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quarta-feira, novembro 15, 2023

Agora que Marcelo deveria agir e falar é que está tão quieto, tão calado? --
Hoje sou eu que falo

 


O que aconteceu deixa-me doente. Ouvi na televisão que felizmente a Justiça está a funcionar já que o Juiz de Instrução praticamente deitou por terra a macacada que o Ministério Público tinha feito. Não concordo. Tudo estaria bem se as coisas fossem rápidas e se os danos não tivessem sido tão dramáticos, danos para as vítimas da infâmia e danos para todo o País.

Quanto tempo vai passar primeiro que aquelas cinco almas mais as outras que foram salpicadas pela porcaria que o Ministério Público fez se vejam totalmente livres de chatices? E quem lhes vai pagar os advogados? E a interrupção nas suas vidas? Os prejuízos de toda a ordem, nomeadamente os reputacionais e os morais?

E tudo porque quiseram agilizar projectos estratégicos para o país. Não há corrupção nem prevaricação. Nada. Apenas preocupação para que os projectos andem para a frente.

Os portugueses, há cerca de ano e meio, deram a maioria absoluta ao PS.

E o Ministério Público, que parece que tem uma agenda política própria, parece ter resolvido fazer a vontade ao Chega e a uns quantos jornalistas-comentadeiros (e, como se tem visto, também ao Presidente da República), arranjando maneira de lançar o opróbio sobre António Costa que, face à infâmia lançada pelo vil comunicado, não teve outro caminho senão o da demissão.

Estamos onde estamos e ainda não vi a Lucília Gago demitir-se, não vi Marcelo vir a terreiro para correr com ela, não vi que os Procuradores que fizeram a porcaria que fizeram tivessem sido suspensos. 

Nem vi que se tivesse apurado quem passou as escutas ou os resultados das buscas para a comunicação social e se tivesse movido um processo contra esses criminosos.

Nem vi Marcelo vir também a terreiro explicar ao País o que António Costa disse no sábado: que governar um país é, dentro da legalidade, mover todos os esforços, pressionar quem tiver que ser pressionado, articular os intervenientes para que os projectos e os serviços funcionem bem e rapidamente, atrair e reter investimento, criar postos de trabalho interessantes, dinamizar a economia e o país. 

Também não vi Marcelo vir a terreiro explicar que há linhas vermelhas em democracia que jamais devem ser pisadas... e que o foram. Nem o vi vir dizer à Comunicação Social que não é suposto que se porte como oposição, ainda por cima uma oposição populista pois isso mina a confiança nas instituições democráticas.

E o não ter vindo fazer isso, abre espaço a que campeiem as acusações vãs, as confusões, o descrédito nos políticos, nos governantes. Abre espaço a que ninguém com uma vida estabelecida se arrisque a ir para a política ou aceite lugares de responsabilidade governativa.

Faria bem, Marcelo, se fizesse uma comunicação ao País em que mostrasse que é o Presidente de todos os portugueses e que quer, acima de tudo, o bem do País, o seu funcionamento normal, inteligente, coerente, democrático.

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Votarei PS nas próximas eleições, seja qual for o líder. Não morro de amores por nenhum dos que já se chegaram à frente. Mas, seja qual for, estou como António Costa: são muito mais competentes do que qualquer dos líderes da oposição. E como penso, acima de tudo, no progresso, no desenvolvimento, na democracia saudável, na modernidade, no sentido de Estado, e porque quero um País bom para os meus filhos e netos, não tenho qualquer dúvida em votar como votarei.

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Tirando isso, estou um pouco cansada. Por razões que não vêm ao caso, os meus dias não têm sido especialmente fáceis. E o que ainda me tem deitado mais por terra é ver a estupidez do que aconteceu. Tudo evitável. Tudo absurdo demais. Caraças.

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A fotografia que fiz no outro dia à noite vem na companhia de Bach sobre o filme Nostalghia de Tarkovsky 

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Em nome do meu marido, agradeço todos os comentários

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Uma boa quarta-feira.

Saúde. Força. Paz.

terça-feira, novembro 07, 2023

Dia complicado em que se salvaram as favas com entrecosto

 



Dia complexo, complexo. Um dia destes logo vejo se me dá para contar... Mas não foi totalmente mau. Pelo menos, até ver, está a acabar sem crises. 

Para agravar está a doer-me a garganta. Vou ter que ir chupar uma pastilha.

Está mais frio. O meu marido diz que isto da garganta é de eu andar de manga curta quando está tempo para casacão.

Há bocado adormeci. Tive que me levantar muito cedo e, antes, já tinha sido acordada. O meu corpo de pensionista desabituada de horários e despertares antecipados já se ressente.

Pelo meio, conversa boa com uma amiga de longa data. Muito diferente de mim mas muito articuladas.

E, apesar de tudo, ainda houve tempo para um bocado de boa leitura ao som de boa música.

E também ida ao supermercado e, cá em casa, embora um bocado fora de horas, culinária.

Para além da sopa de legumes fiz uma coisa de que gostamos bastante, que faço pouco (porque me esqueço) e que ficou bem boa.

Vou contar como fiz as Favas com Entrecosto

Num tacho coloquei um pouco de azeite, uma cebola gigante cortada aos bocados, um alho francês inteiro, cortado aos bocados, claro, salsa, louro. Tudo a frigir, sem queimar nem pouco mais ou menos. Depois coloquei tiras de entrecosto com carninha boa (ou seja, sem ser só pele e osso). Coloquei um pouco de sal, uns bocadinhos de bacon, poucos, só para dar um saborzinho engraçado. Envolvi para selar mais ou menos a carne. Juntei meia cerveja. Com o tacho bem tapado, ficou a cozinhar.

Quando se via a carne a querer despegar dos ossos, juntei uma cenoura grande aos bocadinhos, meia curgete (com casca) aos bocados e uma embalagem de favas (cuja embalagem estava há umas duas ou três horas fora do congelador). Deixei cozinhar até estar tudo macio.

Facílimo. Creio que saudável. Económico. 

Acompanhámos com salada de alface com coentros.

Quanto ao resto, digam-me vocês o que aconteceu pelo país e pelo mundo (como diz o outro). Digam-me, é como quem diz. É que a verdade é que desconheço mas não sinto falta. Portanto, se não aconteceu nada de bom, não preciso que me digam. Um dia destes vou pesar os prós e os contras de hibernar.

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Um dia bom

Saúde. Serenidade. Paz.

sábado, março 18, 2023

Lucy

 

Tenho a informar que, certamente fruto da sessão de hidroginástica e da meia dúzia de braçadas de ontem, esta sexta-feira dormi até depois das onze da manhã. Nem mais. Acordei e vi as horas para avaliar se ainda era boa hora para dar meia volta e dormir mais uma ou duas horas. Onze e vinte. De penalti, desde que me deitei, às duas e pouco, até às onze e vinte. Se não tivesse visto as horas de certeza que o sono se prolongaria, o corpo pedia-me mais. Levantei-me com sono. 

