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domingo, julho 13, 2025

Uma conversa entre duas pessoas que admiro, mas em que se fala em algumas coisas pouco agradáveis levadas a cabo por portugueses
... Outros tempos... outros tempos...

 

Apesar de tudo, apesar de ter servido 'buffet' variado -- e, feito por mim, apenas a sopa e a preparação das saladas --, a verdade é que por ir buscar comida aqui, ali e acolá, e se calhar pelo peso da idade ou por outra coisa qualquer, à noite, o sono avançou sobre mim à força toda. 

E os meninos até eram para ter dormido cá. Mas, afinal, um deles, apareceu com covid. Assim de repente, estando ele febril, houve que tomar uma decisão. Mas não foi difícil. O tempo este sábado já não esteve de chuva, do outono da véspera passámos para uma simpática primavera, pelo que esteve bom para almoçarmos ao ar livre. E o resto da tarde, tirando os rapazes do futebol que gostam de se fechar na sala a ver não sei o quê, futebol, vídeos ou cenas, estivemos sempre na rua. Portanto, apesar de o covid já não ser o bicho papão de há cinco anos, se pudermos evitar apanhá-lo melhor. Eu e o meu marido estamos convencidos que ficámos agarrados pelo long covid pois, depois de o termos, nunca mais nos libertámos do peso do sono que parece que continua a apertar connosco muito mais do que antes e muito mais que o razoável. O médico diz que há muita gente com estes sintomas e que se espera que acabe por ir passando.

Mas, meu rico menino, nada lhe tira o apetite. E, estando mais murchito, esteve menos reguila. Fofo, só me apetece dar-lhe beijinhos. Está um rapazinho crescido mas, claro, ainda longe dos primos que estão crescidos, uns homenzões grandes, de voz grossa, ou da mana, alta, uma belezura, ou como o mano que ainda não entrou propriamente na adolescência mas que para lá caminha com ansiedade, com vontade de ser grande, peludo e malandreco como os mais crescidos.

Agora à noite, quando ficámos só os dois, fomos fazer a nossa caminhada nocturna e, no regresso, depois de tratar de uns expedientes, sentei-me aqui e pimba, tiro e queda, adormeci.

Claro que não faço ideia do que se passou no país ou no mundo e, sinceramente, nem vou tentar saber. Não me apetece arranjar argumentos para me tirar desta doce paz de espírito em que me sinto tão bem.

Aqui ao meu lado, deitado no sofá 'dele' (sofá que os netos adoram, há sempre algum deitado no 'lugar do avô'), o meu marido dorme a sono solto. A esta hora já costuma estar na cama mas, desta vez, depois de ter ligado a televisão e posto no 24"Kitchen, adormeceu que foi um regalo. Como não me importo de ir ouvindo falar em noodles, couve chinesa cozida, anis estrelado, empratamentos elegantes e etc., não lhe digo para mudar de canal e deixo-o estar a descansar.

Nos últimos dias tenho acordado sempre mais cedo do que o habitual pois tem havido sempre algum afazer matinal e, como não continuo a não conseguir ir para a cama mais cedo (senão não prego olho), acumulei algum sono atrasado.

Por isso, hoje fico-me por aqui. Li os vossos comentários mas não tenho energia para escrever mais. As minhas desculpas.

Vou antes partilhar uma conversa entre dois comunicadores que, na medida das minhas possibilidades, vou seguindo: o charmosíssimo e empaticíssimo Pedro Bial e o médico que fala claro sobre tudo, Drauzio Varella. A conversa rola gostosa sobre vários assuntos, até que o tema da 'descoberta' do Brasil pelos portugueses e o que eles fizeram aos índios vem à baila. Interessante. Claro que tudo tem que se pôr em perspectiva, situar no tempo e no espaço. Não dá para pensar no que se passou, usando os cânones de agora.

MEDICINA, Amazônia e HISTÓRIAS | Conversa Com Bial | GNT

Em uma conversa profunda, Drauzio fala sobre seu novo livro "O Sentido das Águas: histórias do Rio Negro", uma obra que mergulha nas vivências das comunidades ribeirinhas da Amazônia. Ele também compartilha reflexões sobre a medicina como arte, seu compromisso com o cuidado humano e a importância de ouvir, com empatia, os relatos das pessoas por onde passa.

Desejo-vos um feliz dia de domingo

quinta-feira, julho 10, 2025

Uma ficção suficientemente bem contada, se repetida o suficiente e apoiada por instituições poderosas, torna-se uma realidade concreta para milhões — mesmo que tenha começado como uma invenção de um só homem


Há pouco tempo, o meu marido referiu a história da origem da 'caça às bruxas'. Tenho andado a pensar nisso. 

Depois, no outro dia, vi uma série documental que me impressionou imenso, 'As Mil Mortes de Nora Dalmasso'. A quem puder ver na Netflix, vivamente a recomendo. Trata-se de um crime real que foi acompanhado de perto pela comunicação social, com notícias, fugas de informação do processo judicial, com comentadores em permanência nas televisões a debitarem certezas absolutas sobre o que se tinha passado. Começaram por falar em jogos sexuais, falava-se em orgias. Havia testemunhos, segredos mal guardados. Vizinhos, amigos, todos pareciam saber qualquer coisa sobre a qual pareciam querer encobrir o fundamental. Depois, como Nora Dalmasso era uma mulher rica que vivia num bairro rico, já falavam de encobrimento dos poderosos, depois em envolvimento político. Algum tempo depois, as suspeitas recaíram num rapaz que andava lá em casa a fazer obras. A população revoltou-se, dizendo que era uma manobra para desviar as atenções da família e dos amigos. Houve manifestações. O rapaz acabou por ser ilibado. Pouco depois, uma novidade: finalmente tinha sido descoberto o autor do crime. O assassino tinha sido o filho, um jovem adolescente. Toda a gente tinha a certeza. Arranjaram provas, provas ditas irrefutáveis. O filho era capa de revistas, notícia principal em jornais e noticiários televisivos. Ninguém duvidava: as provas eram públicas e falavam por si. Descobriram que o rapaz era homossexual e foi construída uma narrativa que tinha a ver com a não aceitação por parte da família. O rapazinho, que ainda não se tinha assumido publicamente, foi arrasado. Até que se concluiu que, afinal, o pobre do rapazito era inocente e vítima, tinha perdido a mãe e tinha visto a sua vida devassada. A seguir todas as suspeitas recaíram sobre o marido de Nora. Finalmente, o assassino tinha sido descoberto. Foi perseguido por jornalistas, foi apertado pelos procuradores, foi esmagado. A imprensa exultou, os comentadores explicavam o comportamento dele, toda a gente sempre tinha achado que as suas atitudes eram mais do que suspeitas. Desfiavam provas que, desta vez, eram óbvias, claras. Não havia dúvidas. Tinha que ser punido exemplarmente. Até que, muitos anos depois (porque tudo isto levou muitos anos, com vários procuradores a ocuparem-se do processo), aconteceu o impensável: no próprio julgamento, o procurador, o último, reconheceu que não havia qualquer prova contra o marido e retirava a acusação. Reconheceu-se, então, que tinha havido erros grosseiros na investigação e que os procuradores tinham seguido linhas de investigação erradas. Há pouco tempo, creio que há uns dois ou três anos, descobriu-se finalmente que o provável assassino tinha sido um outro trabalhador que lá andava nas obras. Só que vinte anos tinham decorrido e o crime tinha prescrito. A Justiça tinha falhado retumbantemente.

Então, como tenho andado a pensar nisto, pedi ao ChatGPT que escrevesse sobre o tema da 'caça às bruxas'. Por ser um tema sempre actual e que me parece bem interessante, aqui vai.

Como nasceu a caça às bruxas: a ficção que virou tragédia coletiva

1. Origem: quando a bruxaria era só superstição

Durante grande parte da Idade Média, a Igreja Católica não via a bruxaria como ameaça real. O Canon Episcopi, um texto do século X amplamente difundido, dizia que as mulheres que acreditavam voar com deusas pagãs estavam apenas iludidas pelo demónio — mas não era considerado que tivessem feito nada de real. A bruxaria era tratada como superstição popular, não como crime ou heresia grave.


