Hoje o dia começou com o meu marido a dizer que tinha visto um javali. Contei-o numa story no Instagram.
Há um sítio em que a vegetação é um pouco mais fechada, um lugar sempre à sombra, sempre fresco. Há um grande cedro, uma azinheira, diversas aroeiras, erva diversa. A terra aí é fofa, negra. E frequentemente está remexida.
O nosso cão anda sempre intrigado por ali. Põe o nariz no chão e anda de um lado para o outro. É frequente ver ali pegadas de bicho grande, terra levantada. Sempre me admirei: que bichos por ali andam e o que procuram? Dá ideia que desenterram coisas. Já pensei muitas vezes: trufas? Não faço ideia.
Esse lugar é numa extrema do terreno vedado (há uma outra parte, separada por uma estrada, que não está vedada). Ali, naquele sítio em concreto, a vedação não está danificada. Ou seja, não é por ali que os bichos entram. O javali que o meu marido viu estava ali, ao lado da vedação e ficou a olhar para ele. O meu marido diz que, pelo tamanho, não era adulto.
O nosso vizinho que mora na entrada da rua, uma vez que falámos da nossa desconfiança, disse que de vez em quando acordavam com um grande barulho na estrada, animais a trote. Então, passaram a estar atentos e uma noite fizeram uma espera e conseguiram ver uma grande vara de javalis a correr na estrada, na direcção do vale, passando pela nossa casa.
Um conhecido já avisou algumas vezes: é preciso o máximo cuidado com as mães javalis ou com bichos que se sentem ameaçados. Por isso, hoje, ao andar por ali sozinha com o cão sempre por perto, pensei que se me aparecesse um bicho pela frente haveria de ser um festival, o cão aos saltos e a ladrar furioso e o bicho, assustado...
Bem. Não foi surpresa a constatação de que, na verdade, há javalis in heaven mas foi surpresa estarem à vista, de dia, tão perto.
Não tenho falado mas, em contrapartida, dos gatos nem sinal. Desapareceram todos. E dos esquilos agora não tenho visto vestígios, nomeadamente aquela fartura de pinhas roídas em baixo. Estive a informar-me e, nesta altura, as pinhas não estão boas para roer. Por isso, podem continuar residentes mas andarem a alimentar-se com outros acepipes.
Tirando isso e o expediente comum (o meu marido a roçar mato, eu em arrumações e varridelas e etc.), continuo, como sempre, fascinada com o efeito da luz através das flores.
Que cores, que perfeição, que harmonia.
Quanta beleza.
Nestes dias não se vê televisão, não se procuram notícias. Ao fim do dia, no carro, por acaso apanhámos o fim do noticiário, qualquer coisa sobre os novos ministros. Desejamos que, a bem do País, corra bem. Contudo, algumas escolhas parecem estranhas.
Quando chegámos a casa, já jantados, ainda demos, bem de noite, um passeio com o cão. Confesso que senti algum receio. O meu marido disse que não havia razão para isso e, por isso, confiei.
Com isto, a verdade é que não consigo ter disposição para falar de política.
Só quero dizer uma coisa: quando a minha nora enviou para o grupo da família um vídeo com a cena do Marcelo a fazer um tristíssimo papel com uma jovem na Feira do Livro, ao ver tive dúvidas de que fosse real. Depois vi que é. E fiquei perplexa. Mau, muito mau, mau de mais. Começou por parecer um totó de roda da jovem, a querer rebater, a querer interromper, a não saber pôr-se no seu lugar. Depois, no fim, a forma como a agarrou pelo pescoço, com força, foi de uma agressividade inqualificável. Todo aquele comportamento foi de uma inconveniência inusitada, uma menorização da função presidencial como nunca antes se tinha visto. A jovem, de que não sei o nome, pelo contrário, manteve um sangue frio, uma atitude fantástica. Deixou-o nitidamente aos bonés. Se Cavaco acabou mal e retratado com a boca cheia de bolo-rei, Marcelo acabará ainda pior e retratado a agarrar uma rapariga pelo pescoço, acabando com ela a instá-lo a largá-la e a virar-lhe as costas. Cena mais macaca. Marcelo não se enxerga. Que fim mais triste.
A ver se amanhã me regressa a vontade para falar de política para me pronunciar sobre os membros do Governo e o que é que as escolhas podem significar. Preferia, contudo, esperar pelos Secretários de Estado, para ver se são melhores dos que os anteriores. Logo vejo.
Dia complexo, complexo. Um dia destes logo vejo se me dá para contar... Mas não foi totalmente mau. Pelo menos, até ver, está a acabar sem crises.
Para agravar está a doer-me a garganta. Vou ter que ir chupar uma pastilha.
Está mais frio. O meu marido diz que isto da garganta é de eu andar de manga curta quando está tempo para casacão.
Há bocado adormeci. Tive que me levantar muito cedo e, antes, já tinha sido acordada. O meu corpo de pensionista desabituada de horários e despertares antecipados já se ressente.
Pelo meio, conversa boa com uma amiga de longa data. Muito diferente de mim mas muito articuladas.
E, apesar de tudo, ainda houve tempo para um bocado de boa leitura ao som de boa música.
E também ida ao supermercado e, cá em casa, embora um bocado fora de horas, culinária.
Para além da sopa de legumes fiz uma coisa de que gostamos bastante, que faço pouco (porque me esqueço) e que ficou bem boa.
Vou contar como fiz as Favas com Entrecosto
Num tacho coloquei um pouco de azeite, uma cebola gigante cortada aos bocados, um alho francês inteiro, cortado aos bocados, claro, salsa, louro. Tudo a frigir, sem queimar nem pouco mais ou menos. Depois coloquei tiras de entrecosto com carninha boa (ou seja, sem ser só pele e osso). Coloquei um pouco de sal, uns bocadinhos de bacon, poucos, só para dar um saborzinho engraçado. Envolvi para selar mais ou menos a carne. Juntei meia cerveja. Com o tacho bem tapado, ficou a cozinhar.
