Mostrar mensagens com a etiqueta cartas. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta cartas. Mostrar todas as mensagens

domingo, fevereiro 11, 2024

O tio-avô anarquista, a avó que era Frida vibe, casórios e muitas centenas de cartas e de fotografias (centenas? ou milhares?)

 

Passei o dia de volta das caixas. Descobertas que, para mim, são fascinantes. 

Uma fotografia me encanou: a minha avó materna, muito jovem, sentada com o meu tio, ainda bebé, ao colo e a minha mãe, talvez com uns três anos, muito loura, olhos muito claros, muito séria. Mas o que mais me surpreende é o porte da minha avó, muito direita, com um vestido que devia ser de uma cor viva com um padrão não de bolinhas claras mas um qualquer motivo assim, com mangas compridas, cós branco nas mangas, um decote em bico com uma gola branca em volta e um colar de grandes e coloridas contas. Morena, cabelos pretos, sobrancelhas vincadas. A minha filha disse Frida Kahlo vibe. E é.

Tenho que arranjar maneira de ter em casa, algures, em destaque, algumas das incríveis fotografias que  descobri. E para as cartas antigas. Tenho que tê-las num lugar em que saiba onde estão. Receio guardá-las num sítio em que se perca o rumo para elas.

Descobri também um pequenino caderninho em que a minha bisavó escreveu a data de nascimento da minha avó, a data em que se casou e a data em que a minha mãe nasceu. Afinal nasceu à tangente com a minha avó com dezasseis acabados de fazer. 

Aí escreve também como o filho andou aos tiros, foi preso, foi deportado. Na fotografia dessa folhinha apaguei o nome desse meu tio-avô.

Noutra folhinha, diz que regressou e, mais tarde, foi outra vez preso.

Já descobri que era anarquista. Encontrei-o, via google, num trabalho sobre os movimentos anarquistas. Bate certo com o que a minha bisavó escreveu, a data, o nome do navio, etc. E a minha filha descobriu uma fotografia com os deportados dos anos 30 em Timor, na ilha em que, justamente, ele esteve. Um dos da fotografia é certamente esse meu tio-avô anarquista de que sempre ouvi falar como sendo um combatente, um aventureiro, corajoso. Viveu clandestinamente, esteve preso. Morreu pouco antes do 25 de Abril para grande desgosto da minha avó pois toda a vida ele lutou pela liberdade.

No dia do enterro da minha mãe (custa-me dizer enterro pois foi cremação; apenas uma semana e tal depois é que fizemos o enterro das cinzas), os meus primos, filhos do irmão da minha mãe, disseram que tinham descoberto não sei o quê sobre esse tio, qualquer referência histórica, creio, e que aparecia lá o nome de código dele. Tenho que lhes enviar a fotografia de algumas destas coisas que estavam com a minha mãe e pedir-lhes que me mandem imagens do que, se calhar, estava com o pai deles.

Nesse livrinho a minha bisavó fala de uma Luiza que tinha um amante e que viveu um drama, tendo sido salva. Nunca ouvi falar dela. Seria uma outra filha? Não sei.

Descobri também duas folhas antiquíssimas com textos, creio que humorísticos (mas tenho que me debruçar para conseguir ter a certeza). Tenho ideia que era correspondência dos primos algarvios, entre eles o que foi presidente.

E inúmeras, inúmeras fotografias. Primos em Lisboa, outros no Algarve. E muitas, muitas de quando eram jovens. Era um grupo enorme de amigos e deviam andar sempre juntos. E fotografias do casamento dos meus pais. E dos meus tios, os meus pais como padrinhos de ambos, a minha mãe de chapéu, elegante, o meu pai muto bem, eu de menina de alianças.

Passando para a correspondência que me foi dirigida tenho muitas dezenas, talvez centenas, de uma grande amiga epistolar, alguém que escrevia muito bem, com muita facilidade e que me encantava pelos seus gostos, pela sua cultura. São Tavares. Tenho ideia que estudou História. Tenho cartas que vinham de Leiria mas creio que ultimamente vivia no Porto. Não consigo descobrir o nome completo para conseguir descobrir que é feito dela.

E várias outras. Por exemplo, a Mané de Leiria. Era muito alegre, tenho ideia que era um espírito livre. E muito bonita. Mas a única coisa que sei dela é isto: Mané. Conhecia-a, a ela e à São, num acampamento creio que na Quinta dos Lilases, ao Lumiar. Estivemos uma semana a acampar e tornei-me muito amiga delas, uma amizade epistolar que durou vários anos.

Com tempo vou pôr as imensas cartas por ordem cronológica e vou ler.

Mas já separei as cartas por sacos: um para as cartas da São, outros para as da Mané, outro para as da Jill, outro, quase a rebentar, para o namorado que escrevi que se desunhava. Etc. Encontrei também cartas anónimas de um que dizia que era louco por mim, que me adorava há muito tempo. Como nunca descobri quem era, juntei-as ao saco do namorado. Enfim, vários sacos,

Foi o dia quase todo de volta do conteúdo das caixas. Tinha pensado que o dia me chegava para arrumar lençóis e toalhas de mesa mas o tempo não esticou. Entre refeições, caminhadas, fotografias e correspondências, não deu para mais nada.

A meio da tarde senti um cansaço grande, uma saturação. Ia pondo as coisas em cima de uma mesa e ia vendo, eu de pé. Mas o cansaço não foi, certamente, de estar tantas horas de pé. Deve ter sido de tanto tempo de atenção, de seguida.

Agora tenho que intervalar disso, tenho que descansar a cabeça.

_____________________________________

Um feliz dia de domingo

Saúde. Esperança. Paz.

sábado, fevereiro 10, 2024

Cartas de amor
(em noite de debate de Raimundo versus Ventura e outros)

 

O dia foi um pouco puxado ou, então, sou eu que estou a chegar à fase de alguma descompressão. Não sei. O que sei é que, depois de jantar, adormeci no sofá, mas adormeci tão profundamente que o meu marido estava francamente admirado. Não apenas me acordou algumas vezes como me perguntou o que é que eu tinha. 

Por exemplo, perdi grande parte do debate do pobre Raimundo com o tresloucado Ventura. Quando vi, estava o Raimundo às aranhas, titubeante, a parecer que queria dar cabo do outro mas a fazer aquelas figuras tristes que fazem os cãezinhos minúsculos quando, lá em baixo, se põem a ladrar freneticamente junto às pernas dos cães grandes que não lhes ligam patavina.

Também só vi um bocado do comentário do Paixão Martins, sempre fino como nenhum outro, com o Calafate. 

De facto, não percebi que onda de pesado sono foi esta que me submergiu.

E ainda não me encontro totalmente refeita. 

Por isso, não vou relatar com pormenor as minhas peripécias com a NOS, não apenas telefonicamente como em loja (onde fui entregar os equipamentos que estavam em casa da minha mãe). Digo-vos apenas que é uma despersonalização da mais absurda que há. Reconhecem que erraram (isto é, não deram seguimento ao meu pedido de cancelamento, comprovadamente feito ainda o ano passado), constatam que o erro prossegue (apesar de ter entregue os equipamentos, o contrato continua activo) mas afirmam que têm que continuar a errar (leia-se, a enviar-me facturas relativas ao contrato da minha mãe) até ao fim do ciclo (?) e que só nessa altura é que posso apresentar uma reclamação e pedir que anulem facturas emitidas indevidamente. Explicam-me que, na realidade, compreendem que eu ache estranho mas que não podem fazer nada, 'é o processo'. 

Tanto se automatiza e tanto tentam tornar-se eficientes que se tornam burros.