2. O ponto de viragem: um frade ressentido e um livro perigoso

Em 1485, Heinrich Kramer, frade dominicano e inquisidor, tentou conduzir julgamentos por bruxaria na cidade austríaca de Innsbruck. Foi rejeitado pelas autoridades locais, que consideraram os seus métodos abusivos e infundados.

Em resposta, Kramer decidiu escrever um tratado. Em 1487, publicou o Malleus Maleficarum (“O Martelo das Bruxas”), uma obra que misturava fantasia, misoginia, superstição e uma visão teológica deturpada. Defendia que:

  • as mulheres eram mais propensas ao pecado e, por isso, à bruxaria;

  • o Diabo fazia pactos com elas através de sexo, feitiçaria e voos noturnos;

  • a tortura era necessária e legítima para obter confissões.

A obra foi rejeitada inicialmente pela Universidade de Colónia, mas Kramer conseguiu uma bula papal (de Inocêncio VIII) que lhe deu autoridade para agir como inquisidor. Isso deu ao texto uma aparência de legitimidade.


3. Disseminação: o papel da imprensa

O que deu ao Malleus o seu verdadeiro poder foi a prensa de tipos móveis, recém-desenvolvida por Gutenberg. A obra foi reproduzida em larga escala e circulou por toda a Europa ao longo dos séculos XV e XVI. Em várias regiões, foi tomada como manual jurídico e doutrinário oficial — mesmo sem nunca ter sido oficialmente aceite pela Igreja como doutrina universal.

A multiplicação dos exemplares fez com que ideias fantasiosas e sem base empírica passassem a ser tratadas como verdades absolutas, com aplicação direta em tribunais civis e eclesiásticos.


4. Expansão: medo, crise e histeria institucionalizada

Entre c. 1500 e 1700, a Europa viveu um período de instabilidade profunda: guerras religiosas (Reforma e Contrarreforma), pestes, fome e crises políticas. Em tempos de medo, o mito das bruxas oferecia um bode expiatório conveniente.

As autoridades, tanto católicas como protestantes, começaram a conduzir julgamentos em massa com base nas ideias do Malleus e em outras obras derivadas. O uso sistemático da tortura levou a confissões forçadas, que alimentavam novas acusações — criando um ciclo de autojustificação brutal.


5. Duração: três séculos de delírio

A “caça às bruxas” durou quase 300 anos:

  • Início efetivo: 1487 (com a publicação do Malleus)

  • Pico de violência: 1560–1630 (época das guerras de religião)

  • Declínio lento: após 1650, com o surgimento do racionalismo, o reforço de Estados centrais e o avanço do pensamento científico

  • Última execução oficial por bruxaria na Europa: 1782 (Anna Göldi, na Suíça)


6. As vítimas: quem pagou o preço da fantasia

Estima-se que entre 35 000 e 60 000 pessoas foram executadas por acusações de bruxaria — em alguns cálculos, até 100 000. Cerca de 80% eram mulheres, frequentemente viúvas, curandeiras ou socialmente marginalizadas.

Estas pessoas foram torturadas, queimadas ou enforcadas com base numa narrativa criada por um único frade ressentido, que misturou lenda, misoginia e moralismo num tratado tomado a sério por gerações.


7. O poder da ficção partilhada: o que diz Harari

O historiador Yuval Noah Harari usa este caso como exemplo clássico de como “ficções intersubjetivas” — histórias partilhadas por um grande número de pessoas — podem moldar o comportamento coletivo, as leis e as instituições. Quando essas ficções são tomadas como verdades absolutas, mesmo sendo baseadas em delírios ou mitos, podem conduzir a desastres reais.

"Uma ficção suficientemente bem contada, se repetida o suficiente e apoiada por instituições poderosas, torna-se uma realidade concreta para milhões — mesmo que tenha começado como uma invenção de um só homem."


Conclusão: da fantasia à fogueira

A caça às bruxas foi, em grande parte, o resultado de uma fantasia transformada em sistema judicial. O Malleus Maleficarum, escrito por um único frade, foi a semente de um pesadelo histórico que durou três séculos, espalhou medo por toda a Europa e custou dezenas de milhares de vidas. É um lembrete poderoso de como ideias infundadas, quando legitimadas, podem levar sociedades inteiras a cometer atrocidades em nome da “verdade”.

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Eis 3 casos contemporâneos, bem conhecidos do público, que funcionaram como “caças às bruxas” modernas — ou seja, situações em que pessoas foram julgadas na praça pública antes de qualquer verificação de factos, muitas vezes com consequências gravíssimas, apesar de acabarem por ser ilibadas ou inocentadas. Estes casos mostram como, mesmo sem fogueiras, a lógica da perseguição social sem provas continua viva.


1. Caso Amanda Knox (Itália, 2007–2015)

  • O que aconteceu: A estudante norte-americana Amanda Knox foi acusada do homicídio da colega de casa, Meredith Kercher, em Perugia.

  • Por que foi uma “caça às bruxas”: A imprensa sensacionalista italiana e internacional construiu uma narrativa sexualizada, chamando Amanda de "Foxy Knoxy", insinuando motivações satânicas e perversas sem base real. A sua atitude calma foi interpretada como sinal de frieza e culpa.

  • Condenação e absolvição: Amanda foi condenada e presa por quatro anos. Em 2015, o Supremo Tribunal italiano reconheceu erros processuais graves e ilibou-a totalmente.

  • Impacto: Mostrou como uma narrativa pública distorcida pode contaminar o julgamento legal, mesmo em tribunais modernos.


2. Caso dos McMartin Preschool (EUA, anos 1980)

  • O que aconteceu: Uma das mais longas e caras investigações por abuso infantil da história dos EUA. Professores da pré-escola McMartin, na Califórnia, foram acusados de abuso sexual e rituais satânicos.

  • Por que foi uma “caça às bruxas”: Crianças foram sugeridas e manipuladas em interrogatórios, gerando histórias de túneis secretos, bruxaria, voos mágicos e rituais satânicos. A histeria pública foi imensa. Muitos acreditaram cegamente nas alegações.

  • Desfecho: Após 7 anos de julgamentos, nenhum dos acusados foi condenado. Não se encontrou qualquer prova física. O caso foi abandonado em 1990.

  • Impacto: É um exemplo claro de como o medo coletivo e o moralismo social podem destruir vidas sem provas concretas.


3. Caso Johnny Depp vs. Amber Heard (EUA/Reino Unido, 2018–2022)

  • O que aconteceu: Após o divórcio, Amber Heard acusou Johnny Depp de violência doméstica. Ele perdeu contratos com a Disney e outras produtoras. Foi “cancelado” pelas redes sociais e imprensa.

  • Por que foi uma “caça às bruxas”: A cultura do #BelieveAllWomen levou a que muitos o condenassem sem julgamento, assumindo-o como agressor com base apenas no artigo de opinião que Heard publicou no Washington Post.

  • Desfecho: No julgamento de 2022, Heard foi condenada por difamação. Ficou claro que ambos tiveram comportamentos tóxicos, mas que as alegações centrais de Heard eram falsas ou exageradas.

  • Impacto: Mostrou os riscos da justiça mediática e do linchamento digital, com polarização extrema e julgamentos sem base factual antes do processo legal terminar.


🔍 Conclusão: a fogueira hoje é sobretudo digital

Estes casos mostram que a lógica da “bruxa a abater” persiste, ainda que hoje não se usem tochas — usa-se Twitter, manchetes e opinião pública em tempo real. A condenação precoce, o apedrejamento simbólico e a destruição de reputações continuam a existir, mesmo em democracias modernas.

domingo, junho 02, 2024

Tempo de dúvidas, de perplexidades, de receios - apesar de também ser tempo de arraiais...

 

As aulas, não sei como, estão prestes a acabar. Parece que esta semana já vai ser a última semana de aulas. Não sei como é possível cumprir os programas com tão pouco tempo de aulas. Parece que é porque vão começar os exames. Mas uma coisa impede a outra? Ou não seria suposto que os exames fossem mais tarde para haver mais tempo para dar aulas sem ser a mata cavalos ou deixar parte do programa por dar?