Quando se via a carne a querer despegar dos ossos, juntei uma cenoura grande aos bocadinhos, meia curgete (com casca) aos bocados e uma embalagem de favas (cuja embalagem estava há umas duas ou três horas fora do congelador). Deixei cozinhar até estar tudo macio.
Facílimo. Creio que saudável. Económico.
Acompanhámos com salada de alface com coentros.
Quanto ao resto, digam-me vocês o que aconteceu pelo país e pelo mundo (como diz o outro). Digam-me, é como quem diz. É que a verdade é que desconheço mas não sinto falta. Portanto, se não aconteceu nada de bom, não preciso que me digam. Um dia destes vou pesar os prós e os contras de hibernar.
Acho que não há grandes novidades tirando as desgraças de sempre e dessas, tão tenebrosas me parecem, não consigo falar.
O meu dia foi de trabalho e teve aquelas agruras habituais. Na fase em que estamos, uma fase complexa no futuro da empresa, parece que o pior de algumas pessoas se sobrepõe a tudo o resto. Quando se fala em atitudes tóxicas isso não é uma força de expressão, é mesmo uma realidade. Infelizmente, os episódios de stress ou irritação sobrepõem-se aos de motivação e isso desgasta. Mas é uma fase. Logo passa.
Por tudo isto, prefiro falar de momentos de paz e serenidade.
O tempo cinzento, chuvoso, tristonho. Às quatro e tal estava escuro, às cinco e tal estava de noite. Às seis e tal fui andar lá para fora, estava noite cerrada. Tive que ligar a lanterna do telemóvel. Mas andar no campo, entre árvores, com tão fraca iluminação não é coisa fácil. Não se vê nada, nada, nada. Pensei que se um javali ou uma raposa saíssem da gruta ou de alguma toca eu cairia para o lado de susto.
Apesar de tudo, gosto. E chuviscava. Via as gotas a percorrerem os fracos raios de luz do telemóvel. Bonito. Podia ficar ali parada a respirar o ar molhado, a sentir os odores e os mistérios da noite.
A fera tinha ido comigo e, de vez em quando, ouvia-o por perto mas, de noite e ele escuro como é, quase não o consegui ver. A certa altura, chamei por ele. Nada. De repente, ouvi um barulho e um monte de pelo passou a rasar por mim. Estremeci. Era ele numa corrida. Mas não o vi.
Passado um bocado, ouvi o meu marido lá em cima, ao longe, a chamar por mim. Fui na direcção dele. Achava que eu andar por ali às escuras não era boa ideia. Acendeu as luzes todas à volta da casa e que eu andasse por ali. Dei umas três ou quatro voltas e desisti. Não tinha graça.
À hora de almoço tinha feito um pequeno passeio para fotografar cogumelos. É um fenómeno. Não sei a que ritmo se multiplicam aquelas células mas o facto é que, num abrir e fechar de olhos, aparecem e agigantam-se. Belíssimos. Claro que nem todos são de tipo giga. Há os que são delicados, quase como bailarinas, quase comoventes.
Há outros que parecem umas bolinhas brancas, quase pétalas, outros umas ondinhas quase em rendilhado, folhinhos subtis que embelezam os ramos que se fingiam de mortos. Quanto mistério nestas indecifráveis formas de vida.
Outros são carnudos, quase animais saídos da terra, outros parecem algas, são lustrosos, quase parecendo vindos do fundo do mar.
Os mais exóticos são uns em campânula brilhante em amarelo exuberante. Mas hoje vi uns que parecem vidros de Murano, de uma delicadeza translúcida. Serão que são deuses? Ou serão simples anjos? São inexplicáveis, etéreos. Fiquei com vontade de me deixar ficar a olhar para tanta beleza, tão efémera beleza.
E os campos estão verdes, verdes. Muito musgo, macio, veludo, veludo, e muitas ervinhas, muitos líquenes. É bom estar entre o verde da natureza. Fotografo o que posso. O tempo não é muito. E há a chuva. Fiquei com os pés molhados, o cabelo molhado. Mas soube-me tão bem.
Por vezes ocorre-me que se, por uma qualquer fatalidade, eu perdesse o que tenho ou soubesse que, em breve, estaria de partida, talvez me sentisse feliz na mesma, agradecida na mesma. Todos os momentos abençoados que tenho vivido estão inscritos no meu adn de uma forma indelével e são carga suficiente na bateria onde armazeno os meus momentos de felicidade.
E já nem me refiro aos momentos vividos junto àqueles a quem amo e que trago sempre no meu coração. Refiro-me a estas coisas simples como ver como estão grandes e bonitas as arvorezinhas que plantei tão pequeninas, como é especial o círculo de pedras que imaginei e concretizei (tantas vezes carregando ou empurrando pesos que anos mais tarde mostraram o desgaste que provocaram em algumas das articulações que mais se esforçaram), como se tornou tão fértil a terra antes tão árida, como devem ser felizes os pássaros que aqui habitam.
Estava a andar e a pensar como estão bonitos os verdes campos deste meu paraíso. Depois apareceram-me as palavras em inglês e dei por mim a sorrir. The green fields of heaven. Quem conhece o mundo dos negócios e dos investimentos saberá bem o que são os greenfields projects. E na verdade foi isso que, há uns anos, foi esta nossa aventura. Tudo à nossa disposição para daqui fazermos o que quiséssemos.
Imaginei caminhos, imaginei escadinhas de pedra, imaginei o lugar para os cedros, o lugar para os pinheiros, lá em baixo dois eucaliptos, os elegantes ciprestes pelos quais me apaixonei a ladearem os caminhos, a pimenteira toda leveza, as azinheiras que já cá estavam sob a forma de rústicos e informes arbustos e que fomos desbastando até se transformarem nas majestosas árvores de hoje.
Tudo se foi concretizando até que ganhou vida própria. O que agora vejo quando por aqui caminho é, tantas vezes, novo para mim. Devem ter sido sementinhas que voaram de longe e que esta terra acolheu. Tal como os gatinhos, os esquilos ou os pássaros ou os bichos cujas grandes pegadas encontramos e que aqui se acolhem, assim as flores, os cogumelos, os arbustos felizes que por aqui vão construindo a sua vida.
