Lembro-me sempre de quando um colega de trabalho veio a minha casa. Quando apontei as carpetes de Arraiolos (por exemplo, esta aqui ao lado) e disse que tinha sido eu a fazê-las, ele ficou espantado. Na brincadeira disse: 'Mas como? Quando vou ao seu gabinete, nunca a vi a fazer...'. Na realidade, chegando a casa sempre bastante tarde, tendo filhos, tendo jantar a fazer, levantando-me sempre cedo, como conseguia eu fazer aquelas grandes carpetes apenas à noite ou ao fim de semana, sendo que, ao fim de semana, íamos para o campo com toda a demorada logística que isso acarretava, lá andava nas jardinagens e noutras actividades, como conseguia...? E, no entanto, conseguia. Adorava fazer. E bordava a um ritmo impressionante.
Hoje fotografei duas colchas de crochet, uma das quais feita por mim (a que está aqui abaixo). Em que momento a consegui fazer, tão grande? Creio que a fiz ainda solteira. Ora, como se, durante a semana, estava por minha conta e muito longe de crochets, e se, ao fim de semana, tinha o meu namorado lá em casa? Custa-me a perceber. Mas a verdade é que a fiz.
Da mesma maneira quando vejo as dezenas, dezenas, muitas, muitas, telas que pintei. Como? Como consegui eu pintar tudo aquilo?
Talvez seja o mesmo espanto com que fico quando me ponho a seleccionar ou a tentar organizar textos que escrevi aqui (e no Ginjal & Lisboa, a love affair). Não sei como consegui escrever tanto, em especial quando a maior parte foi escrita estando eu a trabalhar de sol a sol, carregada de trabalho até à ponta dos cabelos.
Olho para trás, para todas estas fases e espanto-me como se não fosse eu. Na verdade, não me lembro de qualquer esforço, nem tenho ideia de que fosse grande feito. Apenas sei que o fazia com prazer. E, em qualquer dos casos, apenas deixei de fazê-lo por não ter onde pôr o que fizesse, se continuasse a produzir.
E não estou a falar de tudo, pois, por exemplo, também houve a fase do tricot. Fiz camisolas, casacos, até que chegou a Zara com malhas giríssimas e a bom preço e já não fazia sentido usar as minhas peças.
Mas o que, nisto, para mim é mais espantoso não é nada do que falei: o mais espantoso é que, durante todos esses anos, a minha actividade principal não teve nada a ver com nada disto. Era uma executiva, creio que bem sucedida, exigente, creio que uma boa profissional. Contudo, olho para trás e parece que pouco ficou. Do resto ficaram colchas, tapetes, pinturas. Mas das longas décadas de trabalho o que ficou foram memórias que com o tempo se esbaterão pois parece que tudo aquilo só fazia sentido naquele contexto, naquele tempo. Saída desse contexto, o que vivi parece que pouco ou nada interessa, nem a mim nem a ninguém.
De facto, nunca se sabe o que fica daquilo que é a nossa vida.
Estou agora numa outra fase.
Hoje fomos almoçar a um restaurante naquela zona da cidade de que tanto gosto, Alvalade. Felizmente arranjámos facilmente estacionamento e felizmente fomos muito bem servidos. E aproveitámos para passear e ver o pequeno comércio tradicional, de que tanto gosto. Mas o ruído da cidade, o trânsito, isso já nos incomoda um bocado. Parece que estamos melhor no nosso sossego, nas nossas insignificantes tarefas domésticas, respirando o ar puro, jardinando, cozinhando, passeando com o nosso cão.
Aqueles tempos exigentes do traçado dos objectivos, das sempre difíceis avaliações, dos projectos complexos, das fusões de empresas, das grandes reorganizações, na negociação de grandes contratos internacionais, parecem coisas meio difusas das quais não sobrou prova, pelo menos nada que possa pôr no chão, numa parede, numa cama.
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Mountain Girl
- Documentary Short Film
Award-winning (Silver Telly 2024 - Documentary Under 40 Minutes) inspiring mini-documentary about aging gracefully and overcoming the obstacles in life with an 80-year old retired fashion model (Vogue, Bazaar) and a star of a cult classic film "Manos: The Hands of Fate" (as Diane Mahree).
Estes dias andam um bocado atípicos e nem vou explicar porquê porque os contornos variam de dia para dia e são sempre aparatosos, dramáticos. Mas como tenho o marido e os filhos a dizerem que já estou a ficar apanhada da cabeça e que o melhor é começar a tratar-me, já aqui não falo disso senão, daqui a nada, são vocês a dizerem-me o mesmo.
Por isso, direi que dada a grande humidade de hoje, a roupa da máquina de hoje não secou nem um pouco ao ar. Detesto quando a roupa custa a secar e, ao ar, ainda fica mais molhada do que quando é pendurada.
Ando com a cabeça noutro lado pelo que ando tão desmiolada que já nem sei bem de que é que falei ou do que é que ficou em pensamento. Em concreto não me lembro se contei que, no início da semana passada, quando estava sol, me deu para lavar duas grandes carpetes de Arraiolos. Pus-me descalça, calções e top. De mangueira, vassoura de arame e detergente em punho, aí está ela, a lavar a bom lavar os tapetes. Quando, por fim, a água sai limpinha e sem detergente dou o trabalho por concluído. Geralmente, bem esticadinhos, direitos, ao sol, num dia estão secos. Como ao fim do dia não tinham secado, deixei para acabarem de secar no dia seguinte.
Acontece que, no dia seguinte, quando fui ver, estavam ensopados. A humidade da noite tinha feito regredir o processo. Mas estava sol, pensei que a coisa chegaria a bom porto.
Só que, com a minha cabeça sempre a ser enfiada debaixo de água, ao fim do dia nem me lembrei de as recolher. No outro dia, ensopadas.
Quando fomos até ao campo, ir num dia e vir no outro, o meu marido levou-as para a cave. Um peso doido, carpetes daquelas ensopadas pesam toneladas.
Hoje quando fui à cave, esquecida delas, estava um cheiro muito estranho no ar. Só quando as vi percebi que eram elas que estavam ali a deixar aquele smell a juta e lã molhada em circuito fechado. Pois bem. Todo o dia esperei por uma aberta. Mas em vão. Uma humidade das piores.
Portanto, não sei se, depois de secas, porque hão de secar, não vão ficar mal cheirosas.
Esta terça-feira vou ter muito trabalho para frente. Para além dos mil problemas, apareceu-me uma tarefa que tem implicado muito trabalho, muita resiliência e esforço. Se eu conseguir aguentar-me são de corpo e mente é bem capaz de ser milagre. A sorte é que acredito em milagres.
Tirando isso, não tenho escrito, não tenho lido. Uma lástima.