De tarde, tanto era o sono, fui para o meu cadeirão reclinável, puxei uma mantinha, fechei os olhos e foi imediato, boa noite cinderela. 

Infelizmente o cadeirão está junto à janela de que o urso de guarda fez guarita. Assim, mal passa um carro ou uma pessoa ou mal o cão do lado se mexe, aí está a fera a ladrar como se não houvesse amanhã. Por isso, a sesta, se existiu, foi de minutos. 

E o dia foi completamente improdutivo. Uma ressaca a preceito como se um ontem tivesse sido um dia de excessos. Mal dá para acreditar.

Parece que continua um qualquer bicho dentro de mim a sugar-me a carga da bateria. Ando sem pilha. O olfacto e o sabor estão repostos, a tosse foi-se e só de vez em quando fico com algum pingo ou alguma sensação de estar como que a resfriar-me ou a começar a doer-me a garganta. Coisas breves, episódicas, mal vêm assim se vão. Agora esta falta de energia mantém-se. É uma estupidez sem explicação

Apesar disso, entre uma breve caminhada a meio do dia (na verdade, a seguir a ter tomado o pequeno almoço) e a do fim do dia, fiz mais de dez mil passos. Mas esta última, debaixo de vento e frio, foi feita a pensar no bem que ia saber-me a caminha daí por mais um bocado. E sinto as pálpebras pesadas como se estivesse com défice de sono. Dá para entender...? Não dá.

E o meu marido está na mesma. Continua a levantar-se cedo, mas, de dia, passa largos períodos deitado no sofá (hoje, por exemplo, a rever os penaltis do jogo de ontem e, provavelmente também a dormitar) e agora, depois de se ter deixado dormir há séculos, já foi para a cama.

Claro que não fomos ao ginásio. Constatámos o óbvio: é melhor deixarmos passar mais uns dias.

Caraças para esta falta de energia. 

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E depois do boletim clínico (sorry por abusar da vossa santíssima paciência), vamos ao que interessa. 

Lucy. 13 anos. Um talento increditável.

O cérebro humano, esse vasto universo desconhecido, é extraordinário. Dá ideia que, nos casos em que os recursos não são distribuídos como usualmente, em vez de se perderem, não: são alocados a outras zonas. 

O caso de Lucy (tal como, por exemplo, o de Kodi Lee), é ilustrativo dessa hipótese. 

Lucy também é autista -- autismo severo --, e cega. Ainda quase bebé teve que ser operada a tumores malignos nos olhos. Tem também algum atraso no seu desenvolvimento. E, no entanto, apesar de parecer viver isolada do mundo, tem um dom extraordinário. Toca piano de uma forma absoluta. Todo o seu corpo vibra. Não se consegue dizer se é ela que procura a música para se entregar ou se é a música que a procura a ela para a envolver e conduzir.

O professor de piano, Daniel Bath, descreve o peculiar e difícil método de ensino. Diz também que nunca trabalhou com ninguém tão talentoso quanto ela. Ele toca, ela reproduz. Ela engana-se, ele põe as mãos dela sobre as suas. Ela escolhe o que tocar. Ou Bach ou Chopin. Ou Debussy. Outras vezes jazz. Intercala. E improvisa. 

Vê-se e ouve-se e não se acredita. Muito comovente. 

Mika e Lang Lang, que fazem parte do júri, também se mostram surpreendidos e emocionados.

Para assistir com o coração.

Lucy 
Ao vivo no Royal Festival Hall na  final de "The Piano"


E abaixo um vídeo em que se percebe melhor

The Amber Trust  -- A história de Lucy


Um bom sábado
Saúde. Amor. Paz.

sábado, novembro 12, 2022

Kherson e o tudo o mais que dificilmente compreendo

 


Há muitos assuntos relevantes, cada um em seu patamar. E eu não sei bem em que patamar hoje quero estar. E este 'querer' não tem a ver com afinidade mas com capacidade. Poderia até ter vontade de me abeirar de vários. Mas sei que não iria conseguir. 

Longe vão os tempos em que ficava bem com meia dúzia de horas de sono e, se falo em meia dúzia, até estou a pecar por excesso. Não há muito ia pelo menos uma vez por mês passar o dia em reuniões nas instalações da empresa a norte. Levantava-me às cinco e tal, saía de casa às seis depois de me ter deitado à uma ou duas. E, muitas vezes, com receio de não acordar com o despertador, quase não conseguia pregar olho nas escassas horas de cama. E, no entanto, estava fresca e aguentava um dia inteiro de reuniões, coffee breaks, almoço, viagens. Chegava a casa tarde, voltava a deitar-me tarde e no dia seguinte já estava fresca e a pé às sete e tal e pronta para outro dia.

Agora já não é bem assim. Nos últimos meses passei duas noites no hospital com a minha mãe (felizmente, saindo ela de lá bem) e, em ambos os casos, longas horas a pé (prefiro estar cá fora a andar de um lado para o outro do que estar no meio da apinhada sala de espera). E fiquei francamente cansada. Comparando com a minha resistência dos tempos dos esticões aquando das idas do meu pai às urgências não há comparação. Agora o meu corpo vai-se mais abaixo. Fico a sentir-me quase de gatas.

Ou seja, sinto necessidade de descansar, tenho vontade de ficar a dormir até mais tarde. 

E, por isso, chego a esta hora ou ao fim da semana e sinto que me falta a energia para falar de muitos assuntos. 

- As alterações climáticas e a nossa cultura e a nossa organização enquanto sociedade que nos leva a fazer uma vida assente no consumo de produtos produzidos a milhas, em viagens de avião a preço de uva mijona, em espaços industriais ou de serviços que se situam longe das zonas residenciais, em hábitos que são pouco saudáveis -- seria um dos temas em que hoje gostaria de falar sobretudo porque não vejo que estejamos colectivamente conscientes da inflexão que tem que ser feita, sobretudo porque não estou a perceber bem o rumo que isto está a levar.

- O Twitter, essa plataforma que meio mundo utiliza, nomeadamente políticos, empresários e tutti quanti foi tomada de assalto por um maluco encartado que despediu uns milhares e depois disse que os ia readmitir, depois que ia cobrar a certificação das contas verdadeiras e que ia fazer e depois desfazer,  montes de ideias ideias peregrinas, agora, perante a debandada geral, está nas bocas do mundo pelo risco de falência -- e esse seria outro dos temas sobre o qual também gostaria de falar. 