Saímos depois do trabalho, já não era nada cedo. No caminho, ele apontou para o céu e disse: 'patos'. Olhei. Um bando em formação. Um V perfeito. Mais atrás, uma linha perpendicular em relação ao eixo central do V, perfeita. Voavam numa elegante geometria. Ocorreu-me que ver uma coisa assim justifica que estejamos vivos. E senti-me feliz.
Quando estávamos quase a chegar, o meu marido perguntou se eu tinha trazido o computador. Não, não tinha trazido. Antes de sairmos, ele tinha dito que a mala do computador estava aberta, com fios a sair, e que não se arriscava a levá-la para o carro, que a levasse eu. Quando passei por lá, fechei-a. Estava no meio das outras coisas que eram para trazer. Ele é que costuma levar as coisas para o carro. Eu fico a fechar as janelas, ver se as luzes estão desligadas, e, no fim, fecho a porta e ligo o alarme.
Portanto, ele não trouxe pois tinha dito que não trazia e não pensou mais nisso e eu não trouxe pois pensava que o problema era a mala estar aberta e, como a fechei, nem pensei mais nisso.
Já anoitecera quando demos por ela. Como hoje tinha reuniões e muita coisa para despachar, tivemos que voltar atrás. Passou-me a felicidade que me tinha chegado do céu. Fiquei furiosa. Discutimos durante um bocado e depois ele calou-se e eu calei-me também.
Chegámos já passava das dez e meia da noite. Arrumámos as coisas, ele tomou banho. Jantámos tarde e felizmente tinha trazido restos pelo que foi apenas aquecer. Quando aqui cheguei à sala, já me tinha passado a arrelia. Aliás, já nem me lembrava de tal coisa. Tenho isto. Dão-me fúrias mas passam-me quase instantaneamente.
Hoje trabalhámos todo o dia, ambos. Cada um no seu sítio. O cão anda entre um e outro e, pelo meio, ladra quando ouve algum carro a passar na estrada. Felizmente só passa um de muito quando em quando pelo que, na maior parte do tempo, é o silêncio e o canto dos pássaros.
Quando fui andar lá em baixo, vi que que na quinta que num dos extremos fica pegada a um dos extremos da nossa estava um carro mas, como o meu sentido de observação para carros é nulo, fiquei na dúvida se era o mesmo de sempre. Perguntei ao meu marido. Disse que sim, claro, há anos que têm aquele carro.
A minha dúvida veio do facto de, na última vez que cá estivemos, os vizinhos terem cá vindo despedir-se de nós. Claro que não puderam entrar pois a fera de guarda fica possessa quando alguém que não conhece se abeira de nós. Falámos, pois, eles na estrada, do lado de fora do portão, nós no lado de dentro e o cabeludo aos saltos, no meio, a ladrar. Ao princípio mal ouvíamos o que nos diziam. Depois o urso percebeu que era gente de bem e acalmou-se. Os vizinhos vinham despedir-se. Venderam a quinta, quiseram contar-nos, desejar-nos saúde, felicidades.
É um casal muito diferente de nós. Têm o terreno muito limpo, sem uma ervinha, as árvores muito bem tratadas, árvores de fruta, e, entre elas, apenas terra. O nosso tem alecrim, rosmaninho, madressilva. E há pinheiros, cedros, aroeiras, azinheiras, oliveiras selvagens, eucaliptos. E pássaros que não acabam e, agora, esquilos. Eu, se houver sol, ando meio vestida, cabelo apanhado, caminho por caminhar, faço fotografias. A vizinha não poderia ser mais o meu oposto. Anda sempre arranjada, geralmente sempre da mesma maneira, muitas vezes anda ao pé do marido e já a vi a cavar, muito aplicada. O marido dela também é o oposto do meu. Anda sempre a trabalhar. Tem um pequeno tractor e lavra a terra, anda com serra eléctrica e não há um pé de flor fora do sítio nem um ramo por desbastar. O meu marido também trabalha mas é a cortar mato ou a desbastar árvores.
Uma vez queixaram-se do filho, que não ligava a isto e que nunca cá vinha nem nunca trazia as filhas. De facto, vejo-os sempre só aos dois e não me lembro de lá ver mais carros ou o barulho de crianças. Percebi que tinham pena. Também moram em Lisboa mas, ao contrário de nós, que gostamos de cá estar só por estar ou que cá temos, com alguma frequência, companhia e o barulho alegre de crianças, parecia que eles vinham para manter o terreno limpo. Nós também andamos ocupados mas não no mesmo registo.
Então, ali no portão, disseram que já não iam para novos, que manter o terreno limpo e as árvores tratadas é coisa que dá muito trabalho e que, por isso, tinham resolvido que era melhor desfazerem-se. Nunca se sentiram emocionalmente ligados à terra e à casa e o facto do filho e das netas sempre se terem mantido desligados desmotivaram-nos.
Ainda me lembro do meu pai olhar para o terreno dos vizinhos como um exemplo que, com pena dele, nós não seguíamos. Sempre tentei explicar-lhe que eu queria uma casa no campo não para me tornar agricultora mas para ter uma parcela de natureza na qual me pudesse sentir livre, que não queria transformar o campo num terreno arado mas, pelo contrário, queria ter um bosque com sombras e sol e pássaros e lagartixas e cogumelos a rebentar do chão e musgo a atapetar a terra quando vem o tempo da chuva.
Mas fiquei a pensar, com alguma apreensão, se algum dia, mais tarde, também sentiremos que vir para cá é ter um trabalho que já não poderemos suportar. Se isso acontecer, que seja daqui por muito tempo. Para já o que me interessa é o agora e agora é um prazer muito grande estar aqui. O outono em toda a força, folhas e folhas e folhas. Este dia feriado vou ter muito que varrer. Vou também aproveitar para fazer uma máquina de roupa e para fazer uma limpeza em casa. Mas trouxe um livro que também quero poder ler e espero ainda poder sentar-me ao sol, sem fazer nada. E hoje ao fim do dia fomos ao supermercado à vila mais próxima e trouxe carnes e legumes e enchidos para fazer um cozido que, quase aposto, vai espalhar um cheirinho bom, saído pela chaminé, até lá fora.
