Mostrar mensagens com a etiqueta Adriana Calcanhoto. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Adriana Calcanhoto. Mostrar todas as mensagens

terça-feira, agosto 17, 2021

... e a tareia continua...

 


No domingo fui dormir tarde demais. Vi o episódio do Bodyguard até ao finzinho, agarrada, desejando que o seguinte fosse tão bom como aquele.  Lindo, espadaúdo, valente, inteligente, sensível, o sargento David Budd tinha tudo para me ter presa a ele noite após noite. Afinal foi o último episódio. Fiquei desiludida. Não se faz.

Fui para a cama por volta das duas e meia e custei a adormecer. Quando estou muito cansada acontece-me isto. Sempre que estava a adormecer, vinha a mim com as ideias que estavam a martelar-me o juízo: onde é que se põe isto? agora o que é que se faz àquilo?

Não sei a que horas consegui descansar mas já a madrugada ia avançada.

Passado um bocado, o alarme. Acordei sobressaltada. Uma vez mais o meu marido deixou o alarme parcial quando saiu para o seu passeio madrugador e, estando de volta, foi à zona abrangida fazendo-o disparar. Fiquei passada, precisava tanto de dormir. Diz-me ele: 'Desculpa lá, foi sem querer. Vai dormir'. Como se fosse possível. 

Ainda por cima, no meio do trabalho, tinha uma máquina de roupa para fazer. E, máquina feita, resolvi também lavar dois tapetes, mas lavados à moda antiga: estendidos no chão com mangueira, detergente, vassoura de arame, bem esfregados. Pensei: mal acabe de almoçar, sento-me a descansar. Está bem, está. Reunião, marcada de supetão, logo a seguir ao almoço. Tive foi que almoçar a correr. E prolongou-se tarde fora.

Quando saí do meu estaminé, o meu marido contou que o senhor da oficina dos alumínios finalmente lhe tinha ligado. 

Encomendámos as janelas e as portas para a casa in heaven em Abril e, por falta de materiais ou sei lá o quê, estávamos a ver que nada. Aliás, o senhor até já nos tinha dito que, se quiséssemos, nos devolvia o dinheiro já pago. Acreditámos na sua seriedade e esperámos. Mas já desesperávamos. Além do mais, a nossa ideia original era que tudo isto, janelas, portas e pinturas, tivesse ficado pronto antes do verão para que, quando lá quiséssemos ficar, estivesse tudo despachado. Mas estas coisas não são como a gente as quer mas quando podem ser.

Mas, então, o senhor tinha ligado: o material já tinha chegado e estava a apontar para ir montar tudo lá mais para o fim da próxima semana mas tinha uma dúvida nas portas e precisava que nós disséssemos como queríamos. Era coisa difícil de explicar, só vendo no local.

O meu marido olhou para mim e eu para ele: por umas e outras razões poderia ser-nos difícil lá ir durante a semana pelo que, se não fossemos, lá o trabalho se iria atrasar ainda mais. Então pensámos: vamos lá hoje? Ligou ao senhor e ficou combinado. No entanto, não deixou de se lastimar: um gajo não descansa...

Mal as coisas se acalmaram nos nossos trabalhos, no final da hora de expediente, lá fomos nós. Eu ia perdida de sono mas, como ele também ia na mesma, consegui manter-me acordada para o ir vigiando, não fosse a coisa dar para o torto. 

Pelo caminho, para minha surpresa, disse: se chegarmos antes dele, se calhar ainda tentávamos pôr os cortinados. Achei bem e fiquei satisfeita com a sua proactividade. Se tivesse sido eu a propor-lhe, teria ficado furioso. Assim, sendo a ideia dele, fiquei feliz da vida. Mas não me manifestei não fosse a sua boa vontade retroceder. Nunca se sabe. E, portanto, assim foi. De estendidos no chão da sala, os reposteirozões passaram a pendurados -- depois de aspirados e de muita luta e de muito palavrão pelo meio.

No fim, ele perguntou: mas agora que o gajo vai pôr as janelas é que fomos pendurar os cortinados? A pergunta era obviamente retórica. Até por isso nem respondi mas, sobretudo, não respondi para ele não se sentir derrotado. De facto, quando, no fim de semana, tínhamos resolvido pôr os cortinados, pensávamos que as janelas, na volta, só lá mais para o fim do ano. Afinal, galo, pelos vistos é para já. Mas, paciência, já estão postos. Logo se vê. Um tamanhão e um peso daqueles não tinham outro lugar para estar senão pendurados.