Não percebo nada disto.

Independentemente disso, constato que já há arraiais e festejos típicos dos santos populares por todo o lado. Isto sendo que o primeiro santo, que eu saiba, só dará as caras no dia treze de Junho. 

Que não se veja crítica nisto. Sou totalmente a favor de convívios, festas populares, malta na rua a conviver e a festejar. Se há coisa que abre a mente e o coração às pessoas é o ambiente leve, alegre, de convivência e festejo. Música, canto, dança, petiscos, conversa, cor, luz. Tudo isto é meio caminho para que a felicidade entre na vida das pessoas.

Contudo, ao mesmo tempo, numa realidade paralela, chegam notícias que não são boas. Bem tento pensar que é coisa longínqua, coisa que não belisca a nossa liberdade, o nosso direito e a real possibilidade de fazermos o que nos apetece, mas, num canto de mim, temo que de escalada em escalada, um dia destes acordemos com uma notícia que nos deixe gelados de medo.

Ao contrário do que eu, antes de 2022, pensava, Putin continua a bombardear, a destruir e a matar, e ninguém consegue detê-lo. Se deixarmos cair a Ucrânia, estaremos a pactuar com o delírio imperialista de um psicopata (um não, vários) que resolveu reescrever a história, redefinir fronteiras, anular o direito à autodeterminação de um país. 

Contudo, à medida que o tempo passa sem que ninguém o consiga travar, ouvem-se as vozes dos que, tentando fazer-lhe frente, dão passos que podem servir ao ditador louco para dar ele um passo ainda mais tresloucado. E um dia podemos estar todos ensarilhados, num sarilho que não desejamos. Espanta-me que não haja quem consiga ter um ascendente sobre os malucos para chamá-los à razão, aconselhando-os a parar. Não há um líder que se erga e consiga apelar à razão os malucos que parecem tê-la perdido (neste caso, Putin e comparsas). Em Israel tenho esperança que Netanyahu vá de asa e que, a curto ou médio prazo, as coisas se componham. Entre a população na rua e um empurrãozinho da opinião mundial e dos States, acredito que o patife não se aguente muito mais tempo. Mas na Rússia parece que não se vê jeitos disso. Por isso, tenho receio que Yuval Noah Harari tenha razão ao temer que já estejamos a meio da 3ª Guerra Mundial. 

De facto, a estupidez humana é uma desgraça.

Stupidity: A powerful force in human history

Are we in the midst of World War III? What's the role of fiction in human evolution? Why do we tend to overconsume food?

Big or small, every detail in our behavior can be explained by looking at the past, from dietary choices to how we've used stories to advance. But if progress is narrative-driven, what comes next? 

In Yuval's extended Brief But Spectacular take (@YuvalNoahHarari) he speaks on humanity's superpower, the paradox of wisdom and the relationship between government and war. 


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De qualquer forma, tenho esperança que algum milagre aconteça e que voltemos a sentir que vivemos num lugar seguro, um lugar onde podemos ser felizes em liberdade

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Um feliz dia de domingo

terça-feira, fevereiro 06, 2024

Coincidências do caraças

 

Por estas bandas, a maior concentração de aniversários verifica-se nos meses em que o calor já se faz sentir. Mas, apesar disso, ainda há os que vieram ao mundo uns meses antes. Por exemplo, parecendo que não, ainda há uns aquários e como, nestas coisas, parece que gostam de se juntar, já vamos no segundo.

Por isso, cheguei a casa mais tarde. Acontece que, dado que a avaria comunicada à hora de almoço ainda não está resolvida, estou sem televisão por via normal e a net que tenho no computador está a ser fornecida pelo telemóvel. 

Ainda chegámos a tempo de tentar ver o Luís Paixão Martins mas parece que não houve. Espero que não o tenham cancelado pois, de facto, é daquelas vozes que sabe bem ouvir. Não tem medo, não tem papas na língua e é inteligente, et pour cause irónico. Se o retiraram das televisões fizeram mal.

Enfim, espero que tenha sido ele a ter tido algum resfriado ou insignificância do género e que não tenha querido estar a falar e a espirrar ou a assoar-se em directo e que, amanhã ou para a semana, esteja de volta.

Hoje também cheguei à conclusão que uma série de démarches que, na minha santa ingenuidade, convencida eu que o mundo já estava a virar digital, pensava que poderia resolver por mail enviando todos os documentos, e, ainda por cima, enviando-os de um mail certificado junto dessas instituições, afinal têm que ser resolvidas presencialmente, com papéis na mão. Um atraso de vida. Portanto, amanhã vou ter que andar a visitar capelinhas, à moda antiga.

Durante a tarde estive a dar uma volta, ainda que superficial, muito pela rama, no saco com a correspondência de que falei ontem. Há ali muito mais cartas e postais do que poderia supor.

Descobri o nome completo daquele tal meu amigo do Porto. Estive a reler várias das suas cartas. Era um aluno excelentíssimo, tinha tido 20's e 19's e, naquela altura, estava indeciso quanto à profissão a seguir. Pois bem, o google leva-nos quase até casa das pessoas. É um ilustre catedrático na Universidade do Porto, membro de inúmeros júris de doutoramento a nível internacional, publicou dezenas de artigos. Vi as fotografias dele agora. Não mudou muito. Era alto, magro e bonito e assim continua, só que agora em versão platinada, mais interessante que antes. Se quisesse poderia contactá-lo pois lá está o endereço de mail dele.

Encontrei também várias cartas do Brian, um inglês de que, estranhamente, também já não me lembrava. De Wales. Era alto, na altura parecia-me desengonçado, cabelo liso pelo ombro. Ao reler as cartas fiquei admirada: como pude varrer da memória o que, lendo agora, me parece bastante interessante? Falava do ambiente em Inglaterra, dos problemas com o IRA, do separatismo. Contudo, à medida que ia relendo, a memória parece que ia acordando. Naquela altura, lembro-me agora, era excitante eu corresponder-me com uma pessoa que me falava de temas que me eram, então, algo distantes. Tinha um cosmopolitismo que eu sentia como contagiante. Eu devia colocar-lhe muitas questões pois ele escrevia que estava a responder às minhas questões e que ficava muito contente quando, ao receber o envelope, percebia que lá dentro vinha uma carta com muitas folhas. As dele também eram grandes. Pesquisei. Com o nome dele, e tinha o nome completo, em Wales, encontrei um que foi desportista em novo e também um cirurgião. Falecido há dois anos. Não consigo ter a certeza que era o mesmo.

Encontrei também várias cartas de um amigo de liceu que viria a ser colega de faculdade do meu marido e com quem eu me dava muito bem. Digamos que se chamava Valeiro. Tinha muitos irmãos e queixava-se do barulho que havia sempre em casa. Era uma pessoa de uma franqueza extraordinária. Era diferente. Tinha interesses e gostos atípicos nos rapazes daquela idade, naquela altura. Gostava de música clássica e inventava aparelhos que eu achava fantásticos. Era um amigo com quem eu treinava a telepatia. Ele achava que eu tinha dons de divinação pouco usuais e punha-me à prova e eu gostava que ele o fizesse. 

O ano passado escrevi uma história na qual incluí diversos acontecimentos invulgares e, estranhamente, verídicos, acontecidos comigo numa dada altura da minha vida. Uma vez encontrámo-nos e ele, do nada, perguntou-me se não estavam a acontecer-me coisas inexplicáveis. Fiquei muito admirada com a pergunta e contei-lhe. Ele disse-me que não se admirava e aconselhou-me a ter cuidado. Contei isso na história. E, tal como sempre me acontece quando escrevo, às tantas, no decurso da história, as coisas ganham uma dinâmica que é independente da minha vontade. E foi assim que, na história, eu descobria, consternada, que esse meu amigo, que coloquei a viver no Alentejo, tinha morrido. Fiquei muito incomodada por estar a 'matar' um personagem que era, na verdade, uma pessoa real. Tive vontade de apagar aquelas páginas mas não consegui pois esse era o rumo que a história tinha seguido. Convenci-me que não era ele, era um personagem fictício e, embora com algum esforço, prossegui.