E está tudo certo.
Shadow and light
Life consists of polarities – light and dark, good and evil, sweet and bitter. We are no different. All of us have a shadow side. And it is this shadow or dark side that allows us to gain a sense of perspective, by allowing us to truly appreciate the light side of life. The more we acknowledge what we don’t like, the easier it is to see our gifts and strengths. It makes us a whole human being.
"There was a man who was so disturbed by his own shadow that he was determined to lose it for good. So he got up and ran. But his shadow kept up with him, and so he ran faster and faster until the exertion took its toll and he dropped. If he had simply stepped into the shade, sat down and stayed still [meditated], his shadow would have vanished." -Chuang Tzu, The Way
Estava eu a ter uma reunião, a porta da sala para o jardim aberta e o dog de guarda deitado, do lado de dentro, a dormir uma bela sesta.
De repente, ouvi-o a ladrar ferozmente. Como sempre, quando pressente perigo, não me abandona. Fica a ladrar para fora mas do lado de dentro. Mas, logo que viu quem era, saiu a correr, aos saltos, feliz da vida. Quem entra pelo lado da frente, se vier silenciosamente, não se ouve do lado das traseiras. Por isso, ferrado como ele estava, só deu por eles quando se acercaram.
Claro que depois já não os largou.
Entretanto, chegou o meu marido. Mas para os sons do meu marido, talvez porque são mais expectáveis, já ele está mais atento. Vai logo a correr para o jardim e, mal o meu marido entra, deita-se no chão para que ele lhe faça festas. Mas hoje deve ter-se atrasado um pouco pois, disse o meu marido, ficou no alinhamento de um pilar e não o viu. Mas o meu marido viu-o vir a correr e estacar, espantado, olhando em todas as direcções, admirado por não ver o dono.
Ao fim da tarde, já livres do trabalho e antes da hora da janta, fomos em grupo fazer uma caminhada. Habituado a passear geralmente apenas com os donos, o urso cabeludo veio saltitante e contente, feliz da vida.
Com os calores crescentes, alterámos a programação da rega. Na parte da frente, começa às nove da noite e vem vindo, por aí, em volta da casa, até que chega ao último ponto, do lado de trás, já mais tarde. Com esta novidade, o urso felpudo entra em órbita, tal a alegria. Persegue o jacto, anda em volta, e, claro está, molha-se de alto a baixo.
Tínhamos já acabado de jantar, um dos meninos foi atrás do urso. Veio a rir à gargalhada, numa risota espantada. Atrás, vinha a felpuda fera. Tinha reduzido de volume, parecia outro, um pinto pingão. Muda de fisionomia, fica mesmo cómico.
Depois, quando foi para tirarmos as fotografias de grupo, foi quase sempre o primeiro a vir a correr para o sofá onde nos sentámos todos, os rapazes a fazerem caretas, nós a rirmos. Não houve uma que ficasse totalmente bem: ou era o alf preto e cabeludo a saltar por cima de nós ou os rapazes a fazerem caras malucas. Recebi depois, por whatsapp, a melhor. Todos mais ou menos bem. E eu, no meio da confusão e da gargalhada geral, a rir, de pernas meio abertas, estragando a fotografia.
Quando se foram, ele foi atrás, despedir-se. Quando chegou a casa, finalmente sem outros motivos de distracção, atirou-se à comida. Comeu, comeu, depois arrotou, lambeu-se e veio até aqui à porta desta sala. Olhou para mim e, de súbito, deixou-se cair e aqui dorme a sono solto.
É um companheiro. Uma ternura. Um amigo. Um protector. Irrequieto e traquinas, faz buracos na terra e vem para casa sujar o chão, deu cabo dos meus brincos de princesa, já partiu bocados da sebe. Mas vem encostar-se a mim, deixa-se abraçar, gosta de festas. E gosta de todas as pessoas da família como se fizessem parte do rebanho que defende contra tudo e contra todos. É o nosso grande amigo, é uma presença afectuosa, um sopro de alegria que ilumina as nossas vidas.
Os cães são a nossa conexão com o paraíso. Eles não conhecem o mal, o ciúme ou o descontentamento.
Sentarmo-nos com um cão na encosta de uma colina numa tarde gloriosa é estar de volta ao Éden, onde não fazer nada não era chato. Era paz.
– Milan Kundera
As histórias estão mais cheias de exemplos da fidelidade dos cães do que dos amigos.
– Alexandre Papa
O único amigo absolutamente altruísta que o homem pode ter em este mundo egoísta, aquele que nunca o abandona, aquele que nunca se mostra ingrato ou traiçoeiro é seu cachorro.
- George Graham
Se você acha que é uma pessoa com alguma influência, tente dar ordens ao cachorro de outra pessoa.
- Sabedoria de cowboy
Você acha que os cães não estarão no céu? Digo-lhe, eles estarão lá muito antes de qualquer um de nós.
As fotografias que vêm a seguir ao meu fofo (fotografias feitas noutros dias, uma aqui, outra perto da praia, outras in heaven), são da autoria de Steve McCurry. A penúltima, adorável, foi feita em Portugal. As citações provêm também do post ao qual fanei o título: Our Link to Paradise
Foi a minha filha que, no outro dia, in heaven, se lembrou de que ali seria bom para fazerem paintball. Claro que isso desencadeou logo um movimento a favor. E até que a coisa se concretizasse foi um ápice. O meu filho, antes fervoroso praticante, ocupou-se do procurement.
Hoje juntaram-se todos aqui para jogar na zona da horta. Não há a largueza que há lá no campo mas dá para principiantes. Antes, o meu filho enviou as regras para que todos os guerrilheiros as soubessem de cor e salteado. Enviou também instruções para o dress code (calas de ganga, blusas de manga comprida, ténis).