Mas vai começar uma semana nova e, com sorte, pode acontecer que não seja pior que a que passou. E também pode acontecer que passe por mim uma borboleta colorida e me traga paz de espírito. E isto sou eu a falar virada para o meu umbigo. Porque bom, mas bom mesmo, era que ali pelas bandas de Israel e Gaza alguém fizesse magia e os estupores fossem à vida. E, que pelas bandas da Ucrânia, também sucedesse um daqueles milagres que deixam as pessoas de bem com vontade de ir para a rua cantar.
PERRENGUE! Cissa Guimarães e seu primeiro ENSAIO NU! 🔥 | Que História É Essa, Porchat? | GNT
E, se é para querer dar a volta e encarar as coisas de uma forma mais racional sem me afundar, então, com vossa licença, vou à procura de alguma coisa que me faça rir.
Não encontrei cogumelos. Ou, para ser mais precisa, apenas dois, grandes, mas ambos já em processo de definhamento. Talvez por isso, não havia pegadas ou terra lavrada por javalis. Tudo muito verde, tudo molhado, tudo muito bonito.
O pequeno urso estava estupefacto com tudo. Não andou a pé, em duas patas, agarrado às nossas pernas, não mordiscou pés, não brincou com o que encontrou. Andava ao nosso lado, a observar e cheirar tudo. O alecrim deixou-o doido. Nem queria andar, só cheirar. Quando passámos na zona do grande eucalipto, onde o perfume é intenso, também ficou muito admirado.
Foi extraordinário como se portou de forma comedida, calmo, a andar ao nosso lado. Estávamos receosos não fosse aparecer algum cão ou não fosse ele querer comer alguma porcaria. Como ainda apenas tem uma dose das vacinas, não pode correr o risco de ser contagiado. Eu tinha sugerido que lhe puséssemos coleira para o termos pela trela. Mas o meu marido diz que isso não é assim, que o uso da coleira e da trela não são imediatos, requerem treino.
Mas felizmente não apareceu nenhum cão e felizmente ele portou-se como gente grande.
Tinha comido qualquer coisa, pouco, em casa, de manhã. Só voltou a comer, e pouco, à noite, quando regressámos. Durante o dia, quer no campo quer, ao fim do dia, em casa da minha mãe, não comeu. Estava desconcentrado.
Dentro de casa, lá, in heaven, também andou a explorar tudo, quase intrigado. Cheirava tudo, por vezes dava ao rabinho. Se calhar, as coisas, embora desconhecidas, cheiravam-lhe a nós.
Outras vezes, sentava-se a observar. Não sei como é que os cães pensam mas se calhar percebia que era uma casa desconhecida mas que, estranhamente, sentia como sua.
A chuva ainda lhe faz alguma espécie. Quando estava dentro de casa e, lá fora, chovia copiosamente, deixou-se ficar a olhar pela janela.
À ida, de manhã, no carro, quis ir de pé, encostado a mim, a ver a janela. À vinda de lá, quando íamos para casa da minha mãe, já veio deitado no banco. No entanto, sempre atento. Se o carro abrandava ou curvava ou se a chuva estava mais intensa, levantava a cabeça para perceber o que se passava.
Vinha eu, no carro, a dizer que estava espantada com a forma tranquila e bem comportada como se tinha portado no campo quando, ao chegarmos a casa da minha mãe, desencabrestou. Louco, aos saltos, agarrado à minha mãe, a correr pela casa, eufórico, a puxar a mantinha do sofá, a querer estraçalhar o saco das lãs, a empoleirar-se nela, a mordiscá-la. A minha mãe quase estarrecida, mas divertida, com o potencial de estrago que ali estava: ''Seu maluco! Quieto! Ai!'
Ainda fui às compras com a minha mãe. Não queria, que já era tarde, que já era praticamente de noite, que estava mau tempo. Mas o meu marido fez o favor de ir connosco -- ficando no carro com o ursinho de peluche que ficou aconchegado ao seu colo -- pelo que nos deixou perto do nosso local de passeio.
Quando fomos, depois, deixar a minha mãe a casa, a fera quis lá ficar. Não queria vir connosco. Virava-se, punha-se a caminho da cozinha. Teve que vir à força, ao colo. A minha mãe fica contente por ver como a pequena criatura gosta de lá estar.
No regresso, veio a dormir, deitado no banco. Chegou a casa, espapaçado. O dia todo sem dormir (nem comer) deixou-o de pantanas. Consegui que comesse umas bolinhas de ração mas pouco. Depois veio pôr-se a querer vir para o meu colo. Aqui ficou, aninhado e quentinho, muito macio e fofo. Contudo, ao fim de pouco tempo já estava a mordiscar-me os dedos e os braços. Deveria haver chuchas para cães bebés.
Finalmente, começou a apreciar os ossinhos de couro de roer. Enquanto os rói está sossegado e nem deixa que nos aproximemos. Mas não podemos andar-lhe a dar desses ossinhos a toda a hora.
Este domingo esteve feérico, parecia que lhe tinham dado corda mas com rotações a mais.
Corre, salta, rói tudo e mais alguma coisa, rouba sapatos, tira almofadas de cima dos sofás, puxa tapetes para o meio da casa -- desenfreado, alegre, feliz da vida.
De tarde, aprendeu a subir para as cadeiras espreguiçadeiras. E fica todo orgulhoso. O pior é que logo de seguida começa a roer a cadeira. Por mais que me zangue, finge que está a dormir mas está a ver se a come.
Fez também uma que me deixou passada. Na sala da lareira temos um cadeirão que tem, ao pé, um pequeno banco que funciona também como descansa-pés. Pois o little baby bear pôs as patas da frente no banquinho e, dali, saltou para o cadeirão. Então, meio molhado -- pois tinha vindo do jardim -- lá estava ele no cadeirão. Nem queria acreditar quando lá o vi. Não tarda tenho os sofás todos sujos.
De notar que isto tudo começou com o alerta de que um cachorro tão bebé não regula ainda bem a temperatura do corpo. Portanto, em vez de ficar na casota que tínhamos posto no pátio junto à cozinha, entre muros e sob um telheiro, passou a dormir numa caminha na cozinha. Estando dentro de casa, daí até cirandar por toda a casa foi um ápice. E, num instante, toda a casa passou a ser um imenso parque de diversões ao seu dispor.
Hoje a trupe do meu filho esteve cá.
A pequena fera perseguiu a bom perseguir, a correr e a latir, a minha menininha mais linda que estava halloweenescamente maquilhada e que ainda não ganhou à vontade para lhe pegar ou mexer, perseguiu o mais novo que estava de vampiro e que voou de sofá em sofá para lhe escapar e apenas poupou o mano do meio porque tinha vindo de uma festa de anos e estava mais cansado, mais sossegado e passou despercebido.