Entretanto, tentei ver se sabia alguma coisa dele. Googlei. Não encontrei. Procurei pelo nome de que me lembrava, digamos que João Valeiro. Nada. Tentei lembrar-me de outros apelidos. Não me lembrei.

Por essa altura, estava eu já mesmo quase no fim da história, uma amiga ligou-me. Falámos de um outro. Perguntei por esse tal outro. Digamos que Antunes. Essa minha amiga perguntou: "Qual Antunes? É que havia dois, não sei se te lembras, o Vaz Antunes e o Antunes Valeiro". E eu respondi: "Ah, pois é, tens razão. Mas referia-me ao Vaz Antunes. Sempre tratei o Valeiro por João Valeiro, nem me lembrava que também era Antunes. Que é feito dele também?" Ela não sabia do João, só que estava pelo Alentejo. Sabia, sim, do primeiro, do Vaz.

Nesse dia contei ao meu marido a graça da coincidência. "Vê lá tu que estou a escrever uma história em que entra o João Valeiro e, sem mais nem ontem, hoje liga-me a Sofia e às tantas veio à baila o nome dele, parece que está a viver no Alentejo". O meu marido lembrava-se bem dele, ficámos a conversar sobre as suas excentricidades. Eu não achava que fossem excentricidades, achava que eram apenas coisas surpreendentes de uma pessoa surpreendente.

Dias depois, estando eu a conversar com outros amigos, porque andava com aquela atravessada, perguntei se sabiam do João Valeiro. Fiquei gelada quando me disseram que tinha morrido recentemente. Nem perguntei como foi não fosse dar-se o caso de ser como eu escrevi na minha história. 

Quando contei ao meu marido, ficou incomodado. Tínhamos estado a recordá-lo, era 'rapaz' da nossa idade e, afinal, já tinha morrido.

Não tive coragem de lhe contar que, na minha história, ele também tinha morrido, deixando a personagem feminina, que eu escrevi na primeira pessoa, eu, deveras abalada.

Tive vontade de não pegar mais na porcaria da história, tão incomodada fiquei com a diabólica coincidência. Mas depois forcei-me a ser racional. Tinha sido uma coincidência (uma coincidência do caraças mas uma coincidência). Por isso, acabei a história.

Como sempre faço, no fim, peço ao meu marido para ler. Mando-lhe por mail na noite em que acabo.

No dia seguinte, o meu marido estava mal disposto. Nem queria falar. 

Quando lhe perguntei o que era, quis saber: 'Quando escreveste que o personagem do João Valeiro tinha morrido já sabias que ele tinha morrido de facto?'

'Não. Escrevi isso a meio da história. E só soube que isso aconteceu de verdade para aí há uns três ou quatro dias, já a história estava praticamente no fim. Porquê?'

'Foi o que pensei, que não tinhas tido tempo de escrever tudo em tão pouco tempo'

Quis saber o que tinha achado. 

Incomodado disse-me que tinha parado ali pois tinha percebido que eu tinha adivinhado que ele tinha morrido.

Não consegui que ele acabasse de ler a história. Acho que teve receio de descobrir mais coisas estranhas.

E hoje, ao ler aquelas cartas dele, uma pessoa tão especial, tão diferente, também me fez muita impressão. Como é possível que já não esteja vivo? E como é possível que eu tivesse adivinhado que ele tinha morrido? É que nem consegui alterar a história pois parece que tinha a certeza de que ele já não estava vivo.

Tempos depois, num almoço de verão, um outro amigo perguntou-me: 'Já sabes que o João Valeiro morreu? Foi recentemente.... Uma coisa terrível... um choque para toda a gente...'. Disse que sim mas atalhei a conversa com receio que ele fosse contar-me a causa e que fosse tal e qual como descrevi. 

Numa das cartas ele falava-me num equipamento que estava a testar, que descodificava o código de morse e enviava sinais já nem sei para onde. Estava sempre a ter ideias. E, na história que inventei, muito da trama tem a ver com uma cena engendrada por ele. Na volta, de lá, onde está agora, envia e descodifica sinais que eu, que sempre captei os seus pensamentos, consigo 'apanhar'.

Enfim. Coisas que não consigo bem explicar. Nem interessa. Mais vale ficar assim.

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Desejo-vos um dia bom

Saúde. Serenidade. Paz.

sexta-feira, março 03, 2023

A beleza e a serenidade que se respira no Palazzo Doria Pamphilj, um palácio italiano do Sec XVI, e a tranquila modernidade de Isabella Ducrot



 

As belas cores italianas feitas de sol, de terra, de mar, de sinais do tempo nas coisas estão ali muito  presentes. Há uma harmonia antiga que nos cativa.

Muitas pessoas associam as coisas antigas a mausoléus, a móveis 'de estilo', escuros, sofás de pele escura ou veludos soturnos, tapetes em tons bordeaux escuros, pinturas sombrias com molduras de madeira escura, casas mal iluminadas em que o sol, se entrar, não tem onde se reflectir. 

Há ainda quem preencha todo o espaço com móveis, sofás e traquitanas de toda a espécie não deixando espaço de circulação. Ou quem, em contrapartida, deixe espaços vazios, não como um espaço de luz e respiração mas como prova acabada de abandono ou de falta de inspiração.

Em qualquer dos casos, os espaços serão inóspitos, pouco acolhedores, pouco felizes.

Claro que, falando assim, tenho que pensar nas pessoas que têm casas pequenas porque não conseguem pagar maiores e que, portanto, não têm como pensar em decoração quando as primeiras necessidades são as que falam mais alto. Ou nas que mobilaram a casa de uma maneira e agora não têm meios para a renovar. Ou, ainda mais, claro, as pessoas que não têm casa.

Mas sempre haverá quem passe por situações que não lhes permita fazer aquilo que tanto gostaria de fazer. 

E, aliás, estou em crer que mesmo para pessoas que gostavam mas não têm como viver em casas organizadas e decoradas de outra maneira, ver casas bonitas pode ser um bálsamo, uma escape, uma porta para o sonho, um pretexto para imaginar outros voos.

O que Isabella Ducrot (nascida em 1931 em Nápoles e agora a viver e trabalhar em Roma) aqui nos mostra é, a meus olhos, extraordinário. Há conforto, há luz, há modernidade, há antiguidade, há uma sã convivência entre tudo, talvez favorecida pela luz clara e serena que a envolve.

E a maneira como ela trabalha, o despojamento, a leveza e harmonia das formas e das cores, o prazer das texturas, do toque, a dimensão arrojada, tudo nela é surpreendente e, ao mesmo tempo, reconfortante (digamos assim). 

E já nem falo nos seus 92 anos. Noventa e dois. Senhores, como é bela e jovem e serena esta mulher.

De novo, lamento que o vídeo não tenha legendas em português. Mas o italiano de Isabella é pausado e aberto, percebe-se bem e é muito saboroso. E, para quem não perceba, lá estão a legendas em inglês.

Touring A 16th-Century Italian Palace: Isabella Ducrot’s Private Art Collection | Visitors’ Book

The World of Interiors presents Visitors’ Book with Isabella Ducrot at Palazzo Doria Pamphilj in Rome, Italy. Step inside Isabella’s beautiful 16th-century apartment situated above the prestigious Doria-Pamphilj gallery, as we explore her private art collection.

Together with her late husband, Vittorio Ducrot, Isabella has collected an array of art that reflects their intimate travels — from Giaquinto’s Madonna to a number of Indian miniature paintings. “Our collection of Indian miniatures is the fruit of our travels to India, where we went every year for sixty years.” Watch the full episode of Visitors’ Book as we explore Isabella Ducrot’s slice of the Palazzo Doria Pamphilj in Rome. 


Um dia bom
Saúde. Serenidade. Paz.

segunda-feira, março 28, 2022

Em noite de Oscares, memórias de outros tempos e vídeos muito esclarecedores nomeadamente aquele em que se fala de uma certa ponte dourada.
A vida é múltipla, incoerente e misteriosa.