Portanto, todos vestidos a rigor e na posse da sua arma, com a máscara posta e sabendo já as regras, deu-se início à refrega. O meu marido esteve de árbitro. Num lugar mais elevado zelou para que não houvesse batotas nem lesões desnecessárias. A minha filha ficou a cronometrar os ataques. Eu a fazer a reportagem. Os demais participaram, alinhando-se em equipas adversárias. O mais pequeno, que estava de máscara mas como mero acompanhante do pai, aborreceu-se fortemente, também queria uma arma. Como tal não é possível, desatou a chorar, desgostoso. Melhor: furioso. Felizmente a tia tinha no carro uma arma de água, usada na praia. E assim foi que, no meio daquela guerrilha, o mais pequeno desestabilizou toda a gente, guerrilheiros, árbitro e repórter, encharcando-os a todos. Creio que apenas poupou a tia, vá lá saber-se porquê.
Durante os raids, com disparos, gritos e corridas, o que se ouvia mais eram os gritos contra o jovem aguadeiro.
E, no final, no rescaldo, ninguém se tinha lesionado ou ficado especialmente magoado mas quase toda a gente estava um pinto.
A maior vítima foi a irmã, jovem guerrilheira que evidenciou ter, sobretudo, espírito pacifista. Ao invés dos demais que se perseguiam, atacavam ou armavam emboscadas, ela ficava escondida, esperando que ninguém desse por ela. De vez em quando disparava umas balas (para quem não saiba, as balas aqui são umas bolinhas biodegradáveis, de gelatina com tinta no meio), sem se perceber qual o objectivo pois, aparentemente, não visava nenhum alvo. Foi, pois, vítima fácil do irmão que a deixou a pingar.
Entretanto, eu tinha encomendado pizas. Por razões que devem ter tido a ver com a elevada procura, apenas chegaram cerca de hora e tal depois, já tudo estava cheio de fome e o meu marido impaciente e, como é seu costume, a atirar-me as culpas, no caso por não as ter encomendado logo às seis da tarde.
Jantámos já noite, de luz acesa -- na rua, claro -- e toda a gente conversou enquanto devorava as ditas.
Quando aqui cheguei ao sofá pensei que não ia conseguir escrever nada, de tal forma estava cheia de sono. É que hoje, para mal dos meus pecados, a alvorada tinha sido, uma vez mais, com as galinhas. E, também para mal dos meus pecados, não apenas, de véspera, tinha ido para a cama a horas inconfessáveis como tinha ido sem sono. Portanto, foi mais uma noite de descanso insucedido. Enquanto eles cá estão, estou bem, sem sono ou cansaço. A alegria de os ter juntos e alegres na companhia uns dos outros é tanta que qualquer vestígio de cansaço se dissipa na íntegra. Mal viram costas e chego ao sofá, volta em força. Chama-se a isto falta de férias. E, para esse padecimento, só há um tratamento possível: férias.
No meio destas minhas azáfamas e little afazeres ainda nem prestei atenção às autárquicas. Os cartazes já por aí andam mas parece que o espírito da coisa ainda não baixou em mim. Acho que já tenho claro em quem vou votar mas, ainda assim, gostava de conhecer as alternativas.
Mas há com cada cartaz... Em alguns casos é o mau gosto da pose ou o ridículo excesso de photoshop tirando vinte anos aos visados, noutros é o próprio fácies dos próprios que não ajuda.
Sei que não o devia revelar pois há coisas que, a priori, se sabe que não são especialmente bem comportadas ou politicamente correctas. Mas ninguém aqui é perfeito nem tenta fazer-se passar por isso. Portanto, vou contar.
É que o máximo de atenção que temos prestado às autárquicas é quando, indo de carro, nos deparamos com os cartazes. De um, o meu marido disse: 'Não deviam ter feito um cartaz com esta gaja. Com uma cara destas, haverá alguém que vá votar nela...?' e eu dou-lhe razão. Há caras que não enganam. Pior foi o comentário quando viu um cartaz com três mulheres. Disse: 'Deixem passar, deixem passar, nós somos fufas e o mundo vamos mudar'.
Parafraseava, como é óbvio, os ditos da célebre manif abaixo reportada e da qual tive conhecimento através de Mestre Plúvio ao partilhar tão preciosa pérola:
E, de facto, olhando aquelas três naquele cartaz, a ideia de participarem numa manif com aquele maravilhoso grito de ordem parece-me muito possível. Não que a orientação sexual dos candidatos tenha alguma coisa a ver com a orientação política de quem neles vota mas, ainda assim, não sei se aquele cartaz, com aquelas três, com as expressões e, sobretudo, os penteados que têm, faz muito sentido.
Apenas acrescento que o meu marido tem uma característica: pega na letra de uma canção e mantendo a métrica e o tom, troca-lhe as voltas, vira-a do avesso, torna-a absurda ou maliciosa. Felizmente só exercita esse seu dom ao pé de mim pois, geralmente, é altamente inconveniente. Desta vez, trocou parte do slogan e tornou-o absolutamente impróprio para salão. Mas, lá está, manteve a métrica e o sentido. Levou-o foi ainda mais longe. Tanto que obviamente não o posso aqui revelar. Private, private jokes.
E, para já, sobre autárquicas, é o que me apraz dizer. E, sobre qualquer outra coisa, para já, é a mesma coisa: aos costumes digo nada.
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Pinturas de Hsiao Chin ao som de Catrin Finch que interpreta Clear Sky
Quando eu era pequena tinha medos. Aliás, tinha um medo. Um senhor medo: um pavor. Tinha medo de ver alguém com alguma doença que me parecesse grave. Era um medo incapacitante. Toda eu tremia por dentro, aterrorizada. Não sei precisar quando nasceu esse medo. Seria quando o meu avô materno morreu? Não sei. Pensava que teria uns três anos quando ele morreu num acidente. Afinal, tinha dois anos, disse-mo a minha mãe. No outro dia, quando morreu a filha do Tony Carreira, a minha mãe disse que nem queria imaginar o choque da família ao receber a notícia. Chorava enquanto falava. Perguntei porque chorava assim. Disse-me que se lembrava de quando recebeu a notícia do acidente do meu avô. Diz que até hoje ainda não recuperou do choque e desgosto. Imagino como terá sido, na altura. Tinha vinte e cinco anos, ela. Tinha uma relação por vezes um pouco indiferente em relação à mãe mas era amicíssima dele. Durante toda a vida presenciei o desgosto pela morte prematura do pai. Foi um acidente traumatizante. A minha avó, que era apaixonada pelo marido e que nesse dia ia ao cinema com ele, teria quarenta e um ou quarenta e dois. Durante anos a vi chorar ao falar do meu avô. Vestiu luto durante quase toda a vida. Na altura esconderam de mim (já o contei muitas vezes) mas devo ter percebido. Penso que é, portanto, provável que tenha nascido aí o meu medo da morte.