[A day of chaos brings Twitter closer to the brink]

[Two weeks after Elon Musk completed his acquisition of Twitter, the future of the company has never looked less certain. In the past week alone, one of the world’s most influential social networks has laid off half its workforce; alienated powerful advertisers; blown up key aspects of its product, then repeatedly launched and un-launched other features aimed at compensating for it; and witnessed an exodus of senior executives]

Sobretudo porque há em tudo isto muita coisa que não percebo, a começar naquilo que, pelos vistos, não oferece dúvidas aos milhões que tuitam. 

- Claro que também me apeteceria falar dos milhares de despedimentos do Facebook/Instagram e do que um dia aí virá para desgosto de quem se viciou na exposição pública da vida privada. Sobretudo porque um dia será muito claro que, para além dos fenómenos de adição ou de depressão, estas plataformas são um risco real para a democracia.

- Marcelo e as gaffes diárias (ou será horárias?) e a sua compulsiva necessidade de comentar tudo, seja de que natureza for, a qualquer hora, em qualquer contexto levando aos seus cada vez mais frequentes excessos, enganos, tons inapropriados, palavras deslocadas e/ou escusadas, tiradas infelizes, ideias trocadas e gatadas -- seria outro tema a que gostaria de deitar mão, em especial num dia em que, uma vez mais, se saiu com uma que logo mereceu reparos, correcções e sorrisos. Sobretudo não percebo se o senhor não está bem de vez ou se é achaque passageiro.

- Ou Matt Hancock, o bacano ex-ministro da Saúde inglês, demitido depois de ser apanhado abraçado e a apalpar o rabo a uma colega numa altura em que o distanciamento era obrigatório, e agora deputado, que está agora a participar num reality show, deixando os ingleses divertidíssimos e os conservadores em estado de rebuçado -- e disso eu apetecia-me mesmo falar. Sobretudo porque não percebo bem qual a dele e porque, para dizer a verdade, gostava de ver como reagiríamos se um qualquer nosso ex ministro e ainda deputado se metesse numa destas, a comer insectos e a conviver com cobras.

- E tantos mais temas... 

Mas não dá. O corpo está a pedir-me caminha.

Contudo, ainda assim, para que a vossa visita a esta vossa casa não seja completamente em vão, vou tentar falar de Kherson. Um bocadinho, que não dá para mais. E falo contente, claro. Como não...? Claro que fico contente. As imagens de felicidade dos ucranianos, a jovem a tocar violino na curva da estrada... Claro que tenho que me sentir contente. São momentos épicos.

Desde o dia um, quando -- petrificada e revoltada -- caí na real e constatei que a Rússia tinha mesmo invadido a Ucrânia, tive para mim que Putin não estava apenas a assassinar muitos inocentes e a arrasar um país, estava também a cavar a sua própria sepultura. 

Putin manda destruir prédios, pontes, escolas, teatros, hospitais, manda chacinar uma população e eu olho para o que a comunicação social mostra e o que vejo é a derrocada do regime corrupto e ditatorial de Putin, o que vejo é um perdedor, um desgraçado. E vejo também a incrível força anímica do povo ucraniano, um povo necessariamente vitorioso. 

Contudo, o que se passou com Kherson é qualquer coisa que não entendo bem. É uma vitória ucraniana, certamente. Mas se isso corresponder ao que parece, uma pesada e humilhante derrota russa, a situação será ainda mais caricata. Custa-me a crer que as forças do Kremlin sejam tão nabas e estejam tão desgovernadas como parece porque, se o que está a acontecer é mesmo o que se vê, então tudo isto será mesmo fruto de um delírio absurdo de um homem maluco e de uns quantos cobardes que vivem à sua sombra. No terreno, no dito teatro de guerra, o que parece é que tudo não passa de bandos de patifes deixados à solta, de bandidos descomandados, violadores, ladrões, esfomeados, ou simplesmente jovens espantados e desnorteados, sem uma estratégia que os guie. E, se assim é, como se explica que o mundo assista estarrecido a este circo bárbaro sem ser capaz de impedir o assassino de prosseguir?

A partir daqui, será que é a isto que se vai assistir: debandada geral dos russos, deixando tudo para trás, maquinaria, munições (para além de rastos de barbaridade)? Um dia, mais cedo do que pensamos, acordaremos com a notícia do fim do regime de Putin? Acordaremos, em breve, felizes com a notícia de paz na Ucrânia?

Ou isto não é exactamente o que parece...? Poderemos ainda ser surpreendidos com alguma outra cartada de violência e destruição?

Que Putin vai ser apeado e que a Ucrânia sairá vitoriosa e será reconstruída e será um dos mais felizes países europeus disso não tenho dúvida. O que não sei é se será em breve ou se, até lá, ainda muito mais sofrimento vai acontecer. Isto de Khersen deixa-me um bocado confundida. 

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Ilustrações, de novo, de Pawel Kuczynski na companhia de Nicolas Altstaedt que interpreta Bach/ Cello Suite nr. 1 in G – Sarabande

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Um bom sábado

Saúde. Tudo de bom. Paz.

terça-feira, fevereiro 01, 2022

O passeio de domingo, a reconstituição da vida do Pina.
E os homens que vivem em barcos.

 



De domingo para segunda deitei-me tardíssimo para acompanhar os resultados, as reacções e os exercícios acrobáticos dos jornalistas de stand up e dos avençados a metro. Ainda por cima acordei muito mais cedo do que tinha previsto com o urso a atirar-se à maluca contra a porta do quarto. 

De manhã -- ou melhor, praticamente de madrugada -- o meu marido vai dar uma volta com ele. Mal entra em casa, o meu marido diz que ele corre e tenta abrir a porta do quarto. Deve querer saber se lá estou dentro. A porta fica encostada e, como o chão, que é de madeira, faz atrito, só com força se consegue empurrar. A porta não pode ficar aberta senão ele entra e, num salto, vai para cima da cama. Vindo da rua, não se pode dizer que venha com as patas muito limpas. Portanto, fica a porta encostada. Não fica fechada pois faz-me impressão, receio não ouvir alguma coisa que deva ser ouvida. Mas a verdade é que acordo sobressaltada com os encontrões que dá na porta. 

De manhã pensei que, com sorte, talvez pudesse passar pelas brasas logo a seguir ao almoço. Estava mesmo a precisar. Afinal apeteceu-me tentar recompor o livro que, no outro dia, a fera tentou devorar. Dezenas de bocadinhos de folhas. Com uma paciência chinesa pus-me a tentar encontrar, nas folhas esburacadas, o espaço para cada bocadinho. Por bizarro que possa parecer, gosto de fazer coisas assim. É tal e qual como fazer um puzzle. E eu não tenho paciência para fazer puzzles pois não tenho paciência para fazer coisas que não servem para nada. Neste caso, como o objectivo não era lúdico mas muito objectivo, tentar conseguir ler as folhas despedaçadas, tive paciência. 