Já no outro dia, quando estivemos sem comunicações durante três dias e eu me queixei ao jovem que cá veio, respondeu-me ele: 'Três dias? Três dias está é muito bom... Tem vezes que vai quase a uma semana ou mais...'. 

E um desgoverno a gestão das equipas de manutenção da NOS. Dava um post, tal a barafunda e o mau serviço. 

Mas adiante que não estou em condições.

Tinha dito que ia fotografar o serviço de café (o tal que não é como aqueles de fundinho branco e florzinhas mimosas da VA, este é de uma fábrica na Baviera) que foi, adquirido pela minha mãe há certamente mais de cinquenta anos, por grande insistência minha. Aqui está, fotografado hoje, depois de ser desembalado e antes de ser devidamente arrumadinho num canto que lá consegui arranjar numa vitrina.


Não é lindão, mesmo?

Também estive a retirar cartas e fotografias e coisas que estavam misturadas nos sacos. Lembrei-me que estavam umas caixas grandes de cartão na garagem e já separei algumas coisas pelas caixas. Dentro das caixas ainda estão a granel e ainda devem ser agrupadas e organizadas. Mas tenho que ter tempo e disposição para isso. A menos que alguém me ajude. Mas também não sei se me apetece que se ponham a ler as cartas que me eram dirigidas, mesmo que de amigas.

Vou colocar as caixas nas estantes do compartimento do sótão que antes, quando a casa tinha outros donos, era a biblioteca privativa do senhor, apenas para as revistas e livros profissionais dele. 

Desencantei também uma saqueta com estojos de canetas. Presumo que fossem presentes que o meu pai recebeu. Claro que também não as usou. Guardou-as e agora vieram parar aqui a minha casa. Estão agora cá, numa gaveta, sem que eu também tenha uso para lhes dar.

No outro dia, em casa da minha mãe, também dei com uma coleção de leques numa gaveta de uma mesa de cabeceira. Ofereci-lhe alguns deles e só me lembrei disso ao revê-los. Ainda este verão lhe trouxe um do Algarve pois queixava-se do calor e nunca a via com leque. Afinal guardava-os todos bem guardadinhos. Como gosto muito de leques e tenho alguns que me parecem bem bonitos, coloquei um deles ao pé dos meus mais bonitos que estão como peça decorativa numa estante com portas de vidro.

Quanto às cartas do meu pai para a minha mãe, quando namoravam e ele estava longe, na tropa, a minha filha está cheia de curiosidade. Vai ficar surpreendida. Acho que vai ela, vai o irmão, vai o meu marido. Também eu estou pois desconhecia a faceta romântica do meu pai. Aposto que o meu marido nem vai querer saber, vai querer respeitar a contenção que o meu pai sempre revelou.

Estive a ver as fotografias dele quando era novo. Era um galã. Vestia-se e penteava-se de uma forma elegante e sedutora. Mas, ao mesmo tempo, era um desportista. Lembro-me muito bem dele a jogar futebol e a organizar torneios e lembro-me que fazia parte da equipa organizadora das equipas que praticavam todos os desportos. Por exemplo, os meus tios jogavam vólei. O meu pai acompanhava-os (e nem sei se também jogava, mas tenho ideia que eles é que jogavam a sério). Mas dois primos dele praticavam hóquei em patins. E eu adorava ir ver, à noite, esses jogos, sempre muito renhidos. Lembro-me bem de estar à espera deles e, às tantas, ouvir o barulho dos patins das equipas a descerem a rampa até ao campo e de achar que aquilo era uma excitação. E lembro-me de uma vez, em campo, se terem picado uns com os outros, já parecia que ia haver pancada, e de o meu pai, muito ágil, saltar por cima da barreira do campo. Pôs a mão em cima, deu balanço, e saltou lá para dentro. E eu fiquei com medo que se envolvessem à pancada com o meu pai no meio. Mas não. Com uma grande calma, lembro-me de ele ter posto uma mão no peito do primo, que era alto e bonito como um galã, do género do Belmondo mas mais bonito, e a outra mão no peito do outro, da outra equipa. E lembro-me de ele ter conseguido impor respeito e eles se terem acalmado e acabarem a dar um aperto de mão e, só então, o meu pai saiu do campo.

Mas, dizia eu, em família não me lembro de observar nele uma faceta romântica. E, afinal, ao ler as suas cartas, fico estupefacta. Ainda só consegui espreitar, e por alto, duas cartas. Sinto-me intrusa. Quem escreve uma carta de amor escreve apenas para a pessoa que ama, não para ser pasto para diversão ou especulação alheia.

Por exemplo, até as minhas cartas, as que foram dirigidas, me custa um bocado a ler. Declarações inflamadas, juras de amor eterno, diminutivos enternecidos, desenhos de corações... Bocados de um tempo passado. Já não somos os mesmos. Quem assim me escrevia já não é hoje assim e a que recebia aquelas palavras pingando amor já não sou eu. Quando me forçar a lê-las, admitindo que o consigo, terei que me esforçar para não as achar cansativamente ridículas. Felizmente não tenho as que eu escrevi senão sentir-me-ia, certamente, agoniada. E, isso, em especial, por, à posteriori, pensar que nada daquilo era verdadeiramente sentido. Se calhar, queria iludir-me, se calhar queria gostar, se calhar sentia-me bem por poder experimentar a sensação de parecer estar apaixonada. Mas na verdade não estava por aquele a quem escrevia as cartas. Portanto, ainda bem que não vejo o que escrevi. 

Mas adiante. Pode ser que um dia me apeteça partilhar aqui uma dessas inflamadas cartas de amor que recebi.

Hoje partilho uma página de uma das cartas que o meu pai escreveu à minha mãe. Aqui fica pro memoria. A sua letra manteve-se assim, firme, determinada, organizada, sem atropelos, com hastes e pernas pronunciadas. Isso diz muito da sua personalidade.


E partilho também uma das páginas da carta que o meu avô materno escreveu à minha avó. Afinal não é tão antiga quanto imaginei. Não sei onde fui buscar isso pois a carta não tem qualquer data e, como foi entregue 'por mão própria', não há carimbo. Mas penso que, no máximo, será de 1930. 

Diria que não era muito fã da sagrada arte da ortografia. Mas, na verdade, não sei se são erros ou se na altura se escrevia assim. 

Mandei antes à minha filha e ela deu-se ao trabalho de traduzir e de me enviar (porque eu estava um bocado impaciente para me concentrar nessa tarefa). Não escrevo aqui para não vos privar do prazer de tentarem descodificar por vós... 😃

Apaguei a nome da minha avó pois acho que devo manter estas coisas anonimizadas mas, por sinal, é um nome de que gosto bastante. 

Sei que eram apaixonadíssimos e que a minha avó ficou severamente abalada quando ele morreu, e ficou-o durante anos, creio para o resto da vida.


_______________________________________________________

E hoje fico-me por aqui. É tardíssimo.

Um dia feliz.

Saúde. Amor e encantamento e paixão. Paz.

terça-feira, fevereiro 06, 2024

Coincidências do caraças

 

Por estas bandas, a maior concentração de aniversários verifica-se nos meses em que o calor já se faz sentir. Mas, apesar disso, ainda há os que vieram ao mundo uns meses antes. Por exemplo, parecendo que não, ainda há uns aquários e como, nestas coisas, parece que gostam de se juntar, já vamos no segundo.

Por isso, cheguei a casa mais tarde. Acontece que, dado que a avaria comunicada à hora de almoço ainda não está resolvida, estou sem televisão por via normal e a net que tenho no computador está a ser fornecida pelo telemóvel. 

Ainda chegámos a tempo de tentar ver o Luís Paixão Martins mas parece que não houve. Espero que não o tenham cancelado pois, de facto, é daquelas vozes que sabe bem ouvir. Não tem medo, não tem papas na língua e é inteligente, et pour cause irónico. Se o retiraram das televisões fizeram mal.