Depois foi um acidente grave que aconteceu ao irmão da namorada de um dos meus tios, aquela que veio a casar com ele e de quem eu ainda sinto muitas saudades, custando-me, por vezes, até a acreditar que já se tenha ido, tão alegre era e tão saudável parecia. Ficou paraplégico, esse irmão dela, o mais novo de cinco irmãos. E eu, que o conhecia bem, um jovem simpático e tímido, ao ver a consternação de toda a gente, dos meus pais, dos meus avós, dos meus dois tios, jovens como ele, fiquei soterrada pela dor que sentia em toda a gente. Esteve internado durante muito tempo. Eu desejava que ele não regressasse, antevendo já o terror que nasceria da proximidade. Lá por casa, sabendo-me muito sensível a esses sofrimentos, escondiam de mim, falavam por meias palavras ou em voz baixa. Eu ouvia, pressentia, adivinhava. Os pais dessa que viria a ser minha tia, face ao estado em que tinha ficado o filho, tiveram que mudar de casa. Era uma casa térrea que ficava na mesma rua que a escola infantil em que eu andava. E eu, a partir daí, passei a ter medo de ir para aquele lado do recreio com pavor de o ver ou de me aperceber que alguma coisa de grave estava a acontecer. Mas devia perceber que, se falasse neste meu terror, preocuparia os meus pais. Por isso, calava-o, escondia-o.
Depois foi o pai de uma colega de escola, uma a casa de quem eu ia muito até porque, por coincidência, também morava perto da escola. Além disso, ele era colega do meu pai. Eu percebia que se passava alguma coisa de grave e morria de medo. Nunca mais lá fui a casa, para desgosto da minha colega. Nem falava com ela na doença do pai com medo de descobrir que a morte rondava a casa. Quando ele morreu, a minha vontade era não ir à escola. Fui mas nem olhava para a rua, aturdida de pavor. E quando ela regressou à escola nunca falei na morte do pai com medo de saber pormenores e com uma pena imensa por ela já não ter pai e porque tinha ouvido dizer que ele estava muito magro, irreconhecível, e que tinha muitas dores.
Durante anos íamos passear e fazer compras à Baixa, usando um transporte público que era usado por quem também ia para a 'Palhavã', o IPO. O pavor que eu sentia, o terror que me trucidava as entranhas só eu sei. Se via alguém com pensos, ligaduras ou ar de doente quase morria de medo. Mas escondia-o. Tinha medo de preocupar os meus pais. Penso que eles perceberam pois tenho ideia que tentavam que eu compreendesse que não tinha mal nenhum. Mas era mais forte que eu.
Feridas, chagas, sofrimentos terminais, tudo isso sempre me aterrorizou. Mas só nos outros. Penso que, no fundo, sobretudo, tinha medo de deixar transparecer o meu medo e que as outras pessoas se sentissem ainda piores por verem os cuidados e medos que me inspiravam. E a verdade é que penso que isso ainda subsiste em mim, embora mais controlado.
Comigo, no entanto, não existe esse medo. Em mim, suporto relativamente bem a dor física, tenho uma certa coragem e desprendimento em relação a mim própria.
Já o contei. Desculpem que me repita. Quando era pequena, talvez três anos, parti uma clavícula. Estava em casa sozinha com o meu avô paterno. Gostava de me pôr de joelhos em cima de um banco que havia na cozinha e de me balouçar lá em cima. Ninguém queria que eu fizesse isso mas eu gostava de pôr o banco em dois pés e de o inclinar para ver até onde conseguia equilibrá-lo. Os meus pais e a minha avó agarravam-me, zangavam-se. Mas o meu avô, muito meu amigo e muito condescendente, tinha dificuldade em zangar-se. E, naquele dia, o banco virou-se, eu caí e, ao contrário do que costumava acontecer, chorei muito. O meu avô percebeu logo que alguma coisa se passava e mandou chamar o meu pai que estava a trabalhar. Quando o meu pai chegou, lembro-me bem, eu estava na cama do quarto ao lado do quarto dos meus avós e estava a chorar. O meu pai vinha assustado e ao tentar perceber o que se passava deve ter-me mexido no braço ou deve ter visto, através da pele, que o osso estava partido. E eu vi o meu avô também assustado e a declarar-se culpado, e o meu pai, aflito, quase a chorar. Então, para os descansar, disse que já não me doía e fiz de tudo para não chorar. Fui de imediato levada ao médico que, à vista, percebeu logo o que se passava. Tinham-me pegado ao colo e puseram-me numa marquesa que me lembro como sendo muito alta mas que, se calhar, era normal. Sei que o médico disse que ia, com as mãos, endireitar os ossos, alinhando as duas partes. Avisou que ia doer e que eu tinha que ser corajosa. E fui. Lembro-me bem. Doeu-me muito. Mas não chorei. Os meus pais sim. O médico ficou espantado com a coragem daquela criança; e eu hoje espanto-me com isto.
Toda a vida fiz de tudo para me mostrar corajosa para não assustar os outros.