E brincou com o meu filho e com a minha nora. Mas, curiosamente, parece que não tenta mordiscar ou encavalitar-se no meu filho. Parece que há ali um certo respeito.
Entretanto, enquanto eles estavam a ver se programavam a caldeira, enfiou-se por lá e, enquanto o tentava tirar, pelo sim, pelo não, fez cocó. Depois, quando eu, zangada, zangada a sério, fui limpar, rosnou e não queria que eu me aproximasse. Tive que lhe dar uma palmada.
E, já depois de eles se irem embora, fugiu com um chinelo e o pior é que me apanhou uma caixinha pequenina de veludo que eu, sem querer, deixei cair e fugiu pela casa toda com ela na boca. Estava a ver que ma estragava e isso é que nem pensar, é muito bonita e de estimação.
Obviamente a esta hora já dorme o sono dos justos.
É impressionante como um serzinho pequeno e peludo consegue a proeza de preencher tanto as nossas vidas.
Eu que, em condições normais, escreveria um post inteiro a falar das maravilhas do outono in heaven, dos líquenes, dos cheiros, das cores, da caruma molhada, dos musgos, do silêncio, da paz... agora não faço outra coisa senão falar dele.
E se eu estava a precisar de dormir até vir a mulher da fava rica. Mas não. Cedíssimo, sozinha na cama -- que o meu marido (felizmente) madruga -- comecei a ouvir uns ruídos não identificados. Tentei apurar o ouvido mas não consegui reconhecer que sons eram aqueles. Depois comecei a ouvir a voz do meu marido. Falava. Mas só ouvia a voz dele. Ouvi: não encontro a chave. E ouvia mexer em chaves. Passado um bocado, ouvi um batalhão de homens no corredor, a passar-me à porta do quarto. Nada de novo a não ser que não esperava que viessem tão cedo. O meu marido tinha-me dito que eu podia dormir porque eles iam lá para cima, não me incomodariam.
Eles eram os homens que vinham arranjar o tecto da parte antiga da casa, uma parte onde estavam os quartos dos meus filhos e uma pequena saleta, parte esta que hoje é pouca usada. Quando choveu mais, notámos que a escada de pedra estava molhada, vinha água desde lá de cima. O tecto, que é de madeira, precisava de ser levantado numas partes.
Acontece que a porta da rua que daria acesso quase directo a essa parte da casa é uma porta que há anos não é usada.
O senhor que volta e meia vem cá fazer arranjos e que vinha com mais dois, tinha-se lembrado que dava jeito entrarem por essa porta e não pela habitual para não terem que atravessar a casa com escadote, madeiras, ferramentas e, então, tinha vindo mais cedo para limpar as teias de aranha que se tinham formado do lado de fora e era esse o ruído, de uma vassoura a raspar na porta e no telheiro, que me tinha acordado. E o meu marido andava a experimentar chaves do lado de dentro e ele do lado de fora. Por isso só ouvia a voz do meu marido (que, às tantas, dizia que, era uma chatice, mas que a chave se deveria ter perdido).
Só que, às tantas, já depois de ter deixado de ouvir a voz do meu marido, ouvi a voz do tal senhor a dizer para um dos que o tinha vindo ajudar: olha lá, se for preciso, sabes rebentar o canhão de uma fechadura?
Aí, dei um salto da cama, enfiei a roupa às três pancadas, fui à gaveta onde tenho o molho completo de chaves da casa e fui experimentar. Uma era a daquela porta. A seguir cruzei-me com o senhor e acho que nem o cumprimentei: Já abri a porta. Viu o meu marido? E ele: se calhar já foi lá para baixo.
Fui à rua: estava com aquelas proteções nas pernas, a roçadora ao ombro, e ia lá para baixo. Já devia ter andado nos seus passeios ultra matinais pelos campos, veio a casa para abrir a porta aos homens e agora ia roçar o mato nascente. Ficou admirado por me ver: o que é que aconteceu? E eu: Achas que se consegue dormir com aquela barulheira? E se não me tenho levantado à pressa ainda destruiam a porta. Já encontrei a chave, já lhes abri a porta.
Não ligou. Está um camponês. Ia para a sua lida. Disse-me que também já tinha andado a cortar ramos altos com aquele serrote telescópico que o filho lhe ofereceu. Deve ter-se levantado às seis da manhã.
Entretanto, já os homens estavam a entrar e sair pela porta que não era aberta há anos, e muito barulhentos, uma algazarra pegada.
Portanto, acordei cedo e sobressaltada. A seguir, depois do meu marido ter cortado tojo e silvas, e de eu ter dado um breve passeio, fomos ao supermercado.
Ir ao supermercado à vila mais próxima é, para mim, um exercício de paciência. Tudo muito lento. Por exemplo, quase não há carne embalada. Tem que ser no talho mas há sempre umas vinte senhas à frente. E o pior é que cada pessoa leva carradas de carne, tudo cortado na hora. No peixe é a mesma coisa. Com a agravante de as empregadas serem vagarosas, cumprimentarem toda a gente, estarem a arranjar o peixe na calminha enquanto olham para as clientes, e conversam umas com as outras e com as clientes, tudo no maior vagar. Um desespero.
Regressámos. Fiz uma máquina de roupa, fiz arrumações. Por volta da uma, eles acabaram o trabalho. Mas o senhor, o principal, disse que voltava depois de almoço para acabar lá uma coisa.
Entretanto, também já tinha feito o almoço: pescada fresca cozida com batata, cenoura, feijão verde, ovo.
O meu marido tinha trazido um queijo de ovelha e, quando o abriu, achou que cheirava mal. Cheirei. Cheirava a curral. Talvez demais. O meu marido disse que era impossível comer um queijo que cheirava a m... Se tivesse sido mais barato, ia para o lixo e está a andar. Mas tinha sido caro e, sobretudo, era uma questão de princípio. Por isso, contrariado e irritado, foi ao supermercado.
Eu estava KO: deu-me um sono brutal. Pensei: vou deitar-me lá fora, na espreguiçadeira, e dormir um bocadinho.
Como o senhor tinha dito que voltava, fiquei em casa, foi só ele. Pensei: o portão está aberto, o senhor sabe o caminho e talvez nem venha já, vou deitar-me ao sol, vou dormir.
Tinha eu acabado de arranjar a espreguiçadeira, toca a campainha. Era o senhor. Resolveu não entrar sem se fazer avisar. Começou a conversar. E a conversar. E a conversar. A contar-me dos filhos, dos netos, dos primos, dos cunhados, de um comendador que era dono de uma fábrica noutra aldeia e que tinha filhos de duas camadas, da primeira e da segunda mulher, e do que tinha uma oficina e da professora que tinha um portão eléctrico e que o tinha chamado. E.... e... e... . Eu mal me tinha de pé, perdida de sono, exausta -- e ele, uma simpatia, a falar em contínuo. Por fim lá pegou na escada e lá foi completar o que cá o tinha trazido.