Enquanto o senhor não chegou, aproveitei para ir lavar as bancadas debaixo do telheiro e dar um jeito naquilo. Era onde a rapaziada das pinturas almoçava e para onde carregavam todas as traquitanas e baldes de tinta e alguidares. Estava mesmo tudo a precisar de limpeza. Ao lavar a bancada de tijoleira pensei que deveria raspá-la e encerá-la. Mas não posso querer fazer tudo ao mesmo tempo senão fico estourada. O que vale é que, até ver, o coração se tem portado bem (pelo menos que eu dê por isso).

Vi que me partiram um espanta-espíritos que tinha pendurado nas traves do telheiro, um de vidro e conchas, muito bonito, que tinha trazido de Lagos. Fiquei mesmo com pena. Estes pintores saíram-me cá uns desarrumados, desorientados, desplaneados... Deram cabo de algumas coisas e não foram capazes de informar. Acidentes acontecem... (embora a eles tenham acontecido vários)... mas, bolas, assumem-se. Estes não: tenho vindo a dar por a asa de um jarro de louça partida, o espanta-espíritos partido, o canto de outra coisa esfacelado... já nem sei.... 

Já não viemos cedo, como é bom de ver. Não sei como não caí a dormir durante a viagem, tão cheia de sono estava. 

A minha sorte é que tinha ovas de bacalhau cozidas no frigorífico. Para acompanhamento, ainda descasquei feijão verde, cenouras, batata normal e batata doce, juntei ervilhas congeladas e ovos, pus ao lume e, portanto, fiz uma salada russa. Mas, claro, não foi imediato pois há o tempo de preparação e cozedura.

Resumindo: cheguei aqui à sala perto das onze, senão depois. E aqui tenho estado a debater-me para não adormecer.

Esta terça-feira tenho que me levantar cedo pelo que não poderei atrasar-me muito aqui nas escrituras. De resto, pouco mais tenho a dizer.

Mas queria apenas acrescentar que, ao abrir a porta e entrar lá, pela primeira vez desde que as sacrossantas e intermináveis pinturas começaram (já não me lembro se em Abril, se em Maio), senti que estava a voltar a entrar em minha casa. As coisas já a começarem a estar no seu sítio, a lei e a ordem repostas, tudo limpo, tudo bonito -- um gostinho bom, bom, bom. E nem que fosse apenas por isso já  a viagem teria valido a pena.

__________________________________________

Pinturas de Bridget Riley.
Maria Bethânia e Adriana Calcanhotto interpretam 'Depois de ter Você'

_______________________________________

Um dia feliz

terça-feira, abril 06, 2021

As casas dos outros

 



Sou uma pessoa de casa. É onde me sinto melhor: na minha casa. Quando estou fora, de férias, ao fim de alguns dias já me apetece voltar para casa. E, se estou em casa alheia, chego sempre ao ponto em que começa a bater a vontade de sair de lá, de regressar à minha. 

E gosto de ver casas bonitas. Dantes comprava revistas de decoração. Com que prazer as via. E guardo-as todas, acho que encerram tantas intimidades e tantas boas ideias.

Tenho conhecido casas muito bonitas. Uma das mais bonitas situa-se em Sintra. Uma casa de pedra em que um dos lados está encostado à serra. Os muros estão cobertos de hera. Tem um pátio interior com grandes vasos de pedra. Tem escadarias exteriores com varandas de pedra e te escadas interiores, E tem salas que comunicam com salas que comunicam com salas. Há salas com lareiras gigantes e com grandes mesas de madeira em torno da qual as pessoas se sentam a conversar. E tem janelas altas com bancos de pedra dentro de casa, de cada um dos lados. É tão bonita e tão bem decorada que não há uma coisa que eu mudasse. 

Uma outra casa de que gosto muito é a casa de uns amigos. Ela foi-se há pouco tempo, o que muito me abalou. A casa era a casa dela, a cara dela. Há lá conjuntos de peças de que ela se tinha tornado quase coleccionadora. Peças simples ou bonitas ou ímpares. Crucifixos, por exemplo. Muitos. Pintei um quadrinho com um, que lhe ofereci. E, no alpendre, havia vasos e peças de terracota e flores e trepadeiras. Uma casa com surpresas e muito para ver, coisas de que ela falava com gosto e de que fazia gosto em mostrar, referindo onde as tinha arranjado, por vezes envoltas em histórias. Gosto de casas que são assim, em que se vê que há ali muito da alma de quem lá vive. Não sei como estará a casa agora, sem a presença e a voz e o riso dela.