Corria muito, descia a correr por veredas, voava pelo campo em descidas acentuadas, subia muros e árvores, brincava muito, caía muito, esfolava-me toda. Para não assustar os outros, não chorava. Tenho os joelhos com marcas, tamanhos os ferimentos que fiz. Por vezes, infectavam. Os meus pais desinfectavam, muitas vezes com tintura de iodo, que me ardia e magoava muito. Lembro-me, em especial, já andava na primária, de um ferimento profundo que fiz num dos joelhos. Estava ainda a cicatrizar, voltei a cair, entrou areia. Infectou, já tinha pus. Pedi, então, ao filho de uma vizinha da minha avó, um recém adolescente, que tratasse de mim para não preocupar nem a minha avó nem os meus pais. Ainda me lembro: eu sentada num muro, ele com um pauzinho a retirar os grãos de areia da carne viva. O que me doía... Depois ele foi a casa buscar mercurocromo. Quando a minha mãe viu o estado em que aquilo estava, ficou toda zangada. Eu não me queixava. Por causa disso, não tive tétano por um triz, tendo que ser levada, a meio da noite, de urgência, para o hospital, onde, a custo, me espetaram uma seringa na barriga.
E de tal maneira me habituei a esconder as minhas dores que acabei mesmo por me tornar a modos que estoica em relação a mim própria.
Em contrapartida, mantive-me medrosa em relação aos outros. Por exemplo, com os meus filhos sempre fui de uma fragilidade total, por vezes absurda. Mal tinham alguma coisa, logo eu ficava num estado de nervos que frequentemente não era proporcional ao mal que os assolava. Penso que notoriamente vinha desses tempos primordiais em que o medo me estrangulava. Mas nem era preciso ser alguma coisa de especial: bastava uma coisinha. Lembro-me, por exemplo, do que eu sofria quando eles tinham os dentes quase a cair. Nunca fui capaz de os ajudar a tirá-los. Uma vez a minha filha tinha um dente preso por um fio. Já nem conseguia comer. Estávamos numas termas (um tempo abençoado, esse). E estávamos a almoçar no restaurante de lá. Com o dente preso por um fio de carne, fomos as duas ao quarto a ver se conseguíamos resolver aquilo. Mas qual quê... Só a perspetiva de poder magoá-la me deixava transida. Ela a querer que eu puxasse e eu aflita. Pior: já a sentir-me mal, quase a desmaiar. A miúda, pequena, a tranquilizar-me e a incentivar-me e eu está quieto. Tive que me sentar na cama e ela, corajosa, ao espelho, teve que resolver, sozinha, o assunto. Às vezes ainda fala disso. Uma vez foi o meu filho. Também caiu de um banco na cozinha, a mesma coisa que eu. Só que se magoou num dedo, cortou-se. O meu pânico ao ver como ele tinha o dedo, ao pensar como lhe devia doer, a minha aflição quase despropositada. Felizmente não sou de exteriorizar senão ainda mais ridículo ficaria. Fico transida, sem falar, simplesmente num temor enorme.
E vinha para escrever sobre outra coisa e, afinal, distraí-me e acabei por me perder. Não era de nada disto que eu vinha para falar. Ia contar que, à ida para o campo, íamos a ouvir o Jaime Nogueira Pinto e o Pedro Tadeu a falarem da pandemia e das pestes ao longo da história, tema do último livro do Jaime Nogueira Pinto. E falavam de como isto vai mudar a vida e o mundo e do medo com que aprenderemos a viver porque primeiro que esta se extinga muito tempo decorrerá e, a seguir a esta, outra pandemia virá. Aprenderemos a viver com medo do invisível, do mal que nos pode chegar através de um filho, de um neto, de um amigo. E falou de como é desolador o estado da baixa de Lisboa, muitas lojas fechadas, provavelmente definitivamente fechadas. E eu pensei como deve ser frustrante e triste para as pessoas mais velhas que poderiam viver os seus últimos anos mais tranquilamente e agora a terem que andar de máscara, sem a ternura de um beijo ou abraço, longe da companhia dos seus.
À tarde, ao receber o telefonema de um amigo, soube que uns outros tinham tido covid e, mais estranho, soube que uma delas, que teve covid há quatro meses, semanas de sintomas e testes positivos, agora, num teste serológico, soube que não está imune. Foi a outro lugar fazer o mesmo teste, convencida que o primeiro estava errado, e obteve a confirmação: está como se não tivesse tido covid. E fiquei a pensar que esta porcaria desta doença, de facto, tira o tapete a toda a gente. Parece não seguir um padrão e isso mais difícil se torna de gerir. Uma roleta russa.
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Mas isto das pandemias e dos medos até era para ser de passagem pois a minha ideia era mesmo falar da maravilha dos verdes in heaven. Do perfume do campo. Dos passarinhos e dos seus alegres e inocentes cânticos. Dos cogumelos. E da gata.
Num blog, a escrita deve ser contida, parca. E eu, sabendo disso, esqueço-me e escrevo desabaladamente, esquecendo-me de que pouca gente deverá ter paciência para estes longos testamentos. Por isso, agora que vejo o comprimento do que já escrevi, não vou poder alongar-me a descrever o encantamento em que por ali andei. Apanhei laranjas e tangerinas, comi algumas, fotografei tudo o que vi, vagueei, maravilhei-me.
A quantidade e variedade de cogumelos continua a deixar-me espantada. Hoje até com uns redondos e peludos, coisa nunca vista, me deparei. Outros, umas bolinhas acastanhadas, compactas, superfície também a querer dar-se ares de felpuda. Outros cor de laranja, ondulados e como se de borracha, outros translúcidos, outro grande, quase azul. Uns grandes, outros minúsculos. Outros aos folhos verdes, como se de bordado inglês às palas. Não sei que terra mágica virou o meu querido e abençoado heaven para dele saírem seres tão extraordinários. Nem sei o significado disto, se é que tem significado. Mas será que, nas grutas, também vivem animais assim, às cores, seres nunca sequer imaginados? Teria graça.
E, de novo, eu a levitar por ali, silenciosa, em estado de êxtase, e ela, esfíngica, a observar-me.
Aproximei-me, quase emocionada por ela estar ali, parada, a ver-me. Deixou-se estar. Fui-me aproximando, falando com ela. E ela a ver-me. Até que, sem querer desliguei a máquina e, ao voltar a ligar, o som de arranque a fez ir-se embora. É esquiva. Mas sinto-a como um ser superior.