Tenho esta coisa muito arreigada em mim: não desperdiçar tempo com coisas que não servem para nada. Claro que escrever aqui, a bem dizer, também não serve para nada. Mas, enfim, tenho esperança que sirva para fazer companhia a quem me lê, enquanto me lê. Enfim, não interessa. Gosto de escrever, seja ou não útil. Acho que é a única excepção. Isso ou fotografar. 

Bem, mas pus-me a tentar reconstituir as folhas. E quase consegui. Subsistiram alguns buracos em algumas páginas. Concluí que não apenas o pequeno monstro felpudo rasgou várias folhas como deve ter comido parte delas. É que apanhei cada bocadinho que encontrei na relva, não sobrou nada. Portanto, deve ter devorado, literalmente, parte da biografia do Pina.

O que é curioso é que, enquanto estive nesta actividade, ele esteve deitado ao meu lado, com o queixo em terra, como quando está expectante ou a fazer-se de morto a ver se passa despercebido. Ora costuma andar de roda de mim, pôr as patas em cima da mesa para ver o que estou a fazer, a tentar mexer naquilo em que estou a mexer. Desta vez nem pó. Cá para mim, lembrou-se que aquele livro já foi motivo de desentendimento sério entre nós e nem se arriscou a puxar assunto...

Portanto, como de seguida tive que me ir aprimorar para uma reunião, não consegui descansar. Resultado: agora estou que não posso. Daqui a nada tenho que ir dormir.

Ontem não contei como foi o dia mas posso contar agora. Em casa do meu filho, um após outro, foram todos ficando com covid. Os cinco. Sintomas variáveis mas, felizmente, pouco graves. Estão confinados há para aí umas duas semanas. Por isso, no domingo, depois de termos ido votar, só estivemos com o bando da minha filha. Almoçámos no jardim e depois fomos passear. Ela andava há algum tempo a querer ir passear para ali -- o que teve que ser muito regateado com os filhos, em especial com o mais velho que queria treinar defesas na praia.

A tarde estava boa, amena, uma luz suave, um ambiente muito agradável. É muito bom passear com o tempo assim, o mar tão bonito, a vista tão longa e delicada, todos tranquilos. O ursinho felpudo fica feliz com a família, salta e brinca e corre e derrete-se com eles. 

Faz tanta falta a chuva. Assustam-me as secas. Nem quero pensar que vamos ter falta de água antes de se ter descoberto como dessalinizar as águas do mar em larga escala e a baixo custo ou como forçar a formação de nuvens. Mas, se me abstrair dessa preocupação, é tão bom o tempo assim...

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E, nesta dança de dia após dia, o primeiro mês do ano já se foi. Anda rápido, o tempo. De manhã, quando estava a tomar o pequeno almoço, abri a porta e abeirei-me do jardim. Estava uma rola a passear na relva. Tentei manter o silêncio mas não devo ter conseguido pois ela deu uma corridinha, depois bateu as asas com força e voou. São bonitas, um platinado quase branco. Mas ariscas. Nunca me deixam chegar perto, muito menos tocar-lhes.

Quando estava a ter a reunião da tarde, tentando resolver uns problemas recorrentes e tentando anular a hostilidade de alguns contra uns outros, reparei que, lá fora, de entre a ramagem da trepadeira ao pé da janela, estava a soltar-se uma outra rola. Fiquei com pena de não a ter visto senão quando voou. 

Há um lado transitório e efémero em tudo isto, na passagem do tempo, no voo de um pássaro, nas brincadeiras de um cachorro que, não tarde, será adulto, na ternura dos meninos que, não tarda, estão grandes e independentes, em mim que talvez perca a vontade de aqui escrever fora de horas. Ainda se ao menos estivesse a escrever num caderno, em papel, se estivesse a compor um livro. Um livro sempre tenta contrariar a efemeridade disto tudo. Agora assim, a soltar palavras ao vento, palavras mais ariscas que as rolas do jardim, fico com o quê? 

Vou mas é dormir que esta conversa já não está com nada.


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Mas, antes de me mandarem bugiar, não querem ver este vídeo que aqui tenho?

É interessante e, de certa forma, tocante. Fala de quem prefere viver à margem da sociedade, abdicando de conforto e segurança, para poder sentir todos os dias o gosto da liberdade. São pessoas que vivem em barquinhos mas sabem que um dia alguém não tolerará a perturbação na harmonia do status quo e acabará com a sua forma de viver.

Living Rent-Free Next to Millionaires

For decades, the “anchor-outs” have enjoyed living in rent-free boat homes in the Bay Area. Their boats, anchored just north of the Golden Gate Bridge, float illegally in the sightline of one of the country’s wealthiest zip codes. But now, as enforcement ramps up, their way of life could be coming to an end.


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Peço muita desculpa mas não vou conseguir responder aos vossos comentários. 
Estou já mais para lá do que para cá.
Sorry.

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As fotografias foram feitas neste domingo e estão aqui na companhia de Yo-Yo Ma - Bach: Cello Suite No. 3 in C Major, Bourrée I and II

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Desejo-vos um dia feliz e luminoso.
Boa sorte. Bola para a frente. Para a frente é que é caminho.

quarta-feira, junho 30, 2021

Solitude. The Loneliness of Grief. A Quiet Connection

 


A fotografia de pessoas, quando o fotografado sabe que está a ser fotografado, não é fácil. Se se quer a naturalidade, pode ser difícil o fotografado despir-se da teatralidade encenada que tende a surgir quando se tem pela frente a câmara tal como pode difícil, ao fotógrafo, persistir o tempo suficiente até que o instante se desenhe, perfeito, quase autêntico. Se, pelo contrário, não se quer a naturalidade tem que se ter a inteligência e o bom gosto de obter o ângulo menos óbvio ou a estética depurada que permita chegar à essência da pessoa fotografada.

Não sou fotógrafa, sou uma mera diletante acidental. Mas, desde muito cedo, comecei a fotografar. Penso que é, na minha cabeça, uma forma de tentar captar o momento, registando os vestígios do tempo que passa. Como em tudo em que sou amadora, não gosto de me preparar ou de usar o tempo a disfarçar a artificialidade, prefiro a naturalidade ou a imperfeição que não é ensaiada. Ou seja, não gosto mesmo de fazer retratos preparados, prefiro a espontaneidade. Mas, como geralmente me acontece, admiro o que me é oposto. Neste caso, gosto de ver o retrato estudado.