 



Um dos meus professores de História era o Reitor, um bacano, um bon vivant. Baldava-se à grande e à francesa às aulas. Aquilo não tinha seguimento. Nunca se percebia que matéria estava a dar, se é que estava a dar alguma. Num dos testes deu-me uma nota fraca que não compreendi. Pensava que tinha as respostas certas. Nunca fui de me ficar quando penso que tenho razão. Tentei falar com ele no liceu, tentei, tentei, mas não consegui. Como sabia onde morava, não fui de modas: fui a casa dele. Não me recordo exactamente dos pormenores mas o que me ficou é que ficou muito atrapalhado e surpreendido por lhe ter aparecido em casa. Lembro-me também que confessou que, na realidade, não tinha tido tempo para ler os testes com atenção. Disse que ia rever. Mas deve ter-se esquecido. Não reviu e tive uma nota abaixo da que me pareceria justa. Aquilo deixou-me arreliada, injustiçada. Tudo naquela disciplina, pela forma como era data, me soava a pouca coisa. Cheguei ao fim do ano com a sensação que não tinha aprendido nada.

Outra professora que tive a História era um desastre. Era muito enfática, teatralizava o que dizia mas tinha um problema: parecia que engolia ar a mais e ficava com a voz transtornada como se precisasse de dar um grande arroto. Como não o dava, ficava a disfarçar a aerofagia enquanto falava. Já antecipávamos quando aquilo ia acontecer, e acontecia várias vezes em cada aula. Aquilo dava-me uma terrível vontade de rir. De vez em quando tinha brutais ataques de riso que mal conseguia controlar.

Um desses ataques mais complicados aconteceu num dia de teste. Já o devo ter aqui contado. Apesar de ser aluna mediana a História, à minha volta havia quem soubesse ainda menos. Eu deixava copiar tudo. As mesas ('carteiras') eram individuais, em filas. A rapariga que estava na fila ao lado da minha era minha grande amiga e, naquele dia, estava mesmo atrapalhada. Perguntava-me e eu tentava bichanar-lhe a resposta mas ela não percebia. Fez-me sinal para eu escrever. Para além da folha de ponto, folha própria, eu tinha uma folha de apoio, como se fosse para me servir de rascunho. A professora estava desconfiada e eu não sou grande coisa a disfarçar o que quer que seja. Escrevi a resposta na folha de rascunho, meio às escondidas, sempre pronta para esconder a folha debaixo da folha de teste, e, mal apanhei a professora distraída, passei-lhe a folha. A professora sempre de olho. Então, quando vou continuar a fazer o teste, cai-me tudo: na atrapalhação, despassarada como sou, tinha-lhe dado a minha folha de teste e tinha ficado apenas com a folha de rascunho que continha apenas a resposta a uma pergunta. Quando recebeu o meu teste, a minha amiga olhou para mim espantada, assustada. E eu, ao ver o que tinha feito, desatei a rir. A professora perguntou-me o que se passava e eu, entre o assustado e o divertida, disse que não era nada -- mas cada vez me ria mais. A outra cheia de medo, sem saber o que fazer, com o meu teste nas mãos e eu, em vez de estar sóbria, para a professora deixar de olhar para mim, naquele despreparo. Às tantas, a professora já me perguntava se eu queria ser posta na rua. E eu a chorar a rir. A outra já em pânico e a professora intrigada, desconfiada, a julgar que eu estava a rir dela. Fiz um esforço enorme, pensando que se não conseguisse recuperar o teste, no fim estaria em maus lençóis. Ao fim de um bocado, lá consegui que a professora desviasse os olhos e a outra lá conseguiu restituir-me o teste. Devo ter tido uma nota meio da treta, pois não devo ter conseguido acabar. Não me lembro. Só me lembro do ataque de riso. Ainda hoje, enquanto escrevo isto, me rio.

Tive uma outra professora, uma já com uma certa idade, que usava umas roupinhas muito curiosas. Lembro-me de um vestido justinho de malha que lhe ficava deveras bizarro. As aulas consistiam na sua leitura do livro. Ao fim de um bocado, já ela estava a perder a mão na turma. Ela lia monocordicamente, enquanto toda a gente se portava mal, ria, contava piadas, pregava partidas. Ela bem tentava ter mão em nós mas era impossível. De vez em quando enchiam a sua cadeira de pó de giz. Quando ela depois andava a ler o livro entre as filas de carteiras, a saia tinha duas manchas brancas no rabo e toda a gente ria a bom rir. Nos testes, queria que repetíssemos quase palavra por palavra o que estava no livro. Se omitíamos uma linha ou uma palavra, ela marcava incompleto. Por essa altura eu era apaixonadíssima pelo bad boy da turma. Num dia de testes, ele foi apanhado com o livro em cima do tampo da carteira a copiar as respostas. Ela, quando viu, ficou histérica: 'O que é isto? A copiar? Seu descarado? A copiar à descarada? O que vem a ser isto?!' E ele, sereno, desafiador: 'Como quer respostas exactamente iguais ao livro, resolvi certificar-me de que não falhava uma palavra'. Ela enraivecida e todos nós perplexos. Furiosa, mandou-o entregar a folha de ponto e sair da sala, ameaçando-o de que ia anular o teste. Eu com o coração disparado, querendo que ele tivesse juízo. Mas ele, descaradão e descontraído, levantou-se e saiu, nas calmas, sorridente. No entanto, movimentámo-nos todos e ela teve que arrepiar caminho. Com esta professora, eu, que sou péssima a decorar o que quer que seja, desliguei. História não era comigo, definitivamente.

Com estes professores nunca consegui, pois, que me ensinassem a gostar de História e isso ficou-me para o resto da vida. Tenho a sorte de ter cá em casa uma pessoa que gosta e sabe de História e que me ilumina quando estou às escuras. Mas é uma lacuna que nunca conseguirei ultrapassar.

[E estou a escrever isto enquanto as estrelas entram na cerimónia dos Oscares e se apreciam os vestidos que desfilam na passadeira (parte deles deixando os seios praticamente a saltar-lhes de dentro) e, ao mesmo tempo, leio notícias e vejo vídeos sobre a situação da Ucrânia e recrimino-me por misturar, no meu tempo e no meu espaço, o medo e o sangue com a volubilidade e o glamour da moda e da festa do cinema e com recordações que não têm nada a ver. Mas a minha cabeça deve precisar de manter compartimentos para cada emoção e, por isso, nem vale a pena eu fingir que não: ao mesmo tempo que me preocupo e me angustio e que me revolto com a bandidagem do Putin, mantenho via verde para as minhas memórias e, en passant, para ir acompanhando l'air du temps. A mente é um lugar tortuoso com labirintos, abismos, clareiras, pontos de luz.]

Mas esta conversa sobre a minha ignorância sobre História para dizer que, enquanto confesso o meu desconhecimento sobre matérias que explicam a raiz de muitos conflitos, a verdade é que, no que se refere à actualidade, tento compreendê-la nas suas diferentes vertentes. O que se passa na Ucrânia parece-me de tal forma aberrante e condenável que tento espreitar os acontecimentos sob diferentes ângulos. Evito fontes que podem ser discutíveis e procuro órgãos de comunicação social idóneos nos quais a informação é validada.

Hoje partilho vídeos que me parecem muito esclarecedores. Sendo todos interessantes, vi com especial atenção o último. Como sempre, não existem versões com legendagem em português...

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What untruths is Russia spreading about Nazis in Ukraine? - BBC News

One of President Putin’s justifications for his invasion of Ukraine is that he wants to "denazify" the country.

Ros Atkins looks at the distortions and untruths that Russia is spreading about Nazis in Ukraine - including about the role of the Azov regiment, who are based in Mariupol and are part of Ukraine's national guard.