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Como é bom de ver, as fotografias foram feitas in heavene acompanham The Lullaby Project pelas mãos de Catrin Finch & Seckou Keita
Dias de calor, de tranquilidade. Ontem lavei cortinados, lavei vidros, lavei um tapetão de arraiolos. Hoje não, hoje foram reuniões de seguida, não houve intervalos para limpezas. Talvez esta quarta-feira consiga. Mas tenho várias outras coisas para fazer, para além de trabalhar: tenho telefonemas, agendamentos. Contudo, por onde passo vou diagnosticando: devia varrer ali ao fundo, devia lavar o outro tapete, devia pôr reparador de móveis ali, devia fazer uma boneca e limpar teias de aranha na clarabóia. Só que, entre isto e aquilo, o tempo acaba por não chegar. Amanhã, para além do resto, quero escrever um mail. Mas tem que ser coisa bem feita, devidamente objectiva e sintética. Não pode ser feita no meio de uma ofensiva com a esfregona ou enquanto o caldo não levanta fervura.
Com isto, por incrível que possa parecer, ainda não peguei no livro novo. Não sei que mistério é este: dantes parece que tinha tempo para tudo. Agora não tenho tempo para nada. O meu marido, que agora partilha o mesmo espaço de trabalho que eu, diz: tempo demais ao telefone. Talvez. Mas se me ligam e falam, falam, falam, ia eu ser deselegante e inventar desculpa esfarrapada para atalhar a conversa? Não, não sou capaz. Não sou de inventar desculpa, dizer que me estão a chamar. Nunca fui disso. Aguento firme só porque não sou capaz de forjar argumento para interromper. Problema meu, estou certa. Problema meu não ser capaz de omitir opinião, de usar disfarce. Não consigo dizer outra coisa que não a verdade, ou, pelo menos, aquilo que o meu entendimento considera verdade. Se acho que é preto e que está frio não consigo fazer de conta que é cinzento e que até está morninho. Colega que me conhece muito bem tenta aconselhar-me, dizendo-me frequentemente: não precisa de dizer tudo o que pensa, deixe estar. Outras vezes, lembra-me: ter razão antes de tempo é, geralmente, igual a não ter razão. E eu pergunto-lhe: 'Mas, acompanhando as minhas opiniões, os meus 'desalinhamentos', as incompreensões de que, volta e meia, sou vítima, a posteriori o que tem a dizer das minhas razões?' E ele diz: 'Então, já sabe, reconheço que tem geralmente razão. Mas como a tem antes dos outros lá chegarem, passa por não ter'. Acresce um outro defeito muito meu: como quero evitar que os outros se estampem, insisto nos alertas, esfarrapo-me para que se previnam contra males que antecipo. E, afinal, as pessoas não querem ser alertadas, querem é bater com a cabeça na parede. Ele diz, para me consolar: 'Mas já sabe que é assim, já devia estar habituada'. Pois. Não estou. Ainda não aprendi a ficar calada, ainda não aprendi a desinteressar-me dos problemas que sei que vão acontecer. E, quando acontecem, fico doente, furiosa comigo mesmo por não ter sido capaz de evitá-los, por não ter sabido ser persuasiva, por ter sido tão directa que fiz com que as pessoas me julgassem alienada.
Já vi empresas irem pelo cano, prejuízos de milhões, quando anos antes previ que ia acontecer e arduamente batalhei para que se evitasse o avolumar do prejuízo, alertando, isolada, para que era um fiasco quando todos falavam em sucesso -- e, por isso, fui muitas vezes chamada a atenção por ser desalinhada. Tal como já vi gente cair em desgraça e ser apontada e corrida como um flop quando desde há anos vinha alertando para que aquilo ali era era um bluff. Mas o meu amigo tem razão: serve para quê a gente ver antes dos outros ou vermos o que os outros não querem ver... se a verdade é mesmo esta: se os outros não querem ver antes de ser impossível não ver, para quê insistir? O ensaio sobre a cegueira tem muitos casos de estudo.
Ocorre-me, então, que, se calhar, ainda não conquistei aquele calo que endurece a alma, que a envolve, a adormece, a impede de se manifestar. Aquela indiferença. Aquele deixar andar. Ver e ficar calada, na minha. Pensar: se querem estrepar-se pois que se estrepem. Fingir. Fazer de conta que não vejo. Alinhar-me. Ser figurante num filme que sei que não vai acabar bem mas, até que acabe, fazer de conta que acredito que vai ter final feliz.
Falta-me, na volta, atingir aquele grau de maturidade que impede a malta de fazer ondas, que faz com que se fique de bico caladinho haja o que houver.
E, para me ajudar a perceber em que etapa de maturidade me encontro, eis que o meu amigo algoritmo, sem que qualquer indício da minha curiosidade eu lhe tivesse dado, me aparece a sugerir um teste para descobrir a minha idade mental. Nem mais. Acreditem ou não, liguei o computador, abri o Youtube e cá estava este vídeo. Não resisti. Pensei: tenho ideia que já uma vez me tinha dado que sou pouco mais que uma teenager. Mas hoje pensei que, se calhar, já estou é para lá do prazo de validade, demente, cheché, já vejo mas é as coisas deturpadas. Talvez vista cansada, espírito derreado, cabeça esvaída. Sei lá.
Mas não: idade mental entre 21 e 35 anos.
Segundo ali se diz: estou a caminho de consolidar a minha personalidade adulta, estou a descobrir o que é bom para mim, sou séria e responsável quando devo sê-lo; mas também sei divertir-me!
E toda esta conversa apesar de ter sérias dúvidas a propósito do rigor de tudo isto... Mas sei lá. Os mais 'sérios', 'conceituados' e caros assessments não são baseados em perguntas por vezes também tão insólitas...?
Por isso, aqui está o teste. Façam-no, avaliem o que dá para o vosso caso, ajuízem. e, se for caso disso, esqueçam.
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Mas também pode dar-se o caso de que esta conversa mais psi não seja bem a vossa praia e que prefiram coisa mais concreta e útil. E, assim sendo, aqui vai a segunda sugestão do camarada algoritmo, um vídeo daqueles que vejo com atenção do princípio ao fim pois descubro coisas em que nunca tinha reparado e que me parecem de inegável utilidade.