Sentei-me na espreguiçadeira a ler. Achei que, com ele por ali, não devia deitar-me. Passado um bocado chamou por mim. Estava em cima do telhado. Tinha reparado que o solho no que antes era o quarto do meu filho, na direcção da escrivaninha, estava mais escuro, prova de humidade. Então tinha ido ver o telhado. Disse-me que havia ali uma zona que precisava de ser impermeabilizada. Eu pensava que ele se deveria estar a referir ao chão de madeira, ao soalho. Nunca tinha ouvido chamar solho ao soalho mas agora já vi no dicionário que, de facto, se pode dizer. Aprendo imenso com ele, imenso mesmo.
A questão é que espertei. Quando estou perdida de sono e não consigo dormir, depois já não consigo.
Quando o meu marido regressou, estava ele a sair. Fui para dentro, recostei-me no sofá, comecei a ler e pensei que ia adormecer. Mas não adormeci.
Li. O livro, interessante. A ver se amanhã falo dele.
Depois fui caminhar, fotografar. A lua branca, já por metade. Translúcida, num céu límpido. A vaporosa florzinha do eucalipto. A casca de ovo muito branca, partida ainda de fresco, com outro bocado de ovo lá ao pé. Não sei a que pássaro poderá pertencer. Tão grande. Não é um ovinho de passarinho. Menor que o ovo de uma galinha mas maior do que os ovos de passarinho que costumo ver nos ninhos. E tão branco. E o gato amarelinho que me olhava de longe, um gato silencioso que me observa enquanto ando e que me deixa sempre surpreendida pois não sei de onde vem nem para onde vai (aquela velha questão mas agora aplicada ao gatinho cor de mel). E a flor encarnada, linda. E o bicho espantoso, também encarnado mas com efeitos em preto e branco, espectacular, um daqueles seres vivos que se vêem e em que não se acredita. E um outro pinheirinho despontando numa outra rocha. E tudo tão bonito e sereno.
E fiz o tapete (desforrei-me a fazer enquanto o meu marido via o seu Sporting a ser campeão de uma Liga de que eu nunca tinha ouvido falar, a Liga de Inverno. Ainda lhe perguntei que liga era aquela mas limitou-se a responder: esquece, não ias perceber e eu não insisti porque sei que não ia mesmo perceber), e li e vi televisão. Ainda não adormeci mas já estive várias vezes quase. Espero dormir bem esta noite. Estou mesmo, mesmo, mesmo, a precisar de dormir muito porque sei que a semana que aí vem vai ser de me deixar a rebentar pelas costuras e, se não recarrego baterias, nem sei como vai ser.
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Mas queria era falar de um livro novo. Não do que estive hoje a ler mas de um outro, um muito bonito, com poemas manuscritos. Eu que gosto tanto de estudar a escrita caligráfica das pessoas fiquei logo rendida ao livro.
Não faço aqui a análise porque seria deselegante fazê-lo mas mostro-vos a do Daniel Jonas (uma letra que me agrada muito e que me deixa contente pois gosto muito da poesia dele) e a do Nuno Júdice (uma letra que espelha bem a pessoa que penso que ele deve ser)
Fotografei os livros que comprei a semana passada (uma pequena recaída) em cima do tapete que estou a fazer na cidade. Se comparem com a fotografia de há dois meses até parece que não andei muito mas, como já referi, como a barra é quase da cor da juta, na altura não reparei que boa parte do preenchimento da barra estava por fazer. Agora já está todinha e já vou para aí num quarto do preenchimento do fundo (a azul escuro).
Disclaimer: Hoje estou numa de aforismos ou haikus ou cenas minimalistas dessas (como dois dos bloggers que muito aprecio e cujo exemplo muito gostaria de conseguir seguir). Claro que o farei sem arte, contento-me em tentar ser contida. Portanto, a ver se não embalo e não desato a escrever como se não houvesse amanhã.
Este post é só para explicar uma das várias razões pelas quais dei mais um passo a caminho da felicidade suprema.
Conto. Precisava de lã branca para a 'passadeira' que estou a fazer in heaven. Fui a uma loja de lãs que é, para mim, uma daquelas coisas do ali-babá cheia de tesouros e das quais só me apercebi as saudades que sentia quando lá entrei.
E quando, depois de cirandar a observar aquela parede mágica com lãs de todas as cores, estava a hesitar sobre a alvura do branco que, de memória, não seria tão alvo, a senhora perguntou-me se eu não tinha um catálogo com todas as cores e com os respectivos números. Disse-lhe que não, que não sabia do que ela estava a falar. Então pôs-se à procura num armário e apareceu com uma pequena maravilha. Pensei que era para eu confirmar o branco que queria, contrastando-o com os vários tons: pérola, marfim, etc. E, quando lhe ia devolver a folha com as lãs, ela disse-me: 'Fique com ele'.
A minha alegria transbordou, senti-me completamente feliz -- e os cientistas que façam um estudo sobre a felicidade e sobre a alegria para explicarem como é que uma coisa destas transporta em si tanta felicidade, capaz de me deixar a sentir-me a minha rica das criaturas, como se tivesse caído nas minhas mãos um tesouro nunca antes sequer imaginado.
Só para dizer que, a bem dizer -- e, mesmo assim, é como quem diz -- fiz a agulha e voltei à minha faceta de fadinha do lar, uma cinderela new age.
Isto de falar em agulha está bem lembrado porque, por acaso, bem tive que joeirar a bagunça da caixa de costura para descobrir uma. Não é uma agulha normal, que dessas encontrei umas poucas, mas uma adequada ao ofício. Mas, felizmente, no meio de linhas, botões, molas e whatever, lá estava, qual varinha de condão, a agulha certa.