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'Could be a big problem for you': Security analyst's warning to Putin

CNN's Peter Bergen reviews the implication of the Soviet Union's invasion of and withdrawal from Afghanistan, and how it could draw parallels to Russia's war in Ukraine today

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The Psychology of an Isolated Russia | The New Yorker

David Remnick and the historian Steve Kotkin discuss Vladimir Putin and how authoritarian regimes are pushed into misguided foreign wars.
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Pinturas de Nathan Altman na companhia de Valeria Kurbatova (Harpa) e de Davina Clarke (Violino) que interpretam o Romance de Dmitri Shostakovich

[Caso ainda não tenham reparado, este blog não gosta de assassinos, nomeadamente, de um dos mais cruéis de que há memória nos tempos recentes, mas acolhe de braços abertos a arte e os artistas russos]
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Desejo-vos uma boa semana a começar já por esta segunda-feira
Saúde. Boa sorte. Paz. E que o milagre não se faça esperar.

segunda-feira, março 07, 2022

Que faremos depois disto? O mundo vai ficar diferente. E nós vamos ficar iguais?
E o que dizem os que conhecem Putin bastante bem (Bill Browder, Garry Kasparov) e os que observam e pensam sobre ele e sobre o que se passa na Rússia e no mundo (Ekaterina Kotrikadze, Yuval Noah Harari?
O que o vai fazer vergar?

Что мы будем делать после этого? Мир будет другим. И будем ли мы такими же?
А что говорят те, кто достаточно хорошо знает Путина (Билл Браудер, Гарри Каспаров), и те, кто наблюдает и думает о нем и о том, что происходит в России и мире (Екатерина Котрикадзе, Юваль Ной Харари?
Что скажут? заставить тебя согнуться?

 


Há assuntos que eram inequivocamente prementes e que agora parece que passaram de moda. E, no entanto, nem é correcto eu colocar a frase no passado (porque continuam prementes) como é erradíssimo que tenham saído do nosso radar. Um dos temas tem a ver com a emergência climática e com todas as medidas necessárias para travarmos o fim do mundo que conhecemos, habitável por humanos.

Mas, na realidade, como poderemos preocupar-nos agora os gases com efeito de estufa, com o aquecimento global, com os fenómenos climáticos extremos quando assistimos, em tempo real, a bombardeamentos, a estradas cheias de tanques e os céus cheios de aviões, a uma destruição em larga escala (e sabe-se lá que mais virá por aí)?

Um amigo, até há algum tempo, quando queria definir alguém que, em vez de se preocupar com os assuntos concretos que tinha em mãos, se dispersava por futilidades, dizia: 'é daqueles que está sempre com a cabeça no buraco do ozono'. E, de certa forma, ocorre-me que se, no meio da chacina a que assistimos, fossemos falar nas emissões poluentes que degradam a atmosfera e retardam a recuperação pretendida, alguém também diria que deveríamos andar com a cabeça enfiada no buraco do ozono para nos esquecermos das cidades em ruínas, de mais de um milhão de expatriados e de um número incontável de mortos, e só nos preocuparmos com frioleiras.

Com as economias a sofrerem os efeitos da guerra (e vão sofrer) -- e tomara que não com uma crise financeira daquelas barbudas à perna -- quem vai ter cabeça para querer saber das medidas para que daqui por uns quantos anos estejamos menos em perigo na vertente climática? As pessoas devem é estar preocupadas com o emprego, com serem capazes de pagar as suas casas, com terem dinheiro para viverem como antes pensavam que iam viver. Certo. E... no entanto... há outro mundo onde viver para além do que estamos a destruir...?

Tento ver alguma coisa boa nesta tragédia: sempre há alguma coisa boa, penso. Mas a mim própria me coloco reservas. Não sei se é altura para optimismos.

  • A Europa percebeu que não pode estar tão dependente de regimes ditatoriais? É verdade... Mas e é bom estar tão dependente da China (que também não é uma estampa em termos de democracia)? 
  • A Europa percebeu que é um peão (e um alvo fácil) entre os Estados Unidos e a Rússia? Ah sim... e daí...? Fazer o quê, agora? Fugir para Marte...?
  • O mundo percebeu que não tem meios para travar um demente, um paranóico, um mitómano, um psicopata? Muito bem. E então? O mundo faz o quê? Em concreto faz o quê? Espera sentado que apareça o tal Brutus, é isso...?

Diria eu que algumas pessoas inteligentes e de espírito forte deveriam estar, a esta altura do campeonato, a reunir-se para, rapidamente, se preparar uma refundação de uma série de instituições, posicionando-as à luz do que se tem vindo a viver.

Dirão os timoratos que não é bom pensar em refundações enquanto as sirenes tocam e o sangue escorre do corpo dos inocentes. Não interessa. Em tempo de guerra não se limpam armas. E qualquer altura é boa para melhorar o que está mal. Têm é que ser pessoas com alguma elevação para que os assuntos não sejam tratados com cegueira e espírito de vingança.

  • Os mais virados para a acção devem procurar-se uns aos outros -- certamente em conjunto com os serviços secretos daqui e dali --e estudar formas correctivas de travar malucos, dementes e tarados que estejam armados e sedentos de poder
  • Os mais virados para a organização, para as leis e para a justiça, deverão juntar-se e ver o que hoje os trava ou põe em causa a segurança do mundo sem que possam fazer nada par areformular leis, estatutos, etc. 
  • Os mais virados para as contas devem preparar os dias que se seguem: injectar dinheiro em força na economia? Preparar o embate financeiro decorrente das consequências das sanções à Rússia? 
  • Os mais resilientes deverão encontrar planos para salvar o planeta apesar da guerra. E deve haver cenários. O worst-case scenario, com partes do planeta mergulhados num longo e penoso inverno nuclear, o cenário intermédio, em que não há crise letal mas há destruição brutal e crises de toda a espécie ou o best-case scenario em que alguém consegue travar Putin dentro de não muito tempo e acabar com a destruição da Ucrânia sem que outros países sejam atacados.

Acredito que tudo isto esteja a ser preparado.

Uma coisa é certa: de uma vez por todas deveriam ser criados mecanismos que previnam a guerra. Não me venham com conversas de coisas que remontam a gregos e troianos, ao berço da civilização, o instinto bélico sempre presente na cabeça dos homens e o diabo a sete. Não quero saber. Que se dane isso. O que todos devemos querer é uma vida simples, sem medos, sem que ninguém tenha que matar ninguém, em que possamos pensar no futuro sem medo, em que possamos alimentar sonhos, em que possamos estar uns com os outros, felizes, livres, em que possamos dizer o que pensamos, sem medo, em que qualquer maluco com instinto criminoso seja legalmente impedido de fazer mal aos outros.

Lirismo?

Talvez. Mas se, em vez de andar meio mundo a fazer selfies a torto e a direito -- reduzindo o mundo às selfies e aos pratos uns dos outros, consumindo tempo com smiles e emojis infantis que nada acrescentam a coisa alguma --, prestarmos atenção ao que interessa, se formos cuidadosos a votar, se votarmos em quem nos representa, se mostramos, no nosso dia a dia, que queremos um mundo melhor, se nos chegarmos à frente para defender as nossas ideias (mesmo que seja apenas um chegar à frente simbólico, com os meios que se tem ao alcance) talvez se consiga alguma coisa. Pelo menos assim o desejo.

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Percorro as notícias e os vídeos a ver se encontro alguma solução milagrosa para esta guerra estúpida e cruel, tenho esperança que apareça alguém a saber, de fonte segura, como se irá conseguir pôr cobro a isto. Tenho visto entrevistas interessantes e, de certa forma, convergentes na forma como vêem Putin. 
Pensa nele e só nele, pensa no dinheiro que tem a ocidente, é um facínora e um ditador. Todos acham que o seu regime tem o fim à vista. 
Mas mais do que isso ainda não se sabe. Como? Quando? Não se sabe. 
Mas eu, que sou uma optimista (embora agora muito timidamente o seja, confesso), acredito que talvez dentro de poucos dias, talvez até ao fim deste mês, esta guerra comece a esboroar-se e que o resto será tratado internamente (na Rússia, quero eu dizer).