Do auto-retrato nem falo. Não consigo fotografar-me. Quanto muito, fotografo a minha sombra. Gostava de ser conhecida por não mais do que as a shadow, aquela que é conhecida pelo rasto que deixa e não pelo que é. Um rasto esquivo, efémero, quase inexistente. 

Mas, também aqui, admiro as pessoas que fazem do seu rosto o seu projecto estético. Jorge Molder é um caso muito próximo. Fotógrafos que se auto-retratam têm a tarefa mais difícil de todas: desvendam-se, investigam-se, desafiam-se, revelam-se. Ou não: ou ocultam-se, mascaram-se, disfarçam-se. Seja como for, a sua persistência, minúcia e despojamento são, de modo geral, fantásticos. 

Forough Yavari é australiana, tem um rosto que é uma página em branco sobre a qual ela própria pode escrever mil histórias -- e tem recebido diversos prémios pelo seu trabalho. 

A fotografia lá mesmo em cima, Solitude, a todos os títulos uma extraordinária fotografia, foi a vencedora absoluta do 2021 International Portrait Photographer of the Year. Os muitos rostos da solidão. Uma mulher sozinha, cercada pelas suas personas. Todas e nenhuma. A solidão sem remissão.

E foi também para ela o segundo prémio da categoria portrait story com a igualmente fantástica fotografia The Loneliness of Grief. A solidão do luto. A tristeza a céu aberto. A lamúria a cercar uma mulher que vive para além da morte que testemunhou. 


Já o terceiro lugar da categoria family sitting foi para Nancy Flammea e é a encenação de uma pintura viva: A Quiet Connection, fotografia que eu gostava que alguém tivesse feito comigo e com os meus filhos ou que eu gostaria de fazer com a minha filha ou com a minha nora e os respectivos filhos. A intimidade e o amor incondicional entre mãe e filho aparece aqui amorosamente retratada.




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Mulheres fotógrafas. Mulheres fotografadas. 
O eterno mistério, a total intimidade.
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Junho está a chegar o fim. Meio ano dobrado. Que a metade que se segue seja melhor do que a anterior.
Mas vamos com calma: um dia de cada vez. 
Desejo-vos um dia feliz. 

terça-feira, fevereiro 16, 2021

A sua vida terá de ser um sinal e um testemunho desse impulso até nas horas mais indiferentes e insignificantes

 




As coisas não são todas tão apreensíveis e dizíveis como muitas vezes se gostaria de nos fazer crer; a maior parte dos eventos são indizíveis, perfazem-se num espaço que nunca foi tocado por uma palavra, e mais indizíveis do que tudo são as obras de arte, existências secretas cuja vida perdura enquanto a nossa passa.

(...)


Entre dentro de si, Procure o motivo que o faz escrever; examine se ele tem raízes até ao lugar mais fundo do seu coração, confesse a si mesmo se viria a morrer no caso de escrever-lhe ser vedado. Isto antes de mais nada; pergunte-se na hora mais calada da sua noite: tenho de escrever? Escave em si mesmo em busca de uma resposta profunda. E se esta soar afirmativamente, se o senhor tiver de enfrentar esta questão séria com um forte e simples 'Sim, tenho', então construa a sua vida em função dessa necessidade; a sua vida terá de ser um sinal e um testemunho desse impulso até nas horas mais indiferentes e insignificantes. Então aproxime-se da natureza. Então tente dizer, como se fosse o primeiro homem, o que vê e vive e ama e perde. Não escreva poemas de amor; comece por evitar aquelas formas que são mais correntes e comuns: são as mais difíceis, pois requer uma grande força amadurecida exprimir o que nos é próprio quando já existem acumuladas tantas produções boas e até esplendorosas. Por isso salve-se dos temas gerais para os que lhe oferece a vida de todos os dias; descreva as suas tristezas e desejos, os pensamentos passageiros, a fé em qualquer forma de beleza -- descreva tudo isso com sinceridade íntima, tranquila, humilde, e utilize para se exprimir as coisas que o rodeiam, as imagens dos seus sonhos e os objectos das suas recordações. Se o seu dia-a-dia lhe parece pobre, não o lamente; lamente-se a si, diga para consigo que não é suficientemente poeta para convocar as suas riquezas; pois para o criador não existe escassez nem lugar pobre ou indiferente. E mesmo que estivesse numa prisão cujas paredes não deixassem chegar nenhum dos ruídos do mundo aos seus sentidos -- então não teria ainda e sempre a sua infância, essa riqueza preciosa e principesca, essa câmara dos tesouros da lembrança? Concentre nela a sua atenção. Tente despertar as sensações afundadas desse passado longínquo; a sua personalidade ganhará firmeza, a sua solidão há-de alargar-se e tornar-se uma morada crepuscular e o ruído dos outros passará ao longe. 

(...)

_______________________________________________________

Num dia suave, solarengo, a anunciar dias melhores, não apenas trabalhei de sol a sol como, depois, antes de jantar, li. E, depois de vários telefonemas de trabalho, a tranquilidade das vozes da família: falei com os meus filhos e com a minha mãe. De dia, a meio da tarde, num pequeno intervalo, andámos no jardim. Os pássaros cantavam, felizes da vida. Fotografei enquanto fazia um telefonema. O telefonema não foi especialmente agradável mas as flores estão tão bonitas que não há arestas afiadas que anulem a sua beleza. E outra coisa: confesso, ao fim do dia já estava com a cabeça noutro sítio. A nossa vida melhora quando conseguimos que a nossa cabeça voe sem freios, por todos os lugares onde o corpo gostaria de estar.

Os textos são excertos de Cartas a um jovem poeta de Rainer Maria Rilke. Estas fotografias, como é bom de ver, foram feitas aqui em casa. E agora, despudoradamente, fizeram-se acompanhar por Glenn Gould a interpretar Bach (Goldberg Aria).