Sempre ouvi dizer que quem quer vai, quem não quer manda. Portanto, ontem peguei na escadinha para alcançar os livros das prateleiras mais altas e, em vez de ir apanhar livros, fui-me às partes de cima do roupeiro. Uma caixa de pandora. Mas uma pandora benévola. Só saíram de lá tesouros, coisas boas. Por exemplo, vários desenhos. Estive a ver e pasmei. Cabeça de alho chocho: já nem me lembrava. No meio dos outros, um desenho (do género dos clássicos) feito, ie, inventado por mim. E, vendo-o, assomou a recordação daquelas noitadas. Pura motivação. Um tapete de arraiolos clássico é simétrico da esquerda para a direita e de cima para baixo. Ou seja, basta fazer o desenho de um quarto dele. Ora conseguir encaixar os vários motivos e assentá-los sobre uma base em quadrícula e tudo bater certo e tudo fazer sentido quando visto de outro lado é uma ginástica mental que requer que a pessoa esteja entregue na íntegra à tarefa. E tem que se fazer o desenho ao mais ínfimo pormenor. E depois é preciso estipular que cores para cada coisa, desde os contornos aos recheios, desde o centro à barra. Que engraçado rever aquela minha obra. E já o tinha começado a transpor para a juta. E depois fui também encontrar uma carpete pequena, talvez mais tapetão do que carpete, metro e quarenta por dois metros e dez de superfície bordada. Depois, quando pronta e esticada, fica um pouco maior pois ainda leva a franja (que, aliás, também já está feita). Deixei-a a meio, com o fundo por preencher e uma ou duas fiadas na barra também por fazer. Coisa do blog. Como comecei o blog só para ver como era, sem ter a mínima intenção de lhe dar qualquer importância, na altura não me ocorreu que se iria tornar absorvente a ponto de parar com as pinturas e com os tapetes.
Embora...
Embora, para ser totalmente sincera, também já não soubesse o que fazer aos quadros que pintava e também me começasse a faltar chão para os tapetes. Aliás, duas carpetes que estavam no campo em lugares em que até estavam mal aproveitadas foram parar a casa do meu filho. A minha filha, como os miúdos têm um certo fundo alérgico, quase não tem tapetes (e o que tem é de um estilo completamente diferente, os arraiolos não encaixariam ali). Portanto, às tantas começou a faltar-me o destino para as minhas obras.
Mas a verdade é que estava mesmo com saudades e, pensando bem, ainda há muito chão disponível para mais um ou outro.
E, portanto, tirei daquela arca do tesouro que há no topo do roupeiro a carpete que aqui vos mostro e a lã azul escura do fundo (vêem-se dois novelos no chão) e agora estou feliz e contente de roda dela. Tem um pequeno senão. A juta que agora se vende é uma juta mais aberta, que facilita bastante o bordado. Mas esta que aqui tenho é das tradicionais, genuína. E não apenas requer mais atenção para apanhar os dois fios como, sendo apertada, é preciso mais força. Mas tudo bem. Quem corre por gosto não cansa.
E, portanto, também, se virem que deixo de responder a comentários ou a mails não levem a mal. Por muito que me custe, o meu tempo não estica. Só consigo sentar-me aqui na sala lá para as dez da noite ou depois e, para conseguir tempo para a minha faena de bordadeira, alguma coisa será prejudicada. Leio tudo, comentários e mails, gosto de ler, mas para ter tempo para aqui escrever no blog e para o tapete -- e para conseguir dormir qualquer coisita -- pode acontecer que tenha que sacrificar a conversa com os Leitores que me escrevem. Não sei. Veremos.
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E, quando escrevo uma coisa assim, como esta que escrevi, sem ponta de coisa nenhuma, fico sempre com um certo sentimento de culpa. Acho que quem por aqui me visita dará o tempo por mal empregue. Mas a verdade é que não me apetece falar sobre o Bruno de Carvalho, essa nódoa tresloucada, sobre o défice ou a dívida de Itália, esse país que não atina com os governantes, sobre o brexit da Senhora Desengonçada May ou sobre as pornochanchadas do Trump que agora até goza com a França pela derrota perante a Alemanha nazi. Não tenho pachorrinha nenhuma.
Claro que poderia falar daquela histórica verídica mas fantástica de Emile, o homem que apresentou um requerimento para mudar de idade, alegando que, se se pode mudar de nome, de nacionalidade ou de género, não vê porque não mudar de idade. Sente-se vinte anos mais novo e quer que o tribunal o reconheça. Mas, para eu falar disso aqui, teria que ter uma ideia formada sobre o tema -- e não tenho. Por exemplo, se tal maluqueira passasse a ser possível, quereria eu mudar de idade? Não sei. Nem sei se haveria de querer ser mais velha -- e mudar para os sessenta e seis anos e cinco meses para me poder reformar -- ou se quereria mudar para os vinte e seis para poder divertir-me a ver a reacção das pessoas a quem eu dissesse e provasse que tinha vinte e seis anos e que estava com o relógio biológico a dar horas e a pensar ter mais filhos.
E cá está ele, o Emile:
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Portanto, não tendo assunto, para já, fico-me por aqui mas não sem antes partilhar convosco um vídeo interessante. E bonito.
Pois vos digo que se me vou um bocado abaixo e quase aterro -- ou por cansaço, excesso de trabalho, embrulhadas profissionais, preocupações familiares ou o que seja -- a verdade é que o meu organismo tem umas formas curiosas de dar a volta. E falo no meu organismo e não na cabeça porque a coisa não resulta de elucubrações ou mise en place de estratégias de qualquer espécie. É completamente involuntário. Simplesmente parece que viro a página e entro num filme diferente.
Nesta recente revoada de virada de página para a qual arrastei o meu marido, reorganizámos os livros, reorganizámos a zona de escritório, trouxemos uma poltrona para a zona que agora é exclusivamente de leitura, rependurámos quadros, espelhos, reposicionei bibelots. A casa agora está diferente e uma das salinhas pequenas in heaven também. E ando entusiasmada como se me tivesse mudado para uma casa nova.
[E calma: não estou, com isto, a dizer que sou especial por ser assim. Isto pode apenas significar que não sou boa da cabeça.]
No outro dia, vi na Area 8 uma espécie de pequena árvore, só uns estilizados troncos com luzinhas nas pontas. Está a ser vendida como enfeite de Natal. E eu tenho uma igual. O meu marido diz que a comprei lá o ano passado. E eu tenho a certeza que não, que a comprei num chinês por um terço do valor. Não interessa, o que interessa é que andei à procura dela e, depois de a encontrar, coloquei-a em cima de uma das estantes baixas aqui da sala para servir de candeeiro. O meu marido refilou quando me viu a andar nisto. Disse que era uma palhaçada pôr um enfeite de Natal a servir de candeeiro. Mas, quando o viu aceso e constatou o bom ambiente que traz à sala, já não disse nada. Tão bonito e agradável que fica.
Também fiz outra coisa: no que era o quarto da minha filha, tinha um candeeiro de pé, todo xpto, Pensei que ficava bem ao lado da poltrona de leitura. Carreguei com ele para lá. Tem leds na pontinha de cada arabesco. Infelizmente só três é que acendem. Mas fica mesmo bem ali. Temos que substituir os que não acendem. Mas o candeeiro fica mesmo bem. Tomara que, com leds novos, todas as pontinhas acendam.