Mas tenho-me enganado tanto ultimamente que já não sei. Acreditava que ele não ia invadir a Ucrânia, que isso era histeria da comunicação social a fazer o frete aos senhores do armamento... e veja-se como me enganei redondamente... Portanto, já não sei é nada.

Deixem, portanto, que partilhe alguns dos vídeos. Não há com legendas em português mas talvez a maioria de quem por aqui me acompanhe arranhe o suficiente a língua inglesa para perceber o que dizem.

Russian news anchor, Ekaterina Kotrikadze, says millions of Russians feel invasion is a catastrophe

Russian news director and anchor, Ekaterina Kotrikadze, speaks to CNN's Fareed Zakaria about the state of the country's news media after her station, TV Rain, shut down due to the Russian government's crackdown on local media over unfavorable coverage of the war in Ukraine.

Bill Browder on Putin: When You Believe Your Time Is Almost Up, You Start a War | Amanpour and Company

Unprecedented sanctions have sent the Russian ruble tumbling. The U.S. has now cut off Russia’s central bank from its $630 billion so-called sanctions-proof fund. Bill Browder is CEO of Hermitage Capital and the architect of the Magnitsky Act, used by President Biden to impose sanctions on Vladimir Putin and his oligarch cronies. Browder speaks with Walter Isaacson about the tactic of cutting Putin off from his wealth. 


What is Putin’s Endgame? Garry Kasparov on Russia’s Attack on Ukraine | Amanpour and Company

A vocal critic of the Russian leadership is Garry Kasparov, the chess grandmaster who repeatedly ranked world number one for 20 years before turning his attention to politics. He tells leaders to “help Ukraine fight against the monster you helped create.” Kasparov speaks with Walter Isaacson


The War in Ukraine Could Change Everything | Yuval Noah Harari | TED

Concerned about the war Ukraine? You're not alone. Historian Yuval Noah Harari provides important context on the Russian invasion, including Ukraine's long history of resistance, the specter of nuclear war and his view of why, even if Putin wins all the military battles, he's already lost the war. (This talk and conversation, hosted by TED global curator Bruno Giussani, was part of a TED Membership event on March 1, 2022.

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As fotografias mostram imagens de quem quer a paz e de quem foge à guerra. Todas no Guardian, essencialmente de Ukraine protests around the world – in pictures. A música é Moonlight night, interpretada pela  Gimnazija Kranj Symphony Orchestra and Choir'composta por Mykola Lysenko com letra de Mykhailo Starytsky. 
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Desejo-vos uma boa semana a começar já por esta segunda-feira.
Saúde. Paz.

quinta-feira, março 03, 2022

A extraordinária resistência civil ucraniana. Trincheiras erguidas por voluntários. Soldados russos abandonam os veículos a largam equipamentos e uniformes. Tanques russos ficam sem combustível. E, finalmente, o que diz Colbert de tudo isto.

Чрезвычайное русское гражданское сопротивление. Окопы, сооруженные добровольцами. Российские солдаты бросают машины и сбрасывают снаряжение и обмундирование. В российских танках закончилось топливо. И, наконец, что обо всем этом говорит Кольбер.

 

Pode ser que sim, que o mundo viva assente, em equilíbrio instável, em dois pilares de interesses contrários que se merecem: os que já antes disputavam entre si os destinos do mundo. 

Tínhamos a União Soviética e temos os Estados Unidos. Quebrou-se a União Soviética e a Rússia, qual cabeça de casal da herança, assumiu o papel que antes tinha a União Soviética. 

No meio existem peões, palcos de guerra, locais em que os senhores da guerra dão vazão ao armamento para que as fábricas continuem a trabalhar, dinheiros muitas vezes 'protegidos' em offshores, existem refugiados, estropiados, existem possíveis alvos (como nós).

Do lado dos Estados Unidos foram mudando os presidentes, foram-se cometendo erros, crimes (Iraque, por exemplo). Outras vezes o clima distendeu-se, os ímpetos belicistas esmoreceram, quase pareceu que os tempos da guerra fria tinham ficado para trás.

Do lado da Rússia, Putin foi conseguindo ficar no poder e foi-se percebendo a sua nostalgia pelo domínio sobre territórios agora independentes mas antes soviéticos. O agente do KGB mostrou desde sempre que se vê como o macho alfa que vai levantar o orgulho soviético.

Há interesses do petróleo, do gás natural, do armamento em ambos os lados. Há actos censuráveis de ambos os lados. Mas a nível da política interna, há na Rússia de Putin uma apetência ditatorial que não existe, pelo menos de forma tão cruel e explícita, nos Estados Unidos.

Nem quando as tropas americanas estiveram presentes noutros países o fizeram de forma tão brutal, tão cega e prepotente como a Rússia está a fazer -- invadindo a Ucrânia, destruindo tudo, abatendo civis e destruindo edifícios residenciais e hospitalares, não respeitando nada à sua passagem, mostrando estar para matar até à capitulação da Ucrânia enquanto país. A barbaridade do que está a acontecer é impensável e imperdoável.

Até pode acontecer que neste mundo belicista em que vivemos -- a humanidade dependente de que um maluco carregue num botão e nos mande a todos desta para melhor -- seja prudente ter países buffer, neutros, almofadas entre os blocos, amortecedores. Pode acontecer que, entre os perigos fatais em que incorremos, seja prudente a Ucrânia não pender para um lado nem para outro. Mas, para isso, para obrigar a Ucrânia a não se proteger como pretende (acolhendo-se nos braços da Nato), a Rússia deveria obrigar-se a não beliscar as fronteiras da Ucrânia. Se a Ucrânia se quer manter una e indivisa, a Rússia (como qualquer outro país do mundo) deve respeitá-lo.

Seja como for, não se resolvem diferendos avançando sobre um país da forma grotescamente criminosa como Putin o faz. 

O mundo civilizado está contra a Rússia e isso é um consolo. Mas, na realidade, um fraco consolo. 

Os riscos são brutais, não nos enganemos. A resistência ucraniana é heróica, é comovente. Mas o poderio militar russo, sobretudo o aéreo, é suficiente para arrasar a Ucrânia. 

Pode, na Rússia, haver divergências internas, podem os oligarcas estar em recuo face à invasão, podem as sanções estar a ferir onde mais dói, pode isso tudo fazer Putin pensar duas vezes. Mas há caminhos sem recuo. Putin entrou nesse caminho. O macho alfa não vai recuar (a menos que alguém consiga obrigá-lo a isso). 

E há situações que podem desencadear uma escalada mais global. Entrar em espaço aéreo sem estarem autorizados a isso pode fazer com que exista uma retaliação que gere outra retaliação e, às tantas, as linhas vermelhas da guerra global estão a ser pisadas e um conflito de consequências ainda mais dramáticas pode alastrar a toda a Europa ou a todo o mundo .

Portanto, posso comover-me com a valentia ucraniana -- e comovo-me de cada vez que vejo a bravura desta gente e o sofrimento de outros tantos -- mas sou realista: os riscos para todos nós (todos -- ou seja, não apenas para o povo ucraniano) são muito grandes. E refiro-me a riscos de toda a ordem. Desde logo os económicos e os financeiros (que esses já são certos e temo que possam vir a ser pesados) mas também riscos de segurança. 

Já é lugar comum dizer que o mundo vai outra vez mudar depois deste crime que a Rússia tem em curso. Mas talvez não seja por ser um lugar comum que devamos desvalorizar esta perspectiva. 

A bem de todos, será bom que se encontre rapidamente uma solução para que possamos voltar a tempos de paz, pelo menos de paz aparente. Acredito que os serviços secretos de todos os países andem numa efervescência e que as diplomacias tentem encontrar pontes para o diálogo, isto enquanto os mais belicistas se babam com o excesso de testosterona que lhes corre nas veias. Não estou muito optimista, é o que posso dizer. Tocam as sirenes sobre nós.

[Fotografias genericamente daqui]

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Para melhor compreender a história da Ucrânia e as raízes da sua resistência, ler o texto de Guilherme d'Oliveira Martins: A resistência de um Povo

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Felizmente temos vídeos disponíveis para irmos vendo o que se passa. Aqui os vou partilhando para que fiquem pro memoria, pelo menos para mim, para a minha memória.