Enfim, espero que tenha sido ele a ter tido algum resfriado ou insignificância do género e que não tenha querido estar a falar e a espirrar ou a assoar-se em directo e que, amanhã ou para a semana, esteja de volta.

Hoje também cheguei à conclusão que uma série de démarches que, na minha santa ingenuidade, convencida eu que o mundo já estava a virar digital, pensava que poderia resolver por mail enviando todos os documentos, e, ainda por cima, enviando-os de um mail certificado junto dessas instituições, afinal têm que ser resolvidas presencialmente, com papéis na mão. Um atraso de vida. Portanto, amanhã vou ter que andar a visitar capelinhas, à moda antiga.

Durante a tarde estive a dar uma volta, ainda que superficial, muito pela rama, no saco com a correspondência de que falei ontem. Há ali muito mais cartas e postais do que poderia supor.

Descobri o nome completo daquele tal meu amigo do Porto. Estive a reler várias das suas cartas. Era um aluno excelentíssimo, tinha tido 20's e 19's e, naquela altura, estava indeciso quanto à profissão a seguir. Pois bem, o google leva-nos quase até casa das pessoas. É um ilustre catedrático na Universidade do Porto, membro de inúmeros júris de doutoramento a nível internacional, publicou dezenas de artigos. Vi as fotografias dele agora. Não mudou muito. Era alto, magro e bonito e assim continua, só que agora em versão platinada, mais interessante que antes. Se quisesse poderia contactá-lo pois lá está o endereço de mail dele.

Encontrei também várias cartas do Brian, um inglês de que, estranhamente, também já não me lembrava. De Wales. Era alto, na altura parecia-me desengonçado, cabelo liso pelo ombro. Ao reler as cartas fiquei admirada: como pude varrer da memória o que, lendo agora, me parece bastante interessante? Falava do ambiente em Inglaterra, dos problemas com o IRA, do separatismo. Contudo, à medida que ia relendo, a memória parece que ia acordando. Naquela altura, lembro-me agora, era excitante eu corresponder-me com uma pessoa que me falava de temas que me eram, então, algo distantes. Tinha um cosmopolitismo que eu sentia como contagiante. Eu devia colocar-lhe muitas questões pois ele escrevia que estava a responder às minhas questões e que ficava muito contente quando, ao receber o envelope, percebia que lá dentro vinha uma carta com muitas folhas. As dele também eram grandes. Pesquisei. Com o nome dele, e tinha o nome completo, em Wales, encontrei um que foi desportista em novo e também um cirurgião. Falecido há dois anos. Não consigo ter a certeza que era o mesmo.

Encontrei também várias cartas de um amigo de liceu que viria a ser colega de faculdade do meu marido e com quem eu me dava muito bem. Digamos que se chamava Valeiro. Tinha muitos irmãos e queixava-se do barulho que havia sempre em casa. Era uma pessoa de uma franqueza extraordinária. Era diferente. Tinha interesses e gostos atípicos nos rapazes daquela idade, naquela altura. Gostava de música clássica e inventava aparelhos que eu achava fantásticos. Era um amigo com quem eu treinava a telepatia. Ele achava que eu tinha dons de divinação pouco usuais e punha-me à prova e eu gostava que ele o fizesse. 

O ano passado escrevi uma história na qual incluí diversos acontecimentos invulgares e, estranhamente, verídicos, acontecidos comigo numa dada altura da minha vida. Uma vez encontrámo-nos e ele, do nada, perguntou-me se não estavam a acontecer-me coisas inexplicáveis. Fiquei muito admirada com a pergunta e contei-lhe. Ele disse-me que não se admirava e aconselhou-me a ter cuidado. Contei isso na história. E, tal como sempre me acontece quando escrevo, às tantas, no decurso da história, as coisas ganham uma dinâmica que é independente da minha vontade. E foi assim que, na história, eu descobria, consternada, que esse meu amigo, que coloquei a viver no Alentejo, tinha morrido. Fiquei muito incomodada por estar a 'matar' um personagem que era, na verdade, uma pessoa real. Tive vontade de apagar aquelas páginas mas não consegui pois esse era o rumo que a história tinha seguido. Convenci-me que não era ele, era um personagem fictício e, embora com algum esforço, prossegui.

Entretanto, tentei ver se sabia alguma coisa dele. Googlei. Não encontrei. Procurei pelo nome de que me lembrava, digamos que João Valeiro. Nada. Tentei lembrar-me de outros apelidos. Não me lembrei.

Por essa altura, estava eu já mesmo quase no fim da história, uma amiga ligou-me. Falámos de um outro. Perguntei por esse tal outro. Digamos que Antunes. Essa minha amiga perguntou: "Qual Antunes? É que havia dois, não sei se te lembras, o Vaz Antunes e o Antunes Valeiro". E eu respondi: "Ah, pois é, tens razão. Mas referia-me ao Vaz Antunes. Sempre tratei o Valeiro por João Valeiro, nem me lembrava que também era Antunes. Que é feito dele também?" Ela não sabia do João, só que estava pelo Alentejo. Sabia, sim, do primeiro, do Vaz.

Nesse dia contei ao meu marido a graça da coincidência. "Vê lá tu que estou a escrever uma história em que entra o João Valeiro e, sem mais nem ontem, hoje liga-me a Sofia e às tantas veio à baila o nome dele, parece que está a viver no Alentejo". O meu marido lembrava-se bem dele, ficámos a conversar sobre as suas excentricidades. Eu não achava que fossem excentricidades, achava que eram apenas coisas surpreendentes de uma pessoa surpreendente.

Dias depois, estando eu a conversar com outros amigos, porque andava com aquela atravessada, perguntei se sabiam do João Valeiro. Fiquei gelada quando me disseram que tinha morrido recentemente. Nem perguntei como foi não fosse dar-se o caso de ser como eu escrevi na minha história. 

Quando contei ao meu marido, ficou incomodado. Tínhamos estado a recordá-lo, era 'rapaz' da nossa idade e, afinal, já tinha morrido.

Não tive coragem de lhe contar que, na minha história, ele também tinha morrido, deixando a personagem feminina, que eu escrevi na primeira pessoa, eu, deveras abalada.

Tive vontade de não pegar mais na porcaria da história, tão incomodada fiquei com a diabólica coincidência. Mas depois forcei-me a ser racional. Tinha sido uma coincidência (uma coincidência do caraças mas uma coincidência). Por isso, acabei a história.

Como sempre faço, no fim, peço ao meu marido para ler. Mando-lhe por mail na noite em que acabo.

No dia seguinte, o meu marido estava mal disposto. Nem queria falar. 

Quando lhe perguntei o que era, quis saber: 'Quando escreveste que o personagem do João Valeiro tinha morrido já sabias que ele tinha morrido de facto?'

'Não. Escrevi isso a meio da história. E só soube que isso aconteceu de verdade para aí há uns três ou quatro dias, já a história estava praticamente no fim. Porquê?'

'Foi o que pensei, que não tinhas tido tempo de escrever tudo em tão pouco tempo'

Quis saber o que tinha achado. 

Incomodado disse-me que tinha parado ali pois tinha percebido que eu tinha adivinhado que ele tinha morrido.

Não consegui que ele acabasse de ler a história. Acho que teve receio de descobrir mais coisas estranhas.

E hoje, ao ler aquelas cartas dele, uma pessoa tão especial, tão diferente, também me fez muita impressão. Como é possível que já não esteja vivo? E como é possível que eu tivesse adivinhado que ele tinha morrido? É que nem consegui alterar a história pois parece que tinha a certeza de que ele já não estava vivo.

Tempos depois, num almoço de verão, um outro amigo perguntou-me: 'Já sabes que o João Valeiro morreu? Foi recentemente.... Uma coisa terrível... um choque para toda a gente...'. Disse que sim mas atalhei a conversa com receio que ele fosse contar-me a causa e que fosse tal e qual como descrevi. 

Numa das cartas ele falava-me num equipamento que estava a testar, que descodificava o código de morse e enviava sinais já nem sei para onde. Estava sempre a ter ideias. E, na história que inventei, muito da trama tem a ver com uma cena engendrada por ele. Na volta, de lá, onde está agora, envia e descodifica sinais que eu, que sempre captei os seus pensamentos, consigo 'apanhar'.

Enfim. Coisas que não consigo bem explicar. Nem interessa. Mais vale ficar assim.

_______________________________

Desejo-vos um dia bom

Saúde. Serenidade. Paz.

segunda-feira, fevereiro 05, 2024

Um saco cheio de cartas

 


Quando eu deixei de morar em casa dos meus pais, deixei lá ficar, numa gaveta do roupeiro do meu quarto, toda a minha correspondência. Para mim, tudo aquilo era privado. Mesmo que não tivesse nada de especial, era privado, cartas que troquei com amigas e amigos, com namorados, conversas só minhas. Claro que ali só estava o que eu recebia, não o que eu escrevia, mas ali estava muito da minha vida. 

Sempre gostei muito de escrever e, na altura, não havendo blogues, havia a correspondência. Estava sempre à espera de cartas. E escrevia longas cartas, cada carta tinha sempre várias páginas. A bem dizer, isso durou, na prática, até ir de férias para Angola, com dezassete anos acabados de fazer, pois, a seguir a isso, veio a faculdade e, nessa altura, passei a ir a casa dos meus pais apenas ao fim de semana e, como é bom de ver,  as solicitações e os desafios eram tantos que, pelo que me lembro, o hábito de escrever e receber cartas se foi atenuando. Não acabou, acho que não, mas, forçosamente, deve ter sido mais esparso.

Mas, ao sair de casa, sabendo que aquela gaveta estava cheia de cartas, centenas, creio, não quis levá-las pois tenho esta característica: sempre que entro numa nova fase da minha vida, fecho a porta e sigo viagem sem levar nada atrás. 

Por vezes pensava que, estando ali tudo tão disponível e, em especial, tendo aquele quarto passado a ser o quarto da minha mãe quando o meu pai teve o AVC (ele teve que passar a estar numa cama articulada com protecção), era natural que ela não resistisse à tentação de ler todo aquele imenso manancial de informação. Desejei que não o fizesse mas sempre pus o coração ao largo: se lesse, paciência. Nunca lhe falei naquilo nem ela a mim. Aliás, sempre pensei que, mesmo que ela lesse, não ia confessá-lo pelo que, em termos práticos, era como se não tivesse lido.

Há algum tempo, quando estive num almoço em que esteve um meu ex-namorado, ao comentar algumas coisas com a minha mãe, ela disse-me que eu ainda tinha lá em casa toda as cartas que ele me escreveu. Eu disse que sim, que sabia, e 'deixe-as lá estar'.

Neste sábado, lá em casa, ao avaliar por alto o trabalho que temos pela frente e, sobretudo, o que pode ser distribuído entre os meus filhos (e, confesso, estou bem apreensiva pois vejo neles pouca receptividade -- e compreendo as suas razões), lembrei-me dessa gaveta. 

Não tinha ideia que fosse tanta coisa. Trouxe. Um saco cheio, cheio. Está agora aqui, na cave. Não sei quando vou ter tempo e paciência mas acho que deveria minimamente organizar aquilo. 

Hoje, quando fui lá abaixo à procura de uma coisa, lembrei-me de espreitar o saco. Vi um molho de cartas que, de repente, acendeu em mim uma recordação que eu julgava apagada. Um amigo algo especial, um rapaz muito interessante, muito inteligente. Era do Porto, do Liceu D. Manuel. Conheci-o em Lisboa, encontrámo-nos algumas vezes e tenho ideia de que pintou um climinha. Terei que ler as cartas para perceber a dimensão da coisa. Mas, ao pensar nisto, não posso deixar de concluir aquilo que é mais do que óbvio: isso também aconteceu enquanto namorava aquele tal outro, embora, no caso, ainda estivesse no início. Mas é mais uma que só prova aquilo que está mais do que provado, aquele namoro foi mesmo um flop, mas um flop dos gigantes, pois foram vários os interesses que tive enquanto o namorei. Mesmo naquele mês em Angola tive um outro interesse, e esse dos valentes, um que foi um vendaval, um tufão. Porque deixei que o namoro continuasse é daquelas coisas que ainda hoje me intriga. É certo que tentei, algumas vezes, acabá-lo mas continua a ser para mim um mistério o não ter posto um ponto final mal começou, isto porque comecei a namorar sem dar por isso. Criancices, só pode.

Também lá está, no meio do saco das cartas, um outro saco. Fui ver: as cartas desse tal namorado. Foi certamente a minha mãe que lá arrumou assim. Eu sempre fui na base de tudo ao molho e fé em deus, carta recebida ia direitinha para a gaveta, estava lá eu para fazer molhinhos. Abri uma carta só para me certificar que, naquele saco, eram as cartas dele. Eram, claro. Uma caligrafia perfeita. Era das coisas que eu gostava nele, a sua letra. Sendo figura das artes e das letras, reconhecido e incensado, às tantas ainda tenho para ali algum futuro tesouro.

Tenho é também que ver se descubro as cartas de um pen friend que conheci através de um anúncio numa revista. Era africano, dizia que vivia numa zona de guerra, que passava mal. Escrevíamo-nos em francês. Eu gostava muito de lê-lo e andava sempre aflita com medo que lhe acontecesse alguma coisa. Até que deixou de escrever. Naquela altura, sem internet, as pessoas que se perdiam de nós ficavam perdidas para sempre. Tenho que ver se, pelo nome, consigo saber alguma coisa dele. Mas tenho pouca esperança.

Também deve haver muitas cartas da Jill. Conheci-a na Figueirinha, teria eu uns dez ou onze anos, não sei. Ao passo que os meus pais eram jovens, os dela pareciam avós. Eu andava dentro de água como um peixinho. E ela, muito branquinha, não sabia nadar e tinha muito receio. Brincámos muito e, por fim, já ela andava na maior comigo, na água. Foi o meu pai que a ensinou a nadar. Escrevemo-nos durante anos. Eu pasmava com a liberdade dela e com a naturalidade com que falava de coisas que, para nós, na altura, em Portugal, eram tabu. A ver se, pelo nome, consigo saber alguma coisa dela.

Tem graça isto. Eu que pensava que as portas que, ao longo da minha vida, fui fechando estavam mais do que fechadas para todo o sempre, vou agora verificando que, aos poucos, por umas ou por outras razões, parece que, mesmo sem que seja eu a querê-lo, se vão reabrindo. Tem mesmo muita graça, isto.

A vida surpreende-nos.

________________________________

Este domingo foi muito feliz. Estivemos juntos, almoçámos juntos, estivemos na praia, houve futebolada no areal. Seis renhidos futebolistas cheios de energia e amor à competição. 

Uma alegria. Adoro estar com eles, adoro vê-los juntos.

No entanto, do nada, quando regressei a casa senti uma grande tristeza. A minha mãe já cá não está. Ainda me parece mentira. Mas é verdade. Até cerca de dois meses antes dela morrer eu pensava que, à parte das doençazecas naturais da idade, ela era saudável e que iria viver ainda por muitos anos. Todos os dias eu falava com ela, em média duas vezes por dia, e, portanto, contava-lhe muitas coisas, conversava sobre os meninos, sobre os meus filhos, sobre o que calhava. Até para a distrair daquilo que eu pensava que eram sintomas de nada que ela, por medo, empolava, eu arranjava sempre mil assuntos para conversar com ela. Na última vez que conversei com ela, ela fraca, fraca, eu a perceber que a sua vida poderia estar por um fio, contei-lhe sobre a operação da Kate Middleton, sobre a estranheza pública sobre aquele longo internamento, contei da operação à próstata do Carlos, contei que o William tinha cancelado os compromissos e que, por isso, agora era a Camilla que andava em funções. E a minha filha gozou com a outra que se refere a ela como a Camela. A minha mãe ainda tentou sorrir. E agora já cá não está. E, de vez em quando, abate-se sobre mim uma grande perplexidade e uma grande tristeza.

___________________________________________________________

Desejo-vos uma boa semana a começar já por esta segunda-feira

Saúde. Força. Paz.

terça-feira, julho 18, 2023

Cuecas de reserva e cebolas no saco de mão, entre outros apetrechos extraordinários, só para se perceber a pinta de Miriam Margolyes, capa da Vogue Britânica.
Mas quando ela se senta a ler, por exemplo uma troca de cartas entre Henry Miller e Anaïs Nin, a gente faz silêncio para não perder pitada

 

Aos poucos, os conceitos de beleza vão-se abrindo à normalidade. É que o normal, nas pessoas, não é a perfeição. Mulheres extremamente belas, extremamente elegantes, eternamente jovens, é daquelas coisas que, já toda a gente sabe, só se consegue com muita artificialidade e sacrifício à mistura.

A Vogue, que desde sempre, promoveu a elegância, o requinte, a perfeição, a harmonia inequívoca, aos poucos vai abrindo as portas ao mundo. Há algum tempo não passava pela cabeça de ninguém ver um vídeo Vogue com uma mulher de 82 anos, gorda, lésbica, desbocada.

E, no entanto, hoje, ao abrir o youtube, cá estava Miriam Margolyes. 

Não apenas foi capa da Vogue Britânica como agora nos mostra o que tem dentro da sua carteira. Tudo um pouco inusitado mas, talvez por isso, bem divertido. Na sessão fotográfica mostrou-se como não passava pela cabeça de ninguém e, no vídeo da bolsa, saca de lá de tudo um pouco, desde umas cuecas de tipo gola alta, uma cebola crua para dar umas dentadas de vez em quando, e outras bizarrias.

E que não se pense que Miriam é apenas uma gorda excêntrica, sem papas na língua. Pode ser tudo isso mas é também uma maravilhosa diseur. Ou melhor, diseuse. A sua dicção, os seus compassos de silêncio, o ambiente que a voz traz às palavras que lê, tudo a torna especial. 

Lá mais abaixo um vídeo delicioso em que ela e Clarke Peters lêem uma troca de cartas entre Henry Miller e Anaïs Nin. Cartas de amor são cartas de amor, é certo. Mas quando ao amor se junta o desejo e quando ao amor e desejo se junta o descaramento e quando a tudo isso se junta o gosto pelas palavras aí a mistura fica maravilhosamente explosiva. E a malícia que transpira não apenas das palavras mas também das expressões de ambos tornam o vídeo um momento de rara suculência.

Longa vida a Miriam Margolyes e a todos os que têm prazer na vida.





________________________________

Um dia bom

Saúde. Boa disposição. Paz. 

sexta-feira, junho 10, 2022

O carteiro que queria para si as cartas dos outros

 



Quando acontece um qualquer crime, os polícias e os jornalistas vão interrogar vizinhos e conhecidos. E, salvo raras excepções, verifica-se que foram todos colhidos de surpresa. O suspeito é quase sempre uma pessoa reservada, tida como boa pessoa, nunca se soube de problemas, de casa para o trabalho e do trabalho para casa, por vezes até acontece que ia tomar um café e cumprimentava toda a gente, alguém dirá que era amigo de seu amigo. 

Todos põem em perspectiva os tempos anteriores em que nada o faria prever e dirão que não compreendem, que parecia uma pessoa normal, uma pessoa de bem, que nunca arranjou problemas com vizinhos, que se metia em casa lá com as coisas dele. Ninguém saberá dizer ao certo que coisas eram essas, era pessoa de poucas falas. Mas sempre muito correcto. 

Alguém lembrará que um dia em que chovia e ventava com força, o viram a ajudar a Dona Adelina que, coitada, já velhinha, quase ia levada pelos ventos, a chuva batendo-lhe em todas as direcções. E, ao ouvir lembrar esse gesto delicado, outro se lembrará que, noutra vez em que ardeu um bocado de mato nas traseiras do Vizinho Manuel Coelho, ele foi dos primeiros a aparecer com um balde e uma pá para ajudar no que fosse preciso. Prestável mas acanhado, concluirão.

Mais tarde as televisões mostrá-lo-ão a sair do carro da polícia à entrada no tribunal. Irá de cara baixa, tentando encobrir-se do olhar dos outros, talvez vá envergonhado, talvez arrependido. Ou talvez apenas não queira sentir a rejeição que os seus actos provocaram.

Geralmente é assim.

Neste caso não sei pois, do que averiguei, pouco se sabe. Mas não me admiraria.

O nome não foi divulgado. Sabe-se apenas que tem 62 anos.

Vivia sozinho em Biar, um lugar no sopé das montanhas de Alicante. Pouco mais se sabia dele. Era normal. Reservado.

Um dia vendeu a casa. E não a esvaziou. Deixou a casa cheia de sacos cheios de coisas. Em todas as divisões deixou ficar aqueles sacos cheios. 

Teve que ser a equipa contratada pelos novos donos para renovar a casa a remover o lixo. E foi então que descobriram o que continham os sacos: cerca de vinte mil cartas, muitas ainda seladas, incluindo facturas, documentos oficiais. 

Ao que parece, o carteiro acidental ia aos Correios buscar a correspondência e, em vez de distribui-la pelos destinatários, guardava-a em casa. Durante um ano aconteceu isto até que, por irregularidades mal explicadas, foi demitido.

Ainda pouco mais se sabe. Será que lia as cartas? Será que construía histórias a partir do que lia? Será que as palavras dos outros lhe faziam companhia? Ou será que não sabia ler e não sabia a quem deveria entregar as cartas?

Um dia saber-se-á. Para já está preso. 

Talvez um dia as cartas venham a chegar aos seus destinatários. Ou talvez já não façam qualquer sentido, talvez a vida das pessoas tenha seguido por outro caminho.

___________________________________________________________________

Já agora, um outro carteiro que sempre me enternece: o Carteiro de Pablo Neruda

______________________________________

Fotografias de Nick Knight na companhia de La Petite Fille De La Mer (Vangelis)

____________________________________

Desejo-vos um bom dia

Poesia. Beleza. Tolerância. Generosidade. Afecto. Paz.

terça-feira, setembro 14, 2021

Quando um estranho confessa o seu amor através de uma carta...

 


De vez em quando o algoritmo do YouTube sugere-me os vídeos de Thoraya Maronesy, uma jovem simpática que consegue a proeza de arrancar os mais sentidos e secretos testemunhos a estranhos que se cruzam com ela nos jardins em que monta arraiais com o seu equipamento.

Já algumas vezes aqui tive Thoraya. Esta coisa de alguém, quando instado a isso, ser capaz de contar os segredos mais intensos ao mundo, surpreende-me. E o facto de parecer que toda a gente guarda um segredo pronto a ser divulgado parece-me extraordinário.

No outro dia contei como, por vezes, pessoas desconhecidas se acercavam de mim e, sem preâmbulos ou justificação, me contavam assuntos muito seus, íntimos, aflições. A mim nunca me aconteceu isso: ter vontade de desabafar junto de estranhos. Pode parecer que não mas a verdade é que sou demasiada reservada para isso. 

Em contrapartida, perante os que me são mais próximos não guardo segredos. Falo abertamente e, se calhar, até um bocado desabridamente, do que penso. 

Em momentos em que alguns rodeios ou meias palavras seriam aconselháveis eu falho: digo o que penso sem delongas. Nisso como em tudo na vida acho que é um disparate perder tempo ou persistir em caminhos errados -- e não consigo dizê-lo de outra maneira. Se alguma coisa me preocupa, não está na minha natureza escondê-lo. Verbalizo-o abertamente. Por isso, intriga-me a capacidade que algumas pessoas têm para esconder o que pensam, o que sentem, o que querem. Pensarão que têm duas vidas? Esta para ser desperdiçada e outra, então, para compensar o tempo perdido na primeira? Não percebo. 

Imagino-me a ir um dia num parque e a ser abordada por uma qualquer Thoraya desta vida. Não gosto de virar as costas a um desafio, muito menos a um tão engraçado e, ainda por cima, conduzido por uma pessoa tão simpática. Mas, mesmo que quisesse corresponder, de que segredo poderia eu falar? 

Mas o desafio desta vez é outro e é ainda mais tentador: escrever uma carta a alguém que se ame ou amou. E a este desafio eu não viraria costas. 

Gosto de cartas de amor. Já o disse: prefiro recebê-las. Mas, se tiver que escrever uma, escrevo. 

Aliás, aqui, vendo bem, quantas vezes já as escrevi? Se me desse ao trabalho de reuni-las, obteria um livro inteiro de declarações de amor. 

Aquilo de que não tenho experiência é de escrever cartas de amor, ou melhor, declarações de amor, a quem não me ame. Não me lembro de alguma vez ter gostado de alguém que não gostava de mim. Acho que não é mérito: é pragmatismo. Lá está: aversão a perder tempo. Também não me lembro de esconder o meu amor, mesmo no início. Sou mais de seduzir, desafiar, agir à descarada. 

Vita brevis. Esse é o meu lema, esse é o fio condutor dos meus actos. Vita brevis. Ou seja, bola para a frente e força nisso.

Não me imagino a consumir tempo de vida a esconder um amor. Claro que poderia acontecer estar apaixonada por quem não gostasse de mim. Mas aí acho que via a coisa com realismo: santa paciência, não dava, não dava. Partia para outra. O que não falta são homens e, no meio de tantos, algum haveria de ser a meu gosto e sensível aos meus encantos. Agora estar a querer alguém e, em vez de ir à luta, às claras, deixar-me estar a queimar tempo com platonices, fosquices, suspiros pelos cantos, tristezas eternas, isso não. Não faz o meu género. Pode ser muito poético mas não é para mim. Eu, nisto dos amores, sou mais prosa. Poesia sim mas como preliminar, como acompanhamento ou como sobremesa. A substância, para mim, está na prosa. E prosa em versão hands on. 

Carta de amor? Sim, até poderia aqui escrever uma a um amor imaginário, ficção da pura a fingir de verdadeira. 

Meu amor, por onde andas? Espero por ti e nada me dizes. Saberás a dor em que a minha alma fica? Saberás o vazio que cresce no meu coração? Espero que me procures, todos os dias o espero, todos, e não vens. Como negar, amor meu, que sinto a falta das tuas doces palavras e das tuas tórridas tentações? Sinto tanto a tua falta. Por onde andas? Os anos passam e as nossas mãos não se tocam e os nossos corpos não se encontram. Porquê? Que sentido faz isso? O que andamos a fazer? Não queres experimentar o azul dos mais longos abraços ou o branco da luz do êxtase? Não fujas de mim. Não fujas. Estou à tua espera. Vem.

Poderia continuar, escrever uma carta de amor a preceito. Gosto de derramar palavras de amor. Mas não escrevo. E não o faço por respeito para com os pinga-amores que suspiram, suspiram mas não passam disso, ou que sonham, sonham e não acordam para a vida. Também têm direito a achar-se especiais. Por isso, não escrevo. Fico-me por aqui na companhia dos bem dispostos amantes impossíveis que Thoraya tão bem sabe apanhar.

Strangers Confess Their Love Through Love Letters
Um projecto de Thoraya Maronesy


______________________________________

E, já agora, a propósito de cartas de amor, com vossa licença, uma vez mais:

“My dearest one" Benedict Cumberbatch reads Chris Barker’s letter to Bessie Moore



_____________________________

Haley Reinhart interpreta Can’t Help Falling in Love 
Pinturas e escultura representando Diana, essa grande dissimulada, essa grande maluca.
______________________________________________________________

Nota:
Não tenho conseguido responder aos comentários pois o tempo não me chegado ou, se me chega, o sono tira-me o tapete. Adormeço mesmo sem dar por isso. As minhas desculpas. A ver se consigo pôr o sono em dia para ver se isto entra os eixos. Aceitem as minhas desculpas.

______________________________________________________________

Desejo-vos uma terça-feira muito boa
Saúde. Motivação. Força.

segunda-feira, março 01, 2021

Acredite num amor que está guardado para si como uma herança

 


Numa ideia criadora revivem milhares de noites de amor esquecidas que a enchem de nobreza e de altura. E os que se unem na noite e se enlaçam numa volúpia embaladora, fazem obra séria e acumulam doçuras, força e profundidade para o canto de qualquer poeta que há-de vir, que se erguerá para dizer delícias indizíveis. E convocam o futuro; e se também errarem e se abraçarem às cegas, o futuro vem na mesma, levanta-se um homem novo e, no terreno do acaso que aqui parece realizado, desperta a lei que impele uma semente forte e resistente para o óvulo que se abre ao seu encontro. Não se deixe iludir pelas superfícies; nas profundezas tudo se torna lei. 



_____________________________________________

O pequeno texto é um excerto da carta de Rainer Maria Rilke a Franz Kappus datada de 16 de Julho de 1903. Da mesma carta foi extraído o título deste post.

Fotografias feitas hoje cá em casa

Maria Callas interpreta Madame Butterfly de Puccini 

O Segredo de Maria Teresa Horta é dito por Pedro Lamares

_____________________________________________


terça-feira, fevereiro 16, 2021

A sua vida terá de ser um sinal e um testemunho desse impulso até nas horas mais indiferentes e insignificantes

 




As coisas não são todas tão apreensíveis e dizíveis como muitas vezes se gostaria de nos fazer crer; a maior parte dos eventos são indizíveis, perfazem-se num espaço que nunca foi tocado por uma palavra, e mais indizíveis do que tudo são as obras de arte, existências secretas cuja vida perdura enquanto a nossa passa.

(...)


Entre dentro de si, Procure o motivo que o faz escrever; examine se ele tem raízes até ao lugar mais fundo do seu coração, confesse a si mesmo se viria a morrer no caso de escrever-lhe ser vedado. Isto antes de mais nada; pergunte-se na hora mais calada da sua noite: tenho de escrever? Escave em si mesmo em busca de uma resposta profunda. E se esta soar afirmativamente, se o senhor tiver de enfrentar esta questão séria com um forte e simples 'Sim, tenho', então construa a sua vida em função dessa necessidade; a sua vida terá de ser um sinal e um testemunho desse impulso até nas horas mais indiferentes e insignificantes. Então aproxime-se da natureza. Então tente dizer, como se fosse o primeiro homem, o que vê e vive e ama e perde. Não escreva poemas de amor; comece por evitar aquelas formas que são mais correntes e comuns: são as mais difíceis, pois requer uma grande força amadurecida exprimir o que nos é próprio quando já existem acumuladas tantas produções boas e até esplendorosas. Por isso salve-se dos temas gerais para os que lhe oferece a vida de todos os dias; descreva as suas tristezas e desejos, os pensamentos passageiros, a fé em qualquer forma de beleza -- descreva tudo isso com sinceridade íntima, tranquila, humilde, e utilize para se exprimir as coisas que o rodeiam, as imagens dos seus sonhos e os objectos das suas recordações. Se o seu dia-a-dia lhe parece pobre, não o lamente; lamente-se a si, diga para consigo que não é suficientemente poeta para convocar as suas riquezas; pois para o criador não existe escassez nem lugar pobre ou indiferente. E mesmo que estivesse numa prisão cujas paredes não deixassem chegar nenhum dos ruídos do mundo aos seus sentidos -- então não teria ainda e sempre a sua infância, essa riqueza preciosa e principesca, essa câmara dos tesouros da lembrança? Concentre nela a sua atenção. Tente despertar as sensações afundadas desse passado longínquo; a sua personalidade ganhará firmeza, a sua solidão há-de alargar-se e tornar-se uma morada crepuscular e o ruído dos outros passará ao longe. 

(...)

_______________________________________________________

Num dia suave, solarengo, a anunciar dias melhores, não apenas trabalhei de sol a sol como, depois, antes de jantar, li. E, depois de vários telefonemas de trabalho, a tranquilidade das vozes da família: falei com os meus filhos e com a minha mãe. De dia, a meio da tarde, num pequeno intervalo, andámos no jardim. Os pássaros cantavam, felizes da vida. Fotografei enquanto fazia um telefonema. O telefonema não foi especialmente agradável mas as flores estão tão bonitas que não há arestas afiadas que anulem a sua beleza. E outra coisa: confesso, ao fim do dia já estava com a cabeça noutro sítio. A nossa vida melhora quando conseguimos que a nossa cabeça voe sem freios, por todos os lugares onde o corpo gostaria de estar.

Os textos são excertos de Cartas a um jovem poeta de Rainer Maria Rilke. Estas fotografias, como é bom de ver, foram feitas aqui em casa. E agora, despudoradamente, fizeram-se acompanhar por Glenn Gould a interpretar Bach (Goldberg Aria).

Para terminar, para fazer a vontade ao LF (comentário no post mais abaixo): 

I'll go on - Rainier Maria Rilke

Tira-me a luz dos olhos: continuarei a ver-te.
Tapa-me os ouvidos: continuarei a ouvir-te.
E embora sem pés caminharei para ti.
E já sem boca poderei ainda convocar-te.
Arranca-me os braços: continuarei abraçando-te
com o meu coração como com a mão.
Arranca-me o coração: ficará o cérebro,
E se o cérebro me incendiares também por fim,
Hei-de então levar-te no meu sangue


________________________________

Desejo-vos um feliz dia de ex-Carnaval
Saúde. Alegria. Risos.

segunda-feira, novembro 30, 2020

Gente odienta que dorme sobre os próprios joelhos e existem como cães, encolhendo-se na chuva, quase se cumprimentando como os cães!

 



Gente odienta que dorme sobre os próprios joelhos e existem como cães, encolhendo-se na chuva, quase se cumprimentando como os cães!

E que mulheres! Azuis, verdes, amarelas, com cabelos encaixados como perucas -- Deus lhes perdoe, Em que mundo vivemos, que mundo nós fazemos! Há alguma coisa de deteriorado dentro desse mundo para que tais narizes, rugas, peles, dedos, surjam à luz do dia. Oxalá eu saiba sempre pensar com asas para que a minha auréola continue. Oxalá eu saiba ter sempre olhar de lince, mesmo quando descaia no espírito do macaco.  O olhar de lince é coisa importante, mais do que a razão.

----------------------


Penso constantemente em que devo ganhar uma fortuna para não ter que me preocupar com a proximidade de ninguém. O maior luxo do mundo é estar só; ricos são os que não têm amigos solícitos e boas intenções à sua volta.

--------------------------

Não faço outra coisa senão escrever, e faço-o com a gana de destruir e escavacar todos os obstáculos. Não há ninguém vivo neste mundo. É um rebanho podre de macacos a rapar as próprias chagas com um caco, como aquele Job, que tanto se lhe dava como se lhe deu. Não percebo o que fazem cá na terra, nem eles percebem.

------------------------

Raramente consigo essa solidão absoluta, esse desprendimento de pensamento e de razões práticas e que constitui a mais grata das felicidades. Às vezes apetecia-me envelhecer depressa, para depressa adquirir uma serenidade, e indiferença pelo actual, que não tenho ainda. 

Transcrição de algumas [Cartas à Mãe] de Agustina in 'Sapatos de Corda' de Mónica Baldaque

Fotografias aqui de casa ao som de Casta Diva na interpretação de Montserrat Caballé

segunda-feira, julho 20, 2020

O bairro das prostitutas à pinha e o presidente maluco que reconhece um elefante
[E, com isto, até fico quase sem jeito para dizer que transporto o teu coração dentro de mim]





Durante anos, antes de o conhecer, imaginava que o Red Light District seria um antro de perdição, um lugar com mistérios e malícias, transpirando glamour, com aquela pitada de secretismo e de interdito que supostamente deve apimentar os encontros sexuais.

Até que um dia fui numa viagem de negócios a Amesterdão com um colega que tinha trabalhado na cidade e que se propôs fazer-me uma visita guiada pelos locais mais conhecidos. Sendo ele um conceituado executivo, dir-se-ia que me levaria a ver locais ligados ao conhecimento ou às artes. Mas não. Perguntou se eu gostava de conhecer os lugares da droga e da prostituição. Não me fiz rogada, julgando eu que ia entrar em meandros onde só os entendidos se aventurariam, coisa com o seu quê de bas fond,, de clandestino, ou, pelo menos, coisa reservada apenas a connaisseurs. 

Decepção: na zona da erva, malta encostava-se às paredes, outros estendiam-se pelo chão, outros entravam e saíam das lojas mas tudo sem qualquer elevação. Apenas gente janada, alguns num estado de dar dó.

Chegados ao bairro vermelho, fiquei ainda mais decepcionada. Coisa mais pirosa, pensão de meia tigela à vista de todos, gentinha a ver por ver, turismo pacóvio. 

Regresssei ao hotel de luxo a achar que aquilo não abonava muito a favor dos holandeses.

Mais recentemente voltei lá. Na altura, falei nisso. Pensei: será que na outra vez vi outra coisa? ou estava mal disposta e fiz uma má avaliação do que vi? ou será que, se era mesmo mau, agora está mais decente? Mas não. A mesma colecção de tesourinhos deprimentes. Pequenos compartimentos com uma caminha fajuta, tenho ideia que um bidé a um canto, uma toalhinha. As mulheres na montra. Depois entra o homem, fecham a cortina. Um cubículo triste. As ruas cheias de gente. Até eu, ali no meio, querendo compreender o que não é para compreender. Que género de homem fura a barafunda para entrar numa pequena loja, cumprir o seu propósito, provavelmente lavar-se e sair dali? É apenas uma experiência, coisa ocasional? Irá gabar-se de ter ido às putas no Red Light District? Haverá alguém no seu perfeito juízo que ache que é feito de que possa orgulhar-se? Ou será simplesmente um solitário que, não tendo melhor alternativa, vai ali desovar?

Mas, nisto das coisas estranhas da vida, o melhor mesmo é a gente não se arriscar a dar palpites nem tentar arranjar motivos para situações de que não temos qualquer inside conhecimento. O que para nós é uma coisa triste, desolada, sem futuro, pode ser apenas uma bóia de salvação a que alguém se agarre para se aguentar na sua solidão. 

Mas isto para dizer que foi, pois, sem surpresa que li que, ao reabrir o bairro das meninas em Amesterdão, aquilo se apinhou de tal maneira que as autoridades tiveram que recuar na libertação dos impulsos, mandar fechar ruas. Uma coisa que a minha razão não percebe bem pois aquilo é, a meus olhos, uma coisa decadente, triste, o género de coisas que, por não ter qualquer vestígio de requinte, mistério ou jogo de sedução, deveria era afastar as pessoas que não deveriam querer testemunhar a tristeza alheia. Mas, tal como eu já fui lá ver por duas vezes, ambas por curiosidade absurda, se calhar é isso que todos os papalvos lá vão fazer. Esses e os outros, os que frequentam e mantêm vivo o negócio pois sabemos lá nós que necessidades se escondem por detrás da coragem que, vendo bem as coisas, também é precisa para transpor aquelas portas. 

E, depois, quem diz que, entre uma pinocada a correr e uma lavagem rápida antes de sair porta fora para dar lugar ao próximo, não nasce um dia um grande amor? Não produziu E E Cummings belas cartas de amor a pensar numa prostituta que conheceu em Paris? Já mais do que uma vez aqui tive poemas seus, tanto que gosto deles, pessoa apaixonada, ele. E, com a mesma paixão com que os escreveu, pelos vistos assim escreveu antes palavras de amor e saudade a Marie Louise Lallemand.

Transcrevo do Guardian, e, portanto, não em francês mas em inglês:
In one letter, written from the frontline in France, Cummings told Lallemand: “Darling, Marie Louise, you who are more to me than the scarlet poppies which are mown, more than the yellowing evenings which we see die, more than the silence full of stars, the completely white silence of night, only awaiting dawn, – take the kiss which I give you, that kiss, without value, because it comes from a soul which loves you.”
[Artigo completo: Revealed: how a Parisian sex worker stole the heart of poet EE Cummings.]
Portanto, adiante.

Mais preocupante, mas muito, muito mais, incomensuravelmente mais do que a provocada pelo maralhal amontoado à porta das montras com as prostitutas de Amesterdão, é o que se passa nos Estados Unidos, com uma besta quadrada à sua frente, um psicopata, um inútil e um destituído como são inúteis e destituídos todos os narcisistas, pior aqui por se tratar do supostamente mais importante país do mundo a ser governado por tal cavalgadura. Sempre que o vejo pasmo: como é possível que ainda ninguém tenha arranjado maneira de o mandar de volta para casa dele? Tudo o que diz e faz revela o miolo de batada moída que tem dentro daquela cabeça. Mas não é só as cavaladas que diz: é a forma como diz, é o tom de voz, é tudo. Uma desgraça que não se percebe como alguém consegue aguentar. A mulher, apesar de ser aquela boneca empalhada, nem suporta que ele lhe toque, mal se aproxima dele, creio que nem vivem juntos, e os colaboradores e colaboratrizes rodam a grande velocidade, incapazes de suportar tanto egocentrismo, tanta estupidez e parvoíce (pode parecer que estupidez e parvoíce são sinónimos mas não, há nuances que fazem toda a diferença). Cada entrevista que a alimária dá revela o vazio alucinado que o preenche e, cada uma, só por si, deveria gerar um escândalo nacional e internacional. Mas não. Aceita-se que um atrasado mental que acha que acertar num teste que um elefante é um elefante é prova de sanidade mental continue a governar os Estados Unidos. Algo vai mal no mundo com coisas destas a acontecerem. A existência do Trump como presidente dos States legitima que, um pouco por todo o lado, muitos outros que tais empestem os países, as cidades, as ruas, as casas deste planeta. Uma triste lástima.
É ler Donald Trump v Fox News Sunday: extraordinary moments from a wild interview para se ver mais uma das suas últimas. (Facing a feared interviewer, the president ended up insisting that identifying an elephant proved his mental capacity)
Que burro, senhores. Pior do que um psicopata é um psicopata burro. 

___________________________________________________________________

Já agora, por falar nele: "i carry your heart" de E E Cummings (lido por Tom O'Bedlam)


___________________________________________________________________

Pinturas de Egon Schiele a acompanhar 'Les amants de Paris' na voz de Edith Piaf

________________________________________________________________________

E a todos desejo uma bela semana a começar já por esta segunda-feira

quinta-feira, junho 18, 2020

Contra os chatos e os convencidos
marchar, marchar





Porcaria da internet. Isto hoje está naqueles dias impossíveis. Carrego numa qualquer opção e o ecrã põe-se branco, atordoado dos pensamentos, em total estado de estupor catatónico. Há bocado, estava eu a tentar descortinar uma complicação no meu computador, ouço o bebé: 'Pocaria da internet!'. Perguntei: 'Então, que se passa?'. E diz ele, apontando para o computador que estava a usar: 'Isto não anda!'. De facto. Todo o dia tem sido este desespero. Não mexe. Impossível escrever aqui com isto neste estado, em aberto e acintoso contravapor. Apetece-me desistir.


Enquanto não desisto, conto uma coisa. Quando estavam a sair, digo ao bebé: 'Olha, meu amor, gostei muito que cá tivessem estado' e responde-me ele: 'Nós ainda cá estamos...'. O meu filho disse: 'O tempo verbal que usaste não lhe pareceu correcto'. E fiquei a pensar que a nossa pressa em viver leva-nos a cometer estes erros, a transformar em passado o que ainda é presente. menino mais fofésimo.

Os manos estiveram com aulas e avaliações, tiveram boas notas, brincaram, zaragatearam um com o outro, brincaram com o maninho mais novo e, como sempre, encheram-me o coração. Os pais trabalharam, nós trabalhámos. E o tempo avança.

Entretanto, para além dos números assustadores de países em que a pobreza intelectual ou económica impera, vamos sabendo de novos surtos do corona na China e que, por cá, os números não descem tanto quanto deviam. Na volta, ainda nos arriscamos a ter mesmo a tal segunda onda que nos impedirá de voltarmos tão cedo a uma vida descontraída. Estou bem como estou mas, ao mesmo tempo, penso que qualquer dia vou mesmo ter que voltar a trabalhar em torres de vidro, sem janelas, e isso traz-me uma certa ansiedade. O bebé, quando se fala em escola, muda de conversa, levanta-se. Não lhe agrada. Está bem assim. Eu também estou.


Bem. Hoje vinha para falar de outra coisa. Aliás de duas coisas.

Uma é um mistério: estando aqui sossegada em casa, por que estranha razão não me dá para ler? Volta e meia pego num livro mas, confesso, ao fim de pouco tempo, pouso-o. Não sei porquê. Parece que não quero trazer para dentro desta insólita liberdade que agora vivo nenhum dos meus anteriores hábitos. É absurdo dizer isto a propósito dos livros e, na volta, nem tem nada a ver mas, se não é por isso, por alguma razão é.

A outra é esta: não tendo aqui senão a televisão corrente, quase não a vejo. Não suporto ver gente que se leva muito a sério, gente que se acha, gente que sabe tudo e não se ensaia nada de tecer juízos morais sobre os outros. Parece que toda a gente que ali vai se acha importante, sabedora, superior. Um tédio, uma seca, um saco. Desligo. Mudo-me para a netflix ou vou descobrir vídeos.



E penso: à distância, em reuniões remotas, consigo evitar muitos maçadores. A hipótese de voltar a frequentar a cidade, os corredores, os salões e demais antros de gente parva é daquelas que também me assusta.

Por exemplo, o vídeo abaixo. Uma graça.


Ou este:


_____________________________________________

Fotografias de  Fee-Gloria Groenemeyer

____________________________________________________

Saúde e alegria para todos