Para terminar, para fazer a vontade ao LF (comentário no post mais abaixo): 

I'll go on - Rainier Maria Rilke

Tira-me a luz dos olhos: continuarei a ver-te.
Tapa-me os ouvidos: continuarei a ouvir-te.
E embora sem pés caminharei para ti.
E já sem boca poderei ainda convocar-te.
Arranca-me os braços: continuarei abraçando-te
com o meu coração como com a mão.
Arranca-me o coração: ficará o cérebro,
E se o cérebro me incendiares também por fim,
Hei-de então levar-te no meu sangue


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Desejo-vos um feliz dia de ex-Carnaval
Saúde. Alegria. Risos.

quarta-feira, janeiro 13, 2021

Uma pétala de rosa caindo no abismo

 



Continuam os dias de trabalho pesado, apesar de pouco sair de casa. O meu marido, à tarde, disse: 'Hoje a coisa não correu bem'. Perguntei: 'Como assim?'. Esclareceu: 'Estavas com a assertividade nos máximos'. Não percebi. Explicou: 'A malta levou pela medida grossa'. Perguntei a que se referia em concreto. Respondeu, com sorrisinho irónico: 'Acho que não escapou nenhum. Parece-me que foi a manhã toda. Levaram todos'. Ainda quis que me dissesse qual o tema, para perceber com quem estaria eu a falar. Disse que não percebia as palavras, mas que o tom de voz falava por si.  Acabei por confirmar que, pensando bem, tirando numa breve reunião de meia-hora, em todas as outras expressei a minha contrariedade. Por exemplo, uma faz telefonemas que são de meia-hora se a agente a interromper, senão são de uma hora no mínimo, para dizer que tem muito que fazer e que não tem tempo para fazer tudo o que é preciso. E passa o dia a fazer telefonemas destes. Se não os fizer, é tempo que lhe sobra para trabalhar. Como não mostrar arrelia com uma pessoa que não percebe isto? Ou um que tem mil coisas para fazer e que, em vez de se concentrar a fazê-las, se põe a fazer outras? Ou um que mal tem uma ideia vai a correr dizê-la a toda a gente, criando expectativas infundadas, lançando confusão e, quando lhe pergunto se já falou com alguém, bem sabendo eu que sim, me diz com cara de pau, mentindo à descarada, que com certeza que não. Claro que se eu tivesse estudado diplomacia ou tivesse aprendido a ser beata e paciente, passava por tudo isto sem me torcer nem me amolgar. Assim, é o que é. 

Tinha pensado que teria tempo para redigir um documento que amanhã queria partilhar para colher opiniões mas, com tanta reunião e tantos telefonemas, não consegui. Ainda pensei que talvez agora. Mas não me apetece. 

Só intervalei para fazer o jantar. Fiz assim:

Num tacho coloquei azeite e cortei duas cebolas aos bocados. Frigi ao de leve com duas folhas de louro fresco. Juntei um pequeno morceau de bacon aos bocadinhos e deixei que alourasse. Depois juntei quatro lindos tomates maduros. Por cima, três pernas grandes de frango do campo. Por cima, um pouco de sal, um alho francês às rodelas largas e mais um tomate maduro. Reguei com um pouco de vinho tinto e juntei salsa em quantidade generosa. Cozinhou nos próprios sucos até que vi a carne a querer despegar dos ossos. Juntei ervilhas congeladas. Cozinharam um pouco. Verti, então, o caldo que se tinha formado para uma chávena de pequeno almoço. Completei com água até encher. Juntei mais três chávenas de água. Quando ferveu, juntei duas chávenas de basmati. Quando estava seco, desliguei. O meu marido andava de roda da cozinha a dizer que cheirava bem, querendo saber o que era. Soube-nos bem ao jantar, acompanhado de salada de alface e canónigos. Depois comi uma tangerina. Rematei com um quadrado de chocolate bem preto (82% de cacau)

Tirando estas minhas coisas, tenho ainda a reportar uma coisa: não sei que é feito dos meus óculos brancos que me dão muito jeito para conduzir à noite. Já corri tudo -- e nada. O meu marido diz que se espantava é se eu soubesse deles. Não comento. Andavam sempre no carro, aqueles óculos. Mas mudei de carro ao mesmo tempo que mudei de casa e agora não faço ideia. O meu marido disse: na volta ainda estão no saco com as coisas que tiraste do outro carro. Não digo que não. Mas qual saco? À hora de almoço fui à cave ver se, nos sacos que estão pendurados no cabide de pé, encontrava alguma coisa. Nada. Sacos vazios, sacos de desporto, sacos de praia. Às tantas, um estava fofo, com coisas lá dentro. Abri: duas toalhas de praia, uma delas parece que ainda um pouco húmida. Nem queria acreditar. Não devia estar húmida senão cheirava a bolor e não, cheirava bem. Deve ser do frio que parecia húmida. Qualquer dia haveria de querer saber das toalhas e não fazer ideia delas. Calhou bem achá-las. Já as coloquei dentro da máquina. Num outro encontrei duas pens e um espelhinho de carteira que andava perdido há anos. Acabei por subir para almoçar. Dos óculos nem sinal.

Não vi o debate entre todos. Não me apeteceu. Não consigo ver a Ana Gomes a imitar o Herman José a fazer de Ana Gomes e, ao mesmo tempo, prestar atenção ao que diz. Não consigo, acho que a imitação dela não é credível. Não tenho paciência para a Marisa a fazer de conta que está a candidatar-se para o parlamento ou para o governo. Não tenho paciência para as tiradas simpáticas e nulas do Tino. Não tenho paciência para o tal senhor Mayan que parece ser gigante e deslocado. Não tenho paciência para o João Ferreira porque tenho pena que ele não tenha uma votação fantástica pois tem boa cabeça e uma dignidade tocante e era bom que evitasse o achincalhante declínio do PCP. Não tenho paciência para ouvir o porco imundo que, ao merecer a preferência de tanta gente, demonstra a mais triste de todas as realidades: há muito português mais estúpido e burro que uma porta. E não tenho paciência para ouvir o Marcelo porque já o conheço de ginjeira e sei que, se for como no primeiro mandato, apesar de todas as patetices que fazem parte do seu lado mais catavento, saberá interpretar o querer dos portugueses e saberá manter o equilíbrio interno ao mesmo tempo que não nos envergonhará quando representa o país perante o exterior, e porque o meu sentido de voto já está mais do que decidido. Portanto, não poderei comentar o debate. Terei perdido alguma coisa?

E agora vou espreitar vídeos. Qualquer dia ainda me torno seguidora de influencers. Mas não de uns influencers quaisquer. Hoje o algoritmo trouxe-me nova entrevista com Bethânia, desta vez a cargo de uma tal Naná, bem simpática por sinal. Já me arregimentei ao canal da Naná.

E o que Bethânia diz, senhores, que mulher, que carisma...!

Gostei de tudo mas não posso deixar de destacar o que ela diz do que é a poesia: não apenas o que respiguei para o título como também o que o seu mano Caetano diz: poesia não serve para dormir, poesia acorda.

Naná se derrete, olhando com devoção a grande diva, beijando as mãos da deusa da imensa cabeleira. Uma vez mais é um vídeo um pouco longo mas em que cada minutinho vale ouro.

Mas, antes, um curtinho em que Bethânia pergunta a Naná porquê esta série de entrevistas. E eu, que não fazia ideia de quem era Naná, vejo-a aqui toda vulnerável, toda dengosa, também seduzindo, fazendo amor com as palavras. Bonito de ver. Cá para mim, Naná é que nem eu que do amor gosto é dele carregadinho de expoente. 


