Se há lugar à superfície da terra que parece feito pelos deuses, o Jardim da Gulbenkian é sem dúvida um deles. É um lugar de harmonia e de paz.
Pode parecer estúpido eu dizer isto sabendo que a mão que o desenhou é bem humana mas, ainda assim, digo-o pois não sei se não foi a mão de um qualquer Deus que guiou a mão de Gonçalo Ribeiro Telles, o arquitecto paisagista que teve uma inspiração do além ao conceber esta sua obra fantástica.
Já contei tantas vezes: eu andava a estudar e ia passear e namorar para estes Jardins. E saía das aulas e ia para lá e, enquanto fazia horas para qualquer coisa, entrava no museu ou no lugar das exposições e perdia-me por lá. Espantei-me com Miró, não compreendia, não sabia dizer se gostava ou não, ficava perplexa, um sapato, uma cadeira e dali saía uma escultura, e quadros que eram pingos e desenhos infantis. E voltava lá para ver outra vez, presa àquela luminosa alegria, sem me compreender. E outras vezes a ver Rodin, presa, presa à pequena figura Celle qui fut la belle heaulmière. Tantas e tão boas descobertas.
E íamos lanchar na esplanada e íamos encontrar esconderijos e eu conhecia cada pequeno recanto. Preferia a beira do lago, a água sempre foi o meu elemento.
Mudei de namorado mas não de jardim.
Mudei de namorado mas não de jardim.
Depois nasceram os meninos. Lugar privilegiado para as crianças. Os patos, certamente já filhos e netos dos patos de então, o lago, os recantos, os relvados para poderem correr à vontade, o almoço no self, um clássico, as bolas de esparregado, os peixinhos da horta, os ovos recheados, tudo tão previsível, permanente, tudo tão bom. E sempre as exposições, o imprevisto de tantas obras, as retrospectivas, o ambiente bom dos lugares habitados pela arte, o anfiteatro ao ar livre, os chilreios, os risos das crianças, a quietude dos que leêm.
O tempo passa e o Jardim continua lindo, os recantos são os mesmos, o self o mesmo, o bolo de gelatina com fruta dentro, o cup de frutas, as farófias, lugar maravilhoso para almoçar ou lanchar no meio da natureza, e a livraria, e o ambiente, tudo, tudo.
Os meninos cresceram e já se multiplicaram e os novos meninos continuam a adorar o local, os jardins são bosques, têm grutas secretas, tocas escondidas, os lagos escondem monstros como o de Ness e as pedras redondas são ovos de dinossauro.
E o cheiro é o mesmo, a terra fértil e húmida junto aos lagos e ribeiros, os patos, os recantos que são abrigos, o sol que nos aquece a pele, a natureza que parece virgem.
E sempre a vontade de voltar, sempre a sensação de uma tarde bem passada. No meio da cidade.
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Nos Jardins da Gulbenkian encontram-se pessoas de todas as idades, condições sociais, estados civis. Até pela heterogeneidade é um local acolhedor. É frequente encontrar-se por lá, anónimas, pessoas com vida pública. Ninguém as incomoda. É-lhes reconhecido o direito à privacidade.
Mas hoje uma chamou a nossa atenção: uma muito conhecida apresentadora de televisão e de presença mediática muito intensa, uma das mulheres tidas por mais bonitas no nosso país, passeava-se por lá com uma amiga. Fotografavam-se uma à outra, riam, faziam selfies e até pediram a pessoas que passavam que as fotografassem entre os bambus. A seguir passaram à fase de olharem e escreverem no telemóvel, as duas, provavelmente a verem e a postarem as fotografias. Dava ideia que não desfrutavam o lugar, que se limitavam a fotografar-se e a exibirem as fotografias, provavelmente com o único intuito de dizerem que ali tinham estado. Fez-me lembrar o que li há dias, que dantes as pessoas iam aos museus para verem as obras expostas, enquanto agora vão para se fazerem fotografar lá, para poderem dizer que lá estiveram. O prazer de estar parece estar a ser substituído pela necessidade de se dizer que lá se esteve. A minha filha disse, Aposto que está a pôr no facebook. Espreitou no telemóvel e confirmou: já lá estava, a fotografia dela com a amiga no meio dos bambus com uma frase daquelas fast-filosofia.
Devo confessar que ficámos todos um bocado surpreendidos: uma das pessoas mais fotografadas no país e ainda com esta narcísica necessidade de se fotografar e de se mostrar a toda a hora, ainda por cima em momentos que se pensaria serem dedicados ao recato.
Se coloco aqui a fotografia que lhes fiz é apenas porque toda a situação se prestou a isso e porque uma fotografia em que aparecem as duas está no seu facebook, que é público. E, para meu total espanto, vejo que já teve para cima de 4.000 likes e muitos comentários (lindas... sorrisos contagiantes... beijinhos... smiles, e coisas do género). Ou seja, enquanto blogues excelentemente escritos recebem escassas visitas diárias, uma fotografia que eu diria totalmente desinteressante recebeu mais de 4.000 visitas no espaço de 4 ou 5 horas.
A natureza humana é, frequentemente, muito incompreensível para mim.
Por vezes, quando fico admirada com os livros que estão no top de vendas ou com as opções de voto das pessoas, esqueço-me que, cada vez mais, faço parte de uma minoria. Sou eu que sou uma marginal, marginal face a comportamentos que se vão tornando virais na nossa sociedade e que, talvez porque sou osso duro de roer, ainda não me contagiaram. Mas espécies assim como aquela a que pertenço, que não se adaptam ao meio ambiente, não costumam ter grande futuro. Veja-se o que aconteceu aos dinossauros.