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terça-feira, fevereiro 04, 2020

Nas esquinas do vislumbre. Na imensidão do deslumbre





No domingo, fizeram directos para mostrar um avião num aeroporto em Marselha. Depois fizeram directos para mostrar o avião a aterrar em Lisboa. Se isto tem interesse para alguém eu não sei. A mim só me faz pensar que está tudo maluco. Mesmo que o avião estivesse cheio de macacos aos saltos ou de freiras a espirrarem e a assoarem-se às saias umas das outras não era caso que justificasse filmar um avião num aeroporto antes de levantar voo ou a aterrar. Nem mesmo se as freiras saíssem do avião todas nuas e às cavalitas dos macacos era caso para fazer directos do Figo-Maduro ou do Ameixa-Amarela. Não há pachorra.

À hora de almoço, depois de longas conversas sobre os pobres portugueses que vieram da China e que, apesar de estarem sãos como pêros e os exames negativos, estão no isolamento, ouço um senhor com voz de chinês e que, afinal de contas, era mesmo chinês, a dizer que entre eles, comerciantes chineses, se tinham organizado e havia casas para quem viesse da China constipado. E eu, que volta e meia, me sinto não apenas beige como completamente burra, pensei cá para mim: mas espera lá, então andam a filmar aviões que trazem vinte portugueses saudáveis mais o corpo diplomático em peso e mais uma brigada de médicos e enfermeiros e caguam para os chineses que chegam da China? (E não, não disse cagam, disse caguam que, como é bom de ver, não é a mesma coisa). E, quem diz chineses, diz todo o resto da malta que chega, directa ou indirectamente, vinda da China? Para esses não há corpo diplomático ou isolamento? Pelos vistos, não. E a jornalista, que têm orgasmos sucessivos com o frisson das notícias sobre os não-infectados, não estabelece a liaison entre