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Pinturas de Joan Mitchell na companhia de Yo-Yo Ma - Bach: Cello Suite No. 1 in G Major, Prélude

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E dias felizes apesar dos confinamentos e de tudo o resto.
Saúde.

quinta-feira, julho 30, 2020

Ele há coisas






Um dia mais tarde talvez eu fale aqui destes dias loucos em que, em simultâneo, tudo muda, tudo acontece, tudo se atropela na minha vida. Umas coisas acontecem porque a vida é assim mesmo, outras porque eu fiz acontecer e outras são as consequências directas e os efeitos colaterais de tudo o resto. Não me queixo. Ou é assim porque é a vida ou é assim porque, de vez em quando, um vento de mudança toma conta da minha vida e eu preciso de mudar de pele, de vida, de tudo.

Mas manter os pés na terra, dar conta de todo o recado, trabalhar, assegurar a logística do dia a dia, manter a disponibilidade intacta para quem não tem nada a ver com os trabalhos em que me meto, não é fácil e, muito sinceramente, de vez em quando olho para o reboliço todo em cujo centro me encontro e só me apetece ter super-poderes para poder fazer dez vezes mais do que faço para mais rapidamente cumprir as fases de maior assoberbamento em que agora me encontro.

Hoje, ao fim do dia, fui fazer uma pequena caminhada mas ia cansada e só me ocorria como será bom, daqui por algum tempo, a vida já reequilibrada, tudo serenado. E a visão desses dias de quietude e tranquilidade parece-me o el dorado pelo qual, neste momento, anseio.

A tarde, em especial, foi repleta de cenas. O cúmulo da graça foi uma reunião remota com pessoas do meu lado e pessoas de um outro lado. Às tantas percebi que, dos outros, um deles, o mais calado e a quem menos os outros davam a palavra, parecia ser, ali, a peça chave. Era homem já de alguma idade. Aos poucos arranjei maneira de lhe ir dando a palavra. Até que, se calhar até meio a despropósito, lhe perguntei onde é que ele tinha trabalhado antes de estar naquela empresa. Ele chegou-se à frente e foi como se estivesse à espera de dizer aquilo. Começou referindo a primeira empresa onde tinha trabalhado e o ano em que tinha entrado. Anos depois, outra empresa. Aí tocaram muitos sinos. Disse-lhe: 'Se calhar ainda nos encontrámos por lá...'. Julguei que ia surpreendê-lo. Mas foi ao contrário. Diz ele, referindo-se a mim, com ar contido, como se tivesse ensaiado: 'Não, nessa altura já não estava lá, já estava nos escritórios da Avenida tal'. Fiquei banzada. Perguntei: 'Em que ano?'. Ele repetiu. De facto, nesse ano eu estava onde ele disse. Afinal conhecia-me. Fiquei espantada e só não completamente espantada porque não é a primeira vez que isto acontece. Eu a pensar que estava a ter uma reunião com um grupo de desconhecidos e, afinal, um deles conhecia-me de longa data. Admito que, num mundo profissional em que a larga maioria são homens, qualquer mulher se tornava notada. Ainda por cima há uns belos anos atrás, uma mulher naquelas funções era uma raridade.

Agora, ao estar a escrever isto, lembrei-me de uma reunião, no local onde ele trabalhava, onde uma equipa da Sede foi apresentar o plano de reestruturação que os ia afectar a sério. Juntaram-se centenas num pavilhão para ouvir. Estava cheio, o ambiente estava carregado de electricidade e ansiedade. Creio que apenas homens. Alguém achou que a pessoa da equipa que deveria apresentar esse plano deveria ser eu. Não me tinha preparado para isso mas, naquele ambiente quente, compreendi que talvez fizesse sentido ser eu, talvez o facto de ser uma jovem mulher contivesse a agressividade que estava latente. Durou horas essa sessão. Correu bem. Foi duro mas acho que houve franqueza e partilha de receios e de riscos. Lembro-me de estar vestida de branco, era verão. Eu estava de pé e, no fim, eu tinha perguntado se havia questões e... houve questões sem fim. Por volta da hora do almoço, comecei a sentir vontade de ir fazer chichi mas era impossível sair dali a meio e ir à casa de banho. Às tantas já me doía a bexiga, já quase não tinha posição. Tinha ido à casa de banho antes de sair de casa, certamente antes da oito da manhã. E tinha sede, aquilo estava muito quente, e sentia que a tensão me estava a baixar. Mas pensava que, se bebia água, ainda mais aflita ficava. Intimamente já só implorava que se calassem, que acalmassem, que aquilo acabasse. Temia não conseguir chegar à casa de banho e ainda fazer chichi pelas pernas abaixo, um vexame. Mas esta aflição ninguém deve ter percebido, só devem ter percebido que estava ali uma mulher, no meio de muitos homens, a tentar ser clara, falar verdade, não escamoteando o período complicado que se iria atravessar. E, se calhar, um desses homens era este que esta tarde tive ali à minha frente.

A vida tem destas coisas. A vida tem tantas coisas.


No outro dia, um outro, do nada, começou a dizer-me que agora estava melhor. Fiquei em suspenso. Já sei perceber quando há, do lado de lá, vontade de falar. Depois acrescentou: 'Mas não foi fácil, passei um mau bocado'. Tive que perguntar: 'Mas o que foi?'. E, então, para minha surpresa, com uma franqueza desarmante, talvez até com inesperada candura, ele desatou a contar-me aquilo pelo que tinha passado. Daquelas coisas que uma pessoa tem que engolir em seco para não denunciar alguma reacção que faça o outro inibir-se. Falou e eu ouvi-o. É um homem a quem os outros que trabalham com ele, e são centenas, acham seco, duro. É uma pessoa pouco estimada, pouco empática. E, no entanto, sem que eu consiga explicar porquê, ali estava, falando-me de assuntos íntimos, de problemas que estava a superar mas que ainda o afligiam.

Não sei explicar isto.  Mas também nem tudo precisa de ser explicado. Não é?

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E também não sei porque estou a falar disto. Comecei o post com a ideia de falar de uma colcha de renda muito bonita que uso na minha cama e que não me lembro se foi a minha avó ou uma tia do meu marido que ma ofereceu. Ao falar disto com a minha mãe, tirei uma fotografia para ver se ela se lembrava. Respondeu-me que aquilo não é uma colcha, é uma toalha de mesa. Fiquei perplexa. Pensei que estivesse enganada. Que não, certeza absoluta, Alguma vez aquilo é uma colcha? Mas a verdade é que tem sido e, em minha opinião, uma bela colcha. Também, ao tirar uma outra de um gavetão, me surpreendi com as toneladas que aquilo pesa. E nunca a uso porque imagino que seja um calvário para lavar, para secar, para passar a ferro. E custa-me pois uma pessoa, cheia de amor, trabalhou naquela colcha durante muito tempo, certamente anos, gastou muito dinheiro em fio, aquilo é um peso bruto. Como poderemos retribuir gestos de amor junto de quem já não está entre nós?