E estou cheia de vontade de, também aqui, na cidade, durante a semana, voltar a fazer arraiolos. Só que a carpete que cá tenho a meio não apenas é enorme como é daquelas com desenhos do piorio (do género destes dois que aqui vos mostro, um dos quais está aqui sob os meus pés, e que fiz tempos atrás). Para além disso vai trazer-me um apontamento de desarrumação a esta sala que agora anda tão linda. E, last but not the least, vai impedir-me de estar tanto tempo de volta do blog (e de leituras diversas). Esta que tenho para acabar está arrumada num lugar muito alto, terá que ser o meu marido a ir lá buscá-la e ele não tem estado muito para isso. Hoje, por exemplo, com o jogo do Sporting, não quer que eu o distraia por nada desta vida.
Já no outro dia eu aqui me tinha interrogado sobre se a leveza de espírito que sinto quando faço tapetes (ou quando escrevo; mas também se fizer tricot ou pintar ou fotografar) não será uma forma de meditar. Fico de tal forma alheada de tudo o resto, tão focada naquilo, que esqueço tudo o que me possa preocupar.
Não sou, por natureza, dada a stresses, a estados de afeliação (isto é, a curtir o fel próprio). Sou muito primária -- esqueço-me rapidamente do que me chateia, desligo-me facilmente de maçadas, ponho para trás das costas aquilo que me desagrada, e parto para outra -- pelo que, que me aperceba, não procuro estas actividades para esquecer agruras ou para me descontrair mas apenas porque sim, pelo simples prazer de as executar. Mas a verdade é que, enquanto estou absorta nisto, as minhas mãos andando sozinhas, a cabeça desligadamente observando as mãos, me sinto como a mais inocente, livre e despreocupada das criaturas.
Existem escolas de tricot que são espaços de convívio e bem estar, existem manuais, vídeos. Etc. E há o autodidactismo que, na verdade, é a minha onda.
O artigo fala no bem estar que é estar a fazer uma coisa destas, confortavelmente, com uma mantinha quente, uma caneca de chá para ir bebericando, num espaço confortável. É assim que, quando está frio, gosto de estar. In heaven, junto a isto o calorzinho da salamandra ou da lareira.
Por algum motivo que desconheço, parece que, por cá, estas actividades caíram em desuso. Nenhuma das minhas amigas, familiares ou conhecidas se dedica a isto -- com excepção da minha mãe que é devota praticante (está, neste momento, com uma encomenda em mãos: duas camisolas e dois casacos para quatro dos cinco bisnetos. Para o bebé nada foi pedido pois herda tanta roupa que raramente precisa de mais). Comentei com ela isto de dizerem que o tricot é o novo ioga e ela concordou, diz que estes trabalhos manuais (tricot, crochet, costura) é o que a tem ajudado a superar tão bem as agruras da sua vida tão complicada. Isso e ler. E eu acredito que sim.
Note-se: Apesar de toda esta apologia deste tipo de trabalhos manuais e apesar de admitir que o mais certo é o ioga não ser para mim, ainda não desisti de o ir experimentar. Mas tudo naquilo me faz hesitar: para começar acho que algumas daquelas posições parecem esteticamente muito interessantes mas se e só se a pessoa estiver bem ginasticada, sem um grama a mais -- assim como esta menina aqui em cima. Agora se a pessoa não for capaz de se virar do avesso com as pernas ao alto, presumo que seja sobretudo um bom motivo de galhofa, incluindo para o próprio.
Ora bem. É como andar de bicicleta: não se esquece, não se perde a mão. Já dei um bom avanço. Tão bom. Há quanto tempo... Como consegui estar tanto tempo?
Esta que aqui está é daquelas em que vou fazendo, sem desenho, como se pintasse. Os que têm desenhos complicados estão na cidade. Aqui, in heaven, sempre preferi coisa que eu possa fazer assim, tranquila e desatenta, para não ter que estar concentrada a seguir o guião. Para este, a minha ideia era fazer um tapete comprido, como uma passadeira, para pôr no corredor que vai dar à sala onde vemos televisão e em que mais tempo estamos. Queria que fosse claro, neutro, sem efeitos especiais, uma coisa apenas para dar conforto e para não distrair a atenção do principal que é a vista que se tem daquela sala.
Fui à cesta, peguei nele, peguei nas lãs, fui buscar o dedal e retomei onde o tinha deixado há uns anos -- e foi como se o tivesse deixado ontem. Que bom que é. Sempre gostei muito de trabalhos manuais.
Na cidade o único tapete que não foi feito por mim é o redondo (que está debaixo da mesa redonda). De resto, todos foram feitos por mim. São, quase todos, réplicas de tapetes genuínos, dos primórdios, século XVII, que estão em museus, quer cá, como o de Arte Antiga, quer em Paris (Arts Décoratifs) ou Londres (Albert and Victoria), por exemplo. Alguns são bastante grandes, carpetes que até a mim me custa acreditar que tenha sido eu a fazer. Mas fui. Olho para elas sempre com algum espanto. Um colega meu uma vez que as viu também se espantou: 'Mas como é possível? Quando vou ao seu gabinete nunca a vejo a fazer tapetes...'
Aqui, in heaven, as duas carpetes da sala de jantar foram compradas em Arraiolas, antes de eu me ter dedicado a este ofício. Mas as que estão nas salas de estar ou no meu quarto foram feitas por mim mas, neste caso, longe de desenhos originais ou de qualquer classicicismo. Apenas o ponto e o preceito são os genuínos, o resto é tudo inventado.
Na fotografia, vê-se não só a que estou a fazer como, embora apenas uma ínfima parte, a que está aqui aos meus pés, uma assim a la Rothko.
Fazer tapetes não é coisa sensaborona: para mim é uma coisa boa. Enquanto bordo, estou a pensar, a ouvir música, a ver televisão, o que for. Provavelmente é uma forma de meditação. Antes de fazer tapetes, fazia tricot. Camisolas com modelos e padrões altamente criativos, algumas com desenhos abstractos. Também fiz camisolas para o meu marido mas, aí, muito normais (e que, portanto, não me davam grande gozo a fazer). Para os miúdos nunca me deu para fazer porque a minha mãe e uma tia do meu marido encarregavam-se disso e, além do mais, eles não apreciavam ir para a escola vestidos com camisolas que achavam artísticas demais. Também já me dediquei ao crochet: panos de tabuleiro, toalhas de chá, uma toalha de mesa grande e uma colcha.
Já em adolescente me ocupava de coisas assim: almofadas bordadas em bastidor e sei lá que mais.
E tudo isso me dá vontade de ter mais tempo para tudo, porque de tudo eu gosto e o tempo não me chega para esse infinito tudo.
Tenho aqui ao meu lado o Kundera, 'Os testamentos traídos', que vim a ler no carro e que bastante prazer me está a dar, mas agora à noite estou preguiçosa, não me apetece ler, apetece-me estar aqui, com as mãos em acção enquanto a cabeça voa. Na volta também escrevo, as mãos também voando sobre o teclado, para dar uso às mãos -- a escrita como uma forma de artesanato.