Conheci também uma casa que era a casa dele e não dela. Era uma casa masculina mas a casa de um homem que é um bon vivant. A mulher, segundo ele, gosta de estar com amigas, de estar na esplanada a conversar, não em casa. E, por deus, o que ela conversa. Uma vez vi-me entre ela, a que acima referi e uma outra que falava pelas duas juntas. Ao princípio eu estava divertida a assistir aquela desgarrada, por vezes espantada. Algum tempo depois estava exausta. Falavam tanto, tanto, tanto, tanto que eu não conseguia energia sequer para abrir e boca e dizer alguma coisa. Mas ele, pelo contrário, era homem de receber, de conversar em torno de um bom vinho. A casa era a casa dele, com zonas de sombra, com subtilezas, ironias e recantos.

Havia também a casa de uma amiga meio doida. Completamente doida, dizia o meu marido. Já aqui falei dela algumas vezes. Ilustre psiquiatra. Toda ela era uma figura. Bonita, elegante, uma voz e tanto, inteligente. Mas, de facto, tenho que reconhecer, com uma pancada das valentes. A casa era como se fosse a casa da bisavó. Uma casa antiga que não tinham restaurado nem modernizado e com mobílias que herdara da família, móveis enormes e sombrios, tapeçarias tristes, espaço vazio e melancólico. Nada naquela casa era acolhedor. Parecia que se tinham instalado numa casa abandonada. Uma vez estava lá a mãe, a tocar piano. Tocava lindamente. Mulher lindíssima mas completamente alienada. O marido tinha uma amante da idade das filhas. Toda a gente na família o sabia, incluindo ela. Sempre que lá chegávamos, esses nossos amigos estavam zangados um com o outro. Tudo o que ele queria ela achava estranho. Era incapaz de um gesto de ternura ou compreensão porque o achava anormal e fazia questão de lho dizer. Ele não se queixava dela; apenas, na brincadeira, dizia que ela não tinha jeito para cozinhar. Um dia, quando lá chegámos, pergunta-me ela: 'Olha lá, disseste que cozer peixe não tinha nada que saber, que era pôr as batatas e o peixe em água. Pois olha, tenho a informar que ficou incomestível, espinhas e tripas tudo misturado'. E ele: 'Porque é que não lhe perguntas se não era preciso tirar as tripas...?'. E ela: 'É?'. Eu, atónita: 'Bolas. Que é que fizeste? Que peixe é que era?'. Ela: 'Fanecas. Comprei-as ali no mercado, pu-las no tacho com as batatas'. 'Fanecas cozidas? Inteiras? Com a tripa?'. Ele, rindo: 'Eu não te disse?'. E eu: 'Caraças. Não se cozem fanecas. Fritam-se. É peixe que se desfaz. Quanto muito, punhas por cima, no fim. Mas, bolas, tem que se amanhar...'. A casa era como ela, uma coisa entre o desesperado, o incompreendido, o ansioso. Uma vez estava toda enervada, as coisas estavam a correr muito mal entre eles. Contava-me coisas, perguntava-me coisas, queria concluir que ele é que tinha toda a 'culpa'. Mas coisas do género: 'Olha lá. Ele quer que eu me ponha de costas. Achas normal?. Eu desatava-me a rir. Nesse dia estávamos no quarto dela, as duas sentadas na cama, ela a arrumar uma gaveta. Quando me fez aquela pergunta, lembro-me de me ter atirado para trás, a rir. Nisto apareceram eles e viram-me perdida de riso e ela espantada com o meu riso. 'O que foi?', perguntaram. E eu ainda mais perdida de riso, sem querer contar o que ela me tinha perguntado. 

Enfim. Cada casa reflecte quem lá vive dentro, O pior é quando não, quando a gente vê a casa e não reconhece nela a pessoa que julgamos conhecer. Aí ficamos sem saber qual reflecte melhor o que a pessoa é de verdade, se a casa se a imagem que formámos do nosso provável desconhecido.

__________________________________

Permitam que partilhe duas casas a que achei uma graça não apenas pela decoração mas pela arquitectura e enquadramento paisagístico. Gostei das casas mas também da forma como os donos falam delas.

Adriana Calcanhotto abre as portas da sua para mostrar seus livros e gatos 


Marisa Orth e Gringo Cardia mostram casa com vista para cartão-postal do RJ


__________________________________________________________

As pinturas são de Manuel Amado e acompanham David Gilmour a interpretar Dominoes

_____________________________________________________________

Um dia bom