Mas, enfim, não sei porquê, o post tomou outro rumo. E agora não vou apagar tudo e, a esta hora, recomeçar. Fico-me por aqui.

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As pinturas são de August Macke e vêm ao som de Bach pelas mãos de Stephanie Jones.


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E, antes de escrever, gosto sempre de circular pelos blogs aqui do lado, pelas notícias, pelos vídeos que o YouTube me propõe. Sabendo que me pelo por me rir e por sorrir, agora anda a propor-me o abençoado, querido e divertido Charlie Chaplin. E aqui está ele, para que, possam também sorrir.


E um dia feliz para todos.
Saúde, sorte e dinheiro para os gastos. E alegria. E força.

segunda-feira, fevereiro 24, 2020

Louvor da Terra





Hoje de manhã vi que, em cima da mesa redonda que está junto à janela, estava 'O amor louco' do Breton. Estranhei. Depois fez-se-me luz. Pela capa julgaram que era outra coisa

Levei-o. E levei também o outro, o último, aquele a que não tive como resistir, 'Louvor da terra' de Byung-Chul Han, com tradução de Miguel Serras Pereira, coisa que também ajudou ao bom prenúncio.

Dia de descanso. In heaven. 



Lá chegada, e tão cheia de saudades eu estava, depois de abrir as portadas para que a luz pudesse iluminar a casa, saí para o campo.

Caminhei e, para estas caminhadas, eu não quero companhia, quero apenas o som dos meus passos sobre a caruma, o som da levíssima aragem nos ramos, o cantar dos pássaros, o silêncio, o silêncio que traz de longe o som de uma roçadora e o perfume da erva a ser cortada ou a longínqua presença de um cão que ladra no vale ou algures na serra. Caminho em puro estado de deleite e não penso em nada, apenas sinto o que os sentidos me trazem. A beleza das pequenas flores, os líquenes dourados e os pontinhos brancos, o rendilhado das sombras e a luz sobre todas as coisas, os verdes e a paz que deles se desprende, os odores limpos do campo, a suavidade da folhagem ou das superfícies mornas das pedras ou o enrugado dos troncos. As palavras são escusadas enquanto caminho. Por isso, nessas alturas, não gosto de ter alguém por perto. Quero apenas o silêncio. 

Depois, fui para o sol e levei os livros. Estendi-me numa espreguiçadeira, despi-me, deixei que o sol pousasse devagarinho na minha pele. Estava debaixo da grande figueira mas, como ainda tem os ramos nus, a sombra era subtil. E o perfume fresco que me traz a memória das tardes de verão ainda era apenas uma vontade dele.


Continuei O amor louco, verdadeiramente louco, que tinha começado no carro. Li a direito, fui lendo. Até que comecei a abreviar, a saltar. Dantes era incapaz de fazer isto. Dantes, mesmo que não gostasse de um livro, só o abandonava quando lia escrupulosamente todas as palavras. Agora já não é assim. Perdi a inocência. À medida que o tempo passa a gente vai percebendo que tem que escolher bem onde o usa. A Luísa Neto Jorge traduziu e há momentos belos, outros interessantes, outros muito loucos. Talvez um labirinto. Mas não tem aquele fio de Ariadne de que preciso para me guiar, página a página. Qualquer coisa ali me fez ter vontade de interromper. Se calhar não teve a ver com o livro, se calhar teve a ver com o calor brando do sol sobre a pele ou com o sobressalto das rolas a soltarem-se da ramagem perfumada dos cedros, se calhar teve a ver com a vontade de palavras a brotar da terra e não das mãos, nem mesmo do coração.

Fui, então, para o Louvor da Terra. E como gostei. Ia lendo, ia parando, ia sentindo o amor pelo jardim, pelo devir do tempo sobre as flores, o amor pela paz que se desprende das coisas da natureza, ia vivendo a simplicidade do que me rodeava e do que lia.


Por exemplo, sobre um tema que me é caro (e agora nem tem a ver com as flores ou o jardim que Byung-Chul Han amorosamente cultiva):
Gostaria de me desprender de mim no sono, para me tornar ninguém, um ser anónimo. 
E a referência à Carta sobre o Humanismo onde Heidegger escreve:
'Mas, se o homem encontrar de novo a proximidade do ser, terá de aprender primeiro a existir anonimamente. Terá de se dar conta do mesmo modo tanto da sedução da esfera pública como da impotência do privado. Antes de falar, o homem terá de deixar que o ser de novo o interpele, correndo o risco de, depois dessa interpelação, pouco ou raramente alguma coisa lhe restar que diga'.
E continua: 
Hoje temos muito que dizer, muito que comunicar, porque somos alguém. Perdemos o hábito quer do silêncio, quer de nos calarmos. O meu jardim é um lugar do silêncio. No jardim, crio silêncio.
E eu acho estas palavras tão bonitas, tão sábias, tão simples, tão boas para ler devagar.

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As fotografias foram, pois, feitas este domingo in heaven. Enquanto caminhava tinha umas calças brancas e a túnica que ainda tenho vestida, branca, com flores encarnadas à frente. Ao ver as fotografias, vi-me, nesta aqui acima, espelhada na caruma e nas ervinhas e folhinhas secas do chão. No lugar que provavelmente é o do meu sexo uma florzinha amarela, uma pequena réplica do sol. 

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Lá em cima, quem interpreta as Variações Goldberg de Bach é Igor Levit, não Byung-Chul Han que, a páginas 119 do livro, diz que 'Enquanto contemplava o Vesúvio, tocava todos os dias as Variações Goldberg de Bach. Mandei instalar um piano na minha cabana junto ao mar'. E mais à frente escreve: 'A paisagem mediterrânica é íntima. Comove-me no mais fundo do meu ser. Penetra-me o adejar de um pássaro negro. Comove-me profundamente. Aqui tudo é muito próximo e muito íntimo. Íntimo é um superlativo de interior. Estou no meio da paisagem.'

E, ao ler esta passagem, fiquei a pensar que adejar era justamente a palavra que me faltava para o sobressalto dos pássaros quando batem apressadamente as asas para se libertarem da folhagem e me fazem arrepiar porque esse é um som demasiado íntimo que me faz sentir que tenho um pássaro a querer libertar-se do meu peito. Adejar. 

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Desejo-vos uma boa semana --
mas não sem antes vos convidar a descer para verem o fantasminha que descobri, abraçado ao tronco de uma aroeira.

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