E tudo isto, arrumações, tapetes, escritas, fotografias e tudo o mais é terapia e terapia das boas porque a gente nem chega a precisar de tratamento porque ter a cabeça e as mãos ocupadas evita qualquer nó ou buraco negro na cabeça.
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As árvores que aqui se vêem, excepto na última fotografia, aqui mais abaixo, não são de cá. Foram feitas ao início da tarde, antes de virmos. Tínhamos estado a esfolar o rabo às arrumações e já era tarde. Almoçámos e demos um pequeno passeio.
Não sei porquê os áceres nunca vingaram aqui, in heaven. Fiz várias tentativas mas nenhuma resultou. Até um cedro japonês, daqueles que no outono fica ao rubro, não vingou. A terra tem destas coisas. Uma questão de química: se o santo da terra não cruza com o santo da árvore, a coisa não acontece. Digo eu.
Mas não há árvore mais linda para nos enternecer com as suas cores abstractas do que o ácer. Emociono-me a olhar para eles. São lindos no Outono.
Aqui, in heaven, tirando a vinha virgem, o que fica mais bonito é o abrunheiro. Fotografo-o encantada, contrastando os seus tons quentes com as folhas do plátano que também já começam a ficar douradas.
Bem. Agora, apesar de já passar da uma, vou fazer um pouco mais de Arraiolos. Ah, coisa mais boa. E vou pôr mais lenha na salamandra. Cheira bem. Não se se é azinheira. Cheirinho mais bom.
Um belo dia de domingo para vocês, meus Caros Leitores. Saúde e boa disposição para todos.
Hoje recebi um presente daqueles que me enche de prazer e que chegou num dia mesmo bom para o poder desfrutar. Falava e mostrava vários Métiers d'Art. Toda a revista, que aqui não tenho como mostrar (quanto muito o site), é um luxo, um deleite. Não há métier d'art que me seja indiferente e não há laborioso e amoroso trabalho feito à mão que a mim me não encante.
No mail que o acompanhava, o Leitor - a quem já agradeci mas a quem aqui agradeço de novo - falava dos tapetes de Arraiolos que uma sua familiar fazia.
Também eu os fiz e deles já aqui falei muitas vezes. Tive o privilégio de conhecer uma Mestre com quem estabeleci amizade e que tinha (e tem) o desenho original de tapetes originais que se encontram em Museus e Fundações. E, então, sem antes ter tido aulas ou ensinamentos, um dia pedi-lhe um desenho, juta e lãs para um determinado tapete de corredor. Ela assim o fez e, no dia em que lá fui buscar, pedi-lhe que fizesse meia dúzia de pontos para eu aprender. Quase deu um salto, escandalizada: 'Mas ainda não sabe fazer?!'. Quando lhe disse que não mas que, se ela fizesse uns pontos eu fixava, achou que eu só podia estar a gozar. Toda se zangou, que nem pensar, que havia cursos, que isso não era assim. Pedi-lhe que me dissesse as regras básicas, que me mostrasse o ponto em linha e como se mudava de linha e como se faziam as diagonais. Quase ofendida disse-me que eu tinha que ir aprender e depois, então, que fosse lá buscar o desenho e o material. Quase nos zangámos. Por fim, depois de eu explicar que não tinha tempo para cursos, toda contrariada, lá me fez uma meia dúzia de pontos. Pedi-lhe que me deixasse a agulha posta na posição de continuar para me ser mais fácil prosseguir.
Quando nessa noite peguei naquilo, queria continuar e nada me batia certo. Na posição em que a agulha estava eu não conseguiria retomar o ponto tal como me parecera ter percebido. Estava mesmo infeliz, já a ver-me a ir lá de corda ao pescoço dar-lhe razão. Às tantas verbalizei a minha dificuldade, 'Não consigo retomar o ponto a partir da posição em que está a agulha...'. Aí a minha filha, com a maior descontração confessou: 'Ah... a posição da agulha era importante...? É que estive a mexer nisso, tirei a agulha e depois voltei a pôr mas não faço ideia da posição em que a pus.'.
Ora bem. Peguei então naquilo, reorganizei-me mentalmente e, durante anos, à noite, nunca mais parei.
Fiz tapetes e carpetes de vários tamanhos, cores e feitios. Tenho esta casa cheia e a casa in heaven também. Duas dessas carpetes, já aqui as mostrei, estão agora em casa do meu filho.
Primeiro, a partir do desenho em papel quadriculado, eu bordava os contornos dos desenhos, tendo em atenção as cores. Essa é a parte complicada pois o desenho só contempla um quarto do tapete já que o tapete é composto por quatro partes simétricas. E, portanto, estamos a ver o desenho no papel e, em cada dois quartos, a ter que bordar ao contrário. Por exemplo, olhava para o desenho e fixava: três pontos para a direita, um em diagonal para cima, dois verticais e depois quatro horizontais para a esquerda. E, ao bordar tinha que, de cabeça, onde era direita, fazer esquerda e vice-versa. Portanto, estava a ver televisão mas absorta, só concentrada nesta mecânica. E, claro, sempre com atenção às cores pois um tapete destes leva vinte e tal ou trinta cores diferentes, algumas de tons muito parecidos. Depois do desenho todo feito, começava a fase de enchimento dos desenhos. E todos os dias, ao começar, eu pensava, por exemplo, hoje vou encher o tigre e a árvore e, enquanto o não fizesse, não me ia deitar. Depois, entrava no enchimento do fundo e aí era uma luta contra o tempo, eu a querer acabar para aplicar depois a franja e poder tê-lo pronto e, enquanto não via o fim, não descansava.
Antes disso tinha passado pelo tricot e, depois ou ao mesmo tempo, pelo crochet.
No crochet, toalhas, colchas de renda, sei lá.
Ainda estive para ir fotografar a colcha branca mas é pesada, não me apeteceu estar a abri-la. Por isso, fui a uma das gavetas da casa de jantar e tirei uma toalha redonda que fiz para uma camilha que tinha numa altura em que a casa estava mais para o convencional. Mas não gostava, ter toalhas com toalhas de renda por cima, parecia-me mais a casa da minha mãe ou das tias do que a minha e, portanto, a toalha para ali está guardada.
Houve uma outra época em que fazia individuais para mim e para oferecer pelo Natal. Usava linha grossa, rústica, e fazia-os de toda a espécie e feitio. Inventava pontos, modelos, era o que me vinha à cabeça. A linha rendia e despachava individuais a grande velocidade.
Quando os oferecia, quem os recebia olhava para mim com espanto: 'ai, que menina prendada...'. Não parecia bater certo que eu fosse dada a tais habilidades.