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The Met Chorus singing the Ukrainian national anthem before the opening of Don Carlo

(a day after the Opera announced it’s cutting ties with Pro-Putin artists)


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Paz na Ucrânia


segunda-feira, junho 07, 2021

Um domingo feliz com História e outras histórias dentro

 


O dia hoje foi perfeito. A tarde maravilhosa e nós envoltos em verde e harmonia. A minha filha trouxe merendinhas, um bolo de noz e revistas para eu me sentir em férias. Toda a vida, quando íamos de férias para algum lado, em especial para o Algarve, eu comprava uma revista, podia até ser a Caras, a Hola. Parecia que as férias tinham que ser uma disrupção, um corte com a rotina. Estar em férias, sem ralações, sempre me pareceu que pedia uma daquelas revistas que eu jamais compraria. Portanto, comprava. E gostava de ver aquelas coisas surpreendentes.

Então, trouxe-me revistas. E eu fiquei comovida com aquilo de que ela foi lembrar-se. O meu marido também. Tenho-me comovido bastante nestes últimos dias. E o meu marido também.

Um dia talvez conte.

O meu filho trouxe croissants, cada um com seu recheio. Bons, bons, bons. Acho que são de uma cadeia de pastelarias muito conhecida. Como geralmente ando por fora das novidades, desconhecia. Adorei. Brie com compota de frutos vermelhos. Requeijão e nozes. Maçã e canela. Claro que, de cada, só um pouquinho. O que sobrou, guardámos e, ao jantar, comi mais um bocadinho. Uma delícia.

Como geralmente acontece, a minha filha maquilhou a sobrinha e a sobrinha maquilhou a tia. Depois a minha menina mais querida maquilhou-me também a mim e também me pintou as unhas. Está cada vez mais linda, mais coquette. Uma menina linda, adorável. No outro dia, enviou-me uma mensagem que me deixou de lágrimas nos olhos.

A mãe pintou as suas próprias unhas e foi avisada que, da minha parte, não vai ter aquilo que me disse que talvez gostasse de ter pelos anos. Riu-se e disse: 'Está bem'. Uma vez mais ousei e, uma vez mais, faço figas para que goste do que, daqui por pouco tempo, vai receber. 

E conversámos. Conversa de mulheres, enquanto os rapazes andavam nos seus desportos de eleição. Levámos as cadeiras para o que ainda havia de sol, e estivemos à conversa. Falámos de nós, falámos de outras pessoas e outras situações. Conversar é uma coisa boa.

Este fim de semana não deu para ir buscar a minha mãe mas a minha filha enviou-lhe fotografias e depois ligou-lhe e ouvi que ela também ligou para o neto, qualquer coisa a ver com senhas de recuperação, dúvidas lá das andanças dela pelas netes.

O mais pequeno, menino mais querido, andou a brincar com os seus carrinhos, a pôr e transportar terra. Depois andou a regar as flores e as árvores. Não resisti e abracei-o e beijei-o no pescoço. Avisou-me: olha que estou sem máscara... Tranquilizei-o: Mas por isso é que te abraço pelas costas e dou beijinho na parte de trás do pescoço.

Quando estava a ir-se embora, fui dar-lhe a mão, chegar-me a ele. O meu filho avisou: olha que ele está cheio de covides. Anda no colégio, naquela idade ninguém usa máscara na escola, portanto é daquelas que ninguém sabe. Ele acrescentou: E ainda não levei a vacina... Menino mais inteligente, sabe tudo como se fosse um rapaz crescido.

Os outros rapazes estiveram a jogar rugby com o tio. Ou futebol, nem sei. Ou as duas coisas. Jogam afincadamente, caem, fintam-se, transpiram, sujam-se. Mas vê-se a alegria que aquilo é para eles. Tirei-lhes fotografias, feliz por vê-los tão felizes.

Enquanto lanchávamos, os dois meninos do meio, o menino que fez dez anos e a menina que vai fazer onze, começaram ao despique com coisas de História. Depois desataram a fazer perguntas a mim e ao avô. Falhámos várias. Sabem imenso daquilo. Fiquei surpreendida. O meu filho confessou que foi coisa que não lhe entrou, história. Também sempre foi dos meus pontos mais fracos. Tive maus professores de história e com a aversão que sempre tive a decorar coisas, acabei por me desinteressar. Por isso, é com espanto, agrado e orgulho que constato como estes dois sabem e gostam tanto.

Os outros dois rapazes, o mais velho, o que não tarda terá treze e a quem já se nota o buço, e o mano do meio do grupo de três, o que tem oito, têm outra especialidade: o futebol. Sabem tudo o que há para saber, nomeadamente o nome de todos os jogadores e respectivas posições, seja de onde for. Saint Germain, Lyon. Sei lá. Estava parva a ouvi-los. Não faço ideia de como sabem tudo aquilo. Começam: à baliza...E vão por ali fora, desfiando posições e nomes. O meu filho gozou: useless knowledge. Mas a verdade é que eles vibram com aquela informação. O mais velho disse que também está sempre a ver o site das contratações. Fiquei estupefacta. Site de contratações? Mas há um site sobre contratações? Há assim tanta matéria...? E porque é que ele gosta de acompanhar isso? Não faço ideia. O mundo é um belo exemplo daquele espaço topológico que dá pelo nome de bola aberta. Uma realidade infinita, de formas indefinidas, variáveis.

Depois o grupo do meu filho foi para casa, o meu marido quis ir ver o futebol e a minha filha ainda me deu uma boleia para um breve passeio até à praia, o mais velho a ouvir o relato pelo telemóvel. E, então, o mais novo, o menino mais desportivo, aquele que sempre vimos como o mais physical mas que sempre se sai com coisas surpreendentes, começou a fazer perguntas sobre Pablo Picasso. E sobre da Vinci. Disse que gostaria de ver a Mona Lisa ao vivo. E depois sobre Van Gogh. A mãe admirada: mas onde é que ouviste falar nele? Encolheu os ombros. E eu, então, ainda mais admirada. Depois falou de uma pintura com uma noite com muitas estrelas. A mãe boquiaberta. Mas como é que tu sabes disso? Ele não explicou. Mostrei-lhe no telemóvel se era aquela. Era mesmo. Então lembrei-me de lhes dar a conhecer o Vincent (Starry, starry night). Ficaram a ouvir, ambos zen, no banco de trás, pareciam hipnotizados a ver o vídeo em que iam passando imagens das pinturas de Van Gogh. A minha filha disse que, por pouco, eu não os tinha adormecido. E sugeriu que hoje aqui pusesse esta música. 

Gostava de me meter no carro e ir com eles visitar museus, mostrar-lhes, ao vivo, todas estas pinturas. Holanda, Paris, Madrid. Acho que iriam adorar. 


E, pronto, foi este o meu dia de domingo. A realidade do dia anterior já longínqua, improvável. E eu a pensar que por cada dia feliz que alguém vive há uns quantos dias infelizes para outros alguéns. A vida devora a vida. Tendemos a querer esquecer o que não são boas recordações. 

Quando, no outro dia, eu e o meu filho estávamos lá à porta, enquanto o meu marido não chegava com o carro para me levar, nós íamos falando e, ao pé de nós, uma jovem mulher falava ao telefone, chorando, inconsolável. Falava e chorava e a sua voz denunciava aflição, angústia, medo. Afastámo-nos um pouco, o meu filho querendo proteger-me da dureza que é a constatação, a cru, das mais dolorosas emoções. Mas poderemos alguma vez proteger-nos disso? Conseguiremos aprender que tudo faz parte da vida? 

Alguém pinta a luz e o ouro que banha os campos e as flores e a vida: uma jarra de girassóis, um campo de lírios, uma árvore em flor, uma planície ensolarada. E, do outro lado, uma pessoa angustiada, deprimida, automutilando-se -- a mesma pessoa. Os dois lados da vida. As múltiplas faces da vida. As nossas múltiplas faces.


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Desejo-vos uma boa semana