Já aqui contei sobre o meu tio-avô que vivia na clandestinidade e que aparecia e desaparecia misteriosamente e que, para desgosto da minha avó, sua irmã, não teve a felicidade de ver chegar a madrugada limpa pela qual tantos tanto esperaram.
Quem vive como vivemos agora, em liberdade, dificilmente imagina o que eram os tempos sombrios antes do 25 de Abril de 1974. Os jovens que hoje não se interessam pela política não sabem da espada sobre o pescoço que era a guerra ultramarina para a qual eram mobilizados a não ser que fugissem do país e vivessem exilados. Tive colegas que, por defenderem a melhoria das condições de ensino, o direito à liberdade de expressão e o fim da guerra, foram expulsos da universidade.
E queria-se livros e não os havia, pois a censura impedia a sua distribuição, ou queria ver-se alguns filmes de que se ouvia falar e cuja divulgação em Portugal era proibida, e, se a vontade de os ver era muita, ia-se a Badajoz.
Coisas cuja importância é relativizada por quem não as sentiu na pele ou não conheceu pessoas que relatem na primeira pessoa esses tempos que não devem ser esquecidos para que não deixemos que regressem. Coisas de somenos. Ou talvez não.
Os meus filhos são relativamente politizados mas a minha filha disse-me ontem uma coisa que me deixou tão surpreendida que nem reagi. Dizia-lhe eu que tencionava ir para a rua, para o Largo do Carmo, e responde-me ela que, se não fossem os miúdos, ia também porque deve ser giro, uma cena revivalista.
Ou seja, mesmo para uma pessoa informada e que cresceu a ouvir falar de política, andar na rua no 25 de Abril, o Movimento dos Capitães, o Largo do Carmo, tudo isso é visto como uma cena revivalista, uma coisa gira, retro.
Mas não interessa: que seja por convicção, que seja por reinvenção da forma de valorizar a liberdade e o direito à igualdade de oportunidades, que seja por que for, seria bom que os jovens não tomassem a democracia como um bem adquirido mas, sim, como algo de precioso pelo qual vale a pena lutar, estar atento para que não aconteçam retrocessos. E seria bom que reconhecessem a rua como o lugar de cidadania no qual todas as vontades devem ser manifestadas.
A vida de um País é naturalmente cheia de períodos bons e de outros para esquecer. O período que estamos a atravessar é destes últimos: para esquecer. Um período negro, em que os actuais governantes, parecem possuídos por uma doentia sanha destruidora relativamente a tudo o que o Abril de há 40 anos nos trouxe. Sem dó nem piedade esta gente ataca o ensino público, a saúde pública, o direito à dignidade, o respeito pelos direitos acordados com as pessoas, destrói o caminho do desenvolvimento e do conhecimento, afasta os jovens e afronta os velhos.
Fogo de Artifício às 0 horas do dia 25 de Abril de 2014 |
Mas há-de haver o dia em que os portugueses vão acordar, pôr-se de pé e lutar pelo direito a um futuro construído sobre um terreno de esperança.
Abril é um bom mês para renascer.
Que a esperança renasça, que a vontade de lutar renasça, que a força renasça - até porque nossos são todos os caminhos.
Que a esperança renasça, que a vontade de lutar renasça, que a força renasça - até porque nossos são todos os caminhos.
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Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo.
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A minha nora enviou-me o link para um artigo do Público que fiquei com vontade de transcrever, da autoria de Tiago Matos Silva que é antropólogo, doutorando e investigador. Penso que traduz bem o que tentei dizer acima. Ilustro com fotografias da exposição alusiva ao 40º Aniversário da Revolução que está patente no Terreiro do Paço.
25 de Abril: o meu é, obviamente, o próximo
O meu 25 de Abril é um problema. É um problema porque eu nasci dois anos depois da revolução dos cravos e o meu 25 de Abril é feito de imagens de arquivo, cortejos apaziguados Avenida da Liberdade abaixo e histórias fragmentadas de família.
O 25 de Abril é dos meus pais como o fascismo foi dos meus avós: Salazar não me sugere nem rigor financeiro duma casa bem gerida nem cultura de excelência no ensino; Salazar para mim é a sardinha dividida por seis irmãos da minha avó Adília, é o meu avô Artur em Jacarepaguá durante 20 anos, é a escrita insólita de quem nunca foi à escola da minha avó Belandina, é a cama sempre quente que o meu avô Diamantino partilhava com outros trolhas beirões num quarto em Lisboa, é o meu tio António João em Angola a defender um Portugal de Minho a Timor (de que não conhecia o Minho, quanto mais Timor), é a rede que separava rapazes e raparigas no liceu da minha mãe, é o meu pai a comprar livros e discos proibidos por debaixo da bandeja e a descer aos saltos as Escadinhas do Duque para fugir à polícia que reprimia um 1º de Maio ainda ilegal.
Mesmo o 25 de Abril e o PREC, se extirpado da história que li, desagua no meu pai a tentar ver-se na multidão a preto e branco das imagens do Carmo, no meu avô a explicar ao piquete que vai caçar e não apoiar o Spínola no 28 de Setembro, na minha mãe à varanda a ver passar os caças do 11 de Março; são entusiasmos e aflições deles, foi e é a vida deles: dos que estiveram no Carmo e no primeiro 1º de Maio, dos que foram à Fonte Luminosa “defender a democracia”, passando pelos que tentaram “educar a classe operária” e se viram ultrapassados pelo 25 de Novembro.
Em casa houve de tudo
Carro de combate e militares aguardando no Terreiro do Paço (fotografia de Alfredo Cunha) |
Lá em casa houve de tudo: democratas e saudosistas do salazarismo, católicos progressistas e crentes na “primavera” marcelista, retornados e marxistas-leninistas; e às vezes a mesma tia foi à vez, em momentos diferentes, coisas que nos parecem inconciliáveis. E se isto é História tal como o saudoso Le Goff a definia: “Lá onde está a carne humana é onde está a nossa caça”, não deixa de ser um longínquo país estrangeiro para a minha geração, alimentada a música pop e aspirações europeístas, que cresceu sem perceber muito bem as diatribes raivosas que despertavam Soares ou Rosa Coutinho, a confundir o Salgueiro Maia com o Otelo, sem perceber exactamente quem era o Barreto da Reforma Agrária dos murais descascados, perdida entre vinte cincos de Novembro, onzes de Março, vinte e oitos de Setembro e vinte e oitos de Maio.
E estão mais próximos não só porque é a vida dos nossos pais e dos nossos avós, não só porque “Abril não se cumpriu” ou porque as continuidades com o antigo regime às vezes assustam, ou porque os portugueses, novamente aflitos, recomeçam a cantar a “Grândola”.
Estão mais próximos porque a tensão basilar que animava os resistentes de ontem: a tensão entre os que vêem no "status quo" o melhor dos mundos possíveis e os que acreditam na humanidade como algo para além da soma do medo e da ganância dos humanos, se mantém.
Estão mais próximos porque a tensão basilar que animava os resistentes de ontem: a tensão entre os que vêem no "status quo" o melhor dos mundos possíveis e os que acreditam na humanidade como algo para além da soma do medo e da ganância dos humanos, se mantém.
Estrelas luminosas num céu ao rubro Cravos para Abril |
E é por tudo isto que o meu 25 de Abril é, obviamente, o próximo.
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Venham e tragam outro amigo também
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Os Filhos da Madrugada e Traz outro amigo também são da autoria e interpretados pelo Zeca Afonso.
O poema (em itálico) é de Sophia de Mello Breyner Andresen
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Desejo-vos, meus Caros Leitores, um excelente dia 25 de Abril.