Com o tempo, acabei por me deixar disso.
A verdade é que, cá em casa, raramente os uso. Para, no dia a dia, pôr na mesa prefiro individuais laváveis, bem mais práticos. Estes, de linha, têm que ser lavados de cada vez que são usados à mesa. Estou a ver a fotografia e parecem-me um bocado manchados, não sei se é da fotografia ou se estão a amarelecer de estarem sem uso.
Mas, enfim, foi uma época.
Não mostro os quadrinhos que bordei sobre cetim branco ou seda preta, com linhas de seda coloridas. Montava o tecido num bastidor e, quem me visse, poderia tomar-me por uma donzela de há séculos atrás. Comecei com motivos florais mas foi sol de pouca dura, logo derivei para desenhos futuristas. Mas não os posso mostrar porque os tenho in heaven.
Tendo sido nados e criados a visitar museus e exposições de toda a espécie e feitio, coisa que, de resto, os deixava frequentemente à beira da rebelião, os meus filhos sempre souberam da minha devoção por pintura.
Então, um dia, para minha surpresa, o meu filho ofereceu-me um cavalete, tintas, pincéis. Pensei que ele estava doido. Muitas vezes eu pensava que gostava de experimentar mas quem gosta muito de uma coisa sabe bem a distância que vai entre gostar e ser capaz de fazer o mesmo.
A medo, com pena de desperdiçar os materiais, lá me fui, a pouco e pouco, afoitando. Até que lhe ganhei o gosto. Que liberdade, que alegria. Uma vez mais, era de noite que eu gostava de pintar. Especialmente ao fim de semana, ficava até às duas ou três ou mais a pintar. A pintar nada em particular. era o prazer infantil de pintar. E misturava materiais com tintas, e pintava, pintava noite fora.
Os quadros que tenho aqui nesta casa e que já tinha antes desta aventura, comprados portanto, eram geralmente em tons claros, muitos quase minimalistas, algumas aguarelas, tons suaves. E, no entanto, sendo esse o género que mais me agrada, quando pinto é uma torrente de cor, um disparate, as cores jorram, um excesso. Isto que aqui vêem ao lado é o canto de uma tela grande que está nesta sala. Nada tem a ver com nada. Por baixo do corpo da mulher escrevi woman in love e há mais coisas escritas mas não faço ideia porquê. Apeteceu-me, e uma pessoa poder fazer o que lhe apetece sem ter que dar satisfações a ninguém é uma sensação muito boa. Nunca me passou pela cabeça pensar se estava a pintar bem ou mal. Estava simplesmente a pintar para meu próprio e intenso prazer.
Mas também fiz pinturinhas mais normais.
Em casa da minha mãe há várias pinturas minhas mais comuns, flores sobretudo, grandes ramos de flores campestres, e acho que até não estão mal de todo.
Querendo, sou capaz de fazer coisas que parecem ser qualquer coisa.
Por exemplo, logo muito ao princípio, quis fazer um quadrinho para colocar numa parede estreita que separa o hall da sala de jantar e esforcei-me por que saísse alguma coisa que não intrigasse toda a gente (porque o que mais arrelia é uma pessoa fazer uma coisa pelo prazer de a fazer e depois virem perguntar o que é).
Fiz então umas florzitas vagamente inspiradas nos jarros do Mapplethorpe. Tinha lá in heaven uns jarros no canteiro junto à cozinha e então coloquei-os nesta posição e pintei à vista.
Mas depois já não tinha onde pôr tanto quadro, distribuí-os, dei-os, e ainda tenho por lá montes deles. Mas volta e meia bate uma saudade...!
Virei-me então para tarefa mais simples: fazer colares e pulseiras. Outro entretenimento.
No verão, quando estou lá de férias, quando vou sair (o que é raro pois não há nada que me apeteça mais do que lá estar posta em sossego, ao sol ou à sombra, a ler ou a varrer), se, por exemplo, visto um vestido preto com flores encarnadas, logo penso, ora bolas, agora não tenho aqui uma bijuteriazinha a condizer. e, então, monto a minha banquinha e faço, num instante, um colar e uns brincos que façam pendant. Outras vezes faço coisas mais elaboradas, com pedrinhas pequenas, mais difíceis de enfiar e ali estou entretida. Por vezes, quando acabo vejo que onde tinha colocado uma pedra num certo tom azul não usei o tom certo e, para minha arrelia, tenho que desmanchar quase tudo e começar de novo. Mas faço-o de gosto.
Para vos mostrar fui ali buscar uns mas meteu-se outra coisa pelo meio e, para despachar, peguei apenas em dois e, por sinal, pouco significativos. Não faz mal, também não os estou a pôr à venda. Uma vez mostrei aqui um colar e uns brincos e, no dia seguinte, recebi um mail de uma pessoa do Brasil a perguntar quanto é que custava o conjunto. Achei imensa graça.
E assim me tenho vindo a entreter, ao longo dos anos. Pelo meio a leitura, sempre. E a fotografia. Milhares de fotografias. Quando começo com qualquer coisa sou imoderada, a minha produção parece que ganha vida própria, uma coisa estranha.
E vocês, Caros Leitores, têm a prova disso aqui. Agora o meu passatempo nocturno é escrever para vocês. E o que eu escrevo, senhores. Leio outros blogues e fico encantada com a sua contenção, poucas palavras, um look despojado, cores claras. Mas chego aqui e é isto, um exagero total. A sorte é que não tenho a limitação de espaço que tinha com as outras coisas. Mas tenho sempre a sensação que um dia me irei virar para outro lado. Escrever um livro, por exemplo. Ou simplesmente responder aos mails, estar mais próxima das pessoas, não sei. Ou, então, deixar-me estar sossegada a ler.
Mas agora nem vale a pena pensar nisso. É aqui que estou à noite e é aqui que a 'menina prendada' agora se sente bem.
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PS: Sei que ando um bocado arredada dos temas da política nacional mas a verdade é que acho que é a política que anda arredada de Portugal. Há um vazio quase tenebroso. Este malfadado governo deu cabo de quase tudo no país e as possíveis alternativas ainda estão na fase dos baby steps, nada de entusiasmante acontece. Por isso, não tendo paciência para andar a bater sempre no ceguinho que já está mais do que moribundo, apetece-me espairecer e falar de assuntos mais tranquilos.
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A música lá em cima era Ryuichi Sakamoto interpretando a música que serve de banda sonora a 'The Sheltering Sky', um filme que acho que um dia destes hei-de rever.
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No post seguinte temos humor: o nosso querido Lombinha no seu melhor, a explicação da diferença entre sexo e amor e, para terminar um marido desaparecido na Porta dos Fundos.
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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma boa terça-feira, vivida em tranquilidade.