Estava de pé, no terraço, e olhava a chuva que caía copiosamente. Um silêncio só quebrado pelo som da chuva. Fui seguindo o seu cair, os regatos de água que se foram formando. Um pássaro grande saiu de dentro da copa de uma árvore e, numa corrida, foi abrigar-se numa outra. Caíram duas laranjas. A laranjeira está muito pesada. Apanhei uma das laranjas do chão e comi-a logo ali. Estava fria, sumarenta, quase doce. Emocionei-me. Esta é agora a minha casa e já tem frutos para me oferecer.
Mais à frente, quase aparentando um pedaço de raiz à vista, um grande cogumelo, solto, tombado -- certamente pelo peso da chuva. Virei-o com o pé. Desfez-se. Rendilhado, delicado. Os cogumelos intrigam-me.
Fui a casa buscar a máquina fotográfica e, quando parou de chover, fui fotografar os pingos de água escorrendo das flores. Debruço-me para cheirá-las. A água leva o seu perfume. Lava o seu perfume. Encanto-me, encanto-me. Depois fui buscar o telemóvel e fotografei flores e árvores para enviar as fotografias à minha mãe. Respondeu que é uma maravilha.
Entretanto, chegaram dois cães à casa do lado. De tarde vi o que deve ser o meu novo vizinho, sentado na varanda a fazer festas a um dos cães. Quando morava num andar não via os vizinhos. No campo também não. Para mim isto é uma novidade, parece que estou a voltar a quando era pequena, na rua todos a conhecerem-se uns aos outros.
Reparei, de novo, na iluminação de natal que puseram na varanda no primeiro dia em que para cá vieram. Nós ainda não fizemos nada. Não sou muito dada a enfeites, só tenho vontade de ter a casa com luzinhas quando vêm os meninos. Tenho umas árvores pequeninas com luzinhas amarelas que piscam-piscam e que dão uma luz acolhedora. A ver se amanhã as vou buscar à cave, pode ser que faça sentido. De qualquer forma são bonitas. Temos no sótão um baú com grandes bolas de Natal. Não sei se deveremos tentar pô-las nas árvores ou arbustos do jardim, na cameleira, por exemplo. Ou na cerejeira do japão.
Também me faz impressão a minha mãe, sozinha. Agora faz todos os dias uma caminhada com uma amiga. Há dias em que tem aulas da universidade sénior. E está a fazer um casaco de tricot para a minha filha. Está entretida. E diz-me que evita sair e que não se importa de estar sozinha em casa, diz que receia expor-se ao contágio. Não quero forçá-la a nada até porque uma coisa é o verão em que podemos estar na rua e outra é agora, em que estando em casa, os riscos são maiores, especialmente estando sem máscara; e, em casa, quem é que vai estar de máscara durante todo o santo dia?
De vez em quando sinto saudades sem saber dizer, ao certo, de que é que tenho saudades. Talvez tenha saudades de algumas pessoas. Sim, tenho. Sei bem de quem. Talvez também de uma liberdade que agora não tenho. Ou dos hábitos que tinha e que abandonei. Há hábitos que não precisava de ter abandonado mas que abandonei. Por exemplo, passear à noite junto à praia. Íamos jantar e passeávamos antes ou depois. Como agora não vamos a restaurantes, deixámos de ir, à noite, passear mas isso é por comodismo, por não termos ainda conseguido crivar os hábitos possíveis dos que deixámos para trás.
Agora que falo nisto, vi no outro dia uma coisa de crochet que não me sai da cabeça, um trabalho em linha fina. Gosto de fazer crochet. Teria que ver onde aplicar mas acho que ficaria muito bonito. Mas quando terei eu tempo para fazer trabalhos de crochet em linha fina? Mas, de qualquer maneira, quando falava em adquirir novos hábitos nem era nisto que estava a pensar, era em mudança mais radical.
Estive a ler um artigo sobre como será a vida pós pandemia. Há coisas óbvias. O coisinho-19 revirou o sistema. Por exemplo, ser piloto de avião era uma grande profissão, tinham grande poder reivindicativo, não chegavam para as encomendas. Agora é a reviravolta total: a TAP anunciou que vai despedir quinhentos. Todas as companhias aéreas enfrentam a mesma hecatombe. Aviões e aviões em terra. Não vai voltar a ser o que era. Os pilotos, assistentes de bordo, etc, são apenas algumas das profissões que estão em acentuado declínio. Há aquele exemplo das máquinas kodak, das máquinas de película. Não perceberam a tempo que a fotografia estava a tornar-se digital. Com o corona, parte do mundo parou e repensou-se, só que parece que ainda não fomos capazes de perceber como se vai sair desta. Quando houver vacina e tratamento, dificilmente se retomarão todos os hábitos do passado pois, entretanto, teremos adquirido outros. Sofrem os que dificilmente se vêem a fazer outra coisa mas a sociedade, no seu todo, irá reorganizar-se e reequilibrar-se. Surgirão novas profissões ou haverá escassez de outras. Sairão melhor deste pesadelo as pessoas que saibam fazer a leitura correcta dos factos e das necessidades que se criarão.
Mas, enfim, é tarde, nem digo que horas são da manhã. Portanto, melhor fora que dissesse que é cedo.
Se há seres de outros planetas ou outras formas de vida que desconhecemos e que nos andam a estudar, se me localizarem, talvez fiquem sem perceber que ser é este que, no meio de um casario adormecido, se mantém acordado, sozinho, apenas uma pequena luz sobre as suas mãos, dando mostras de gostar de estar aqui, noite adentro, noite após noite, escrevendo como se não houvesse amanhã.
E será que há amanhã? Quem o sabe?
(E que interessa isso, se há ou se não há amanhã? Que diferença faz isso para quem parte, depois de ter partido? E para quê perder tempo a tentar adivinhar sobre que face cai o dado que um qualquer deus atira só por desfastio? É viver e fazer o que nos faz feliz enquanto se pode. Convém é, já agora, saber o que nos faz feliz para não andar a deixar passar a felicidade ao lado, só porque não a soubemos identificar)
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Fernando Pessoa :: A morte é a curva da estrada / Por Natália Luiza
(de onde extraí o título deste post)
[De novo, pela mão do Cine Povero]