nas entrevistas). Agora, que perdi a inocência dos verdes anos, minha nossa, quase tudo me parece pão de véspera, culinária de brincadeirinha. Muita gente metida a escritora, muitas vacas sagradas, muito ungimento. E, eu, cansada, olho para a obra e não lhes sinto a mão, parece que não detecto arte ou aquele je ne sais quoi que faz a diferença. Escritores portugueses dos que ainda escrevem, então, poucos, poucos.

Emiliano di Cavalcanti
Ultimamente, para aí nos últimos meses, que me lembre, de romances encantei-me com alguns mas não de cá. John Williams com o Stoner e o Butcher's Crossing, Jean Giono com O Grande Rebanho. Veja-se bem o que recuei. Também Mathias Énard com o Fala-lhes de Batalhas, de Reis e de Elefantes, este recente.

Como tenho dito, agora prefiro ensaios, cartas, diários, entrevistas, apontamentos. Parece que a escrita me soa mais genuína, que se alcança melhor a alma (mas não me perguntem: a alma de quem?) e a arte de escrever parece estar mais limpa.

Quanto aos críticos a coisa também está desengraçada: muita cagança, muita cátedra e pouca vida. Ou sou eu que não os acompanho devidamente. Dantes lia o Rogério Casanova mas tornou-se tão egocêntrico que, em vez de falar dos livros, só falava dele próprio. Gostava de ler a Ana Cristina Leonardo ou o Pedro Mexia mas como deixei de ler o Expresso agora não sei como estão. Aliás, a ela já quase lhe tinham tirado o pio, o que lamentei. O José Mário Silva não apreciava, nunca vi ali verdadeiro rasgo. O Eduardo Pitta escreve em jornais que não leio, nem sei como são agora as suas críticas. Aliás, também já não compro a Ler. Aquilo já não me interessava. E o António Guerreiro escreve no Público e eu não raramente leio o Público. É o que digo: ando arisca, um dia destes hiberno, fujo do que as outras pessoas gostam, deixo de saber de que falam quando falam da actualidade. 


Mas o que estou a dizer não tem a ver com o tema: como disse, sobre a contenda referida que fale quem leu o livro que eu cá não gosto de falar de cor nem sou de clubes ou religiões e, por isso, não vou dizer se o António Guerreiro se passou e embarcou nas suas próprias palavras ou se o Mestre da Barca desta vez não chegou a bom porto.
Seja como for, não gosto de ver violência nas palavras, especialmente quando dirigida a trabalho honesto. Que eu seja virulenta quando falo do láparo parece-me compreensível pois acho que o Passos Coelho deu cabo da vida de parte da população portuguesa e comprometeu muito do futuro do país; mas já me parece desajustado que se invista com agressividade e pouca elegância contra quem se afadiga a escrever, fazendo-o de gosto e não devendo nada a ninguém.
Emiliano di Cavalcanti
Mas, porque não li o livro, avanço na conversa e, se me permitem, desloco-me de novo para territórios mais gerais.

E uma coisa vos digo: por vezes tenho saudades de quando pegava num daqueles brasileiros que me prendiam a atenção da primeira à última palavra. Tenho ali uma estante com umas prateleiras deles. Era eu pequenina e um dos meus tios solteiros, que era todo dado às literaturas, andava a ler 'Olhai os lírios do campo'. Andava entusiasmado, falava muito no livro. Mais tarde, eu já adolescente, foi um dos que li. Mas não sei porquê, talvez porque já vinha com a cabeça feita, o livro não me trouxe uma grande novidade. Mas li outros dele e do Jorge Amado, do Guimarães Rosa, do Gilberto Freyre, do José Lins do Rego -- traziam-me mundos de longe, vozes cantadas, expressões muito de gente humilde ou transbordando vida, uma sensualidade que nascia da intimidade entre as pessoas e a terra ou o mar. Eu vivia imersa naquele mundo enquanto lia.

Não sei como seria se hoje voltasse a pegar naqueles primeiros livros. Talvez já os achasse coisa pouca. Não sei. Se calhar não, se calhar mantinha-se a sensação de estar a olhar para uma imensa catedral feita de palavras.

Mais tarde vieram Rachel de Queiroz, Lygia Fagundes Telles e o deslumbramento da Clarice Lispector. E a pujança de João Ubaldo Ribeiro. E a salgada, viril e vadia carne de Rubem Fonseca.

E não foram só os brasileiros que me abriram a porta para outros mundos.

Os russos. Ainda hoje tenho presente os dilemas terríveis de O Jogador e a escrita sublime que me consumia as entranhas. Ou os contos do Allan Poe que me arrepiavam, irresistíveis e medonhos. Ou Hemingway que me levava pelos montes, pelos mares, que me tomava nos braços com a paixão com que uma virgem deve ser abraçada. Ou Erich Maria Remarque que me conduzia através da guerra, que me dava a conhecer outros amores, outros horrores. Eu lia e outros mundos vinham até mim.

Inimá de Paula


Agora é raro. Por exemplo, gosto dos corpos suados e da linguagem popular e cubana de Pedro Juan Gutierrez mas a emoção dos primeiros não existiu ao ler o último livro que por cá se publicou. Mas acredito que é capaz de ser meu, o mal.

Geralmente agora o que é posto à minha disposição parece-me fraca história, servida por uma prosa deslavada ou presunçosa. Muitas vezes penso: estarei a tornar-me preconceituosa? Ou apenas mais velha? Será que daqui por uns anos só sou capaz de ler aforismos ou haikus? Quiçá, até, páginas em branco?

Mesmo a Ferrante. Escreve bem, claro. E a história vai, anda, é boa escrita. Mas se me atrai, página atrás de página, ou se me detenho a degustar a elegância da frase, a criatividade da composição? Não. Parece que falta ali oxigénio. Por isso fiquei-me por dois livros. Pode ser que um dia compre os dois últimos. Mas não agora. Cansei-me daquela densidade à qual me parece faltar algum fulgor.

Estava a passear pela internet e vi, na Revista Bula, uma selecção feita depois dos leitores e colaboradores terem escolhido os melhores inícios de livros brasileiros. As escolhas são o que são e sei lá se são os melhores ou se andam, sequer, por lá perto. É tudo tão subjectivo, Mas gostei de ler. Transcrevo apenas alguns.

Tarsila do Amaral

A Lua Vem da Ásia, Campos de Carvalho


Aos 16 anos matei meu professor de lógica. Invocando a legítima defesa — e qual defesa seria mais legítima? — logrei ser absolvido por cinco votos a dois, e fui morar sob uma ponte do Sena, embora nunca tenha estado em Paris. Deixei crescer a barba em pensamento, comprei um par de óculos para míope, e passava as noites espiando o céu estrelado, um cigarro entre os dedos. Chamava-me então Adilson, mas logo mudei para Heitor, depois Ruy Barbo, depois finalmente Astrogildo, que é como me chamo ainda hoje, quando me chamo.

Tarsila do Amaral

O Jardim do Diabo, Luis Fernando Verissimo


Me chame de Ismael e eu não atenderei. Meu nome é Estevão, ou coisa parecida. Como todos os homens, sou oitenta por cento água salgada, mas já desisti de puxar destas profundezas qualquer grande besta simbólica. Como a própria baleia, vivo de pequenos peixes da superfície, que pouco significam mas alimentam. Você talvez tenha visto alguns dos meus livros nas bancas. Todo homem, depois dos quarenta, abdica das suas fomes, salvo a que o mantém vivo. São aqueles livros mal impressos em papel jornal, com capas coloridas em que uma mulher com grandes peitos de fora está sempre prestes a sofrer uma desgraça.

Tarsila do Amaral
(auto-retrato)

Dom Casmurro, Machado de Assis


Uma noite destas, vindo da cidade para o Engenho Novo, encontrei no trem da Central um rapaz aqui do bairro, que eu conheço de vista e de chapéu. Cumprimentou-me, sentou-se ao pé de mim, falou da Lua e dos ministros, e acabou recitando-me versos. A viagem era curta, e os versos pode ser que não fossem inteiramente maus. Sucedeu, porém, que, como eu estava cansado, fechei os olhos três ou quatro vezes; tanto bastou para que ele interrompesse a leitura e metesse os versos no bolso.

Tarsila do Amaral

O Ventre, Carlos Heitor Cony


Positivamente, meu irmão foi acima de tudo um torturado. Sua tor­tura seria interessante se eu a explorasse com critério — mas jamais me preocupei com problemas do espírito. Belo para mim é um bife com batatas fritas ou um par de coxas macias. Não sou lido tampouco. A única atração que tive por livro limitou-se à ilustração de um tratado de educação sexual que o vigário do Lins fez o pai comprar para nosso espiritual proveito. Só creio naquilo que possa ser atingido pelo meu cuspe. O resto é cristianismo e pobreza de espírito.


Tarsila do Amaral
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Grupo Corpo - Parabelo


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Lá em cima era Antonella Ruggiero interpretando "Kyrie" (Missa Luba)

As imagens não têm nada a ver mas, uma vez que falei bastante de brasileiros, apeteceu-me ter aqui pintores também brasileiros.
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E, por agora, por aqui me fico.

Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma sexta-feira muito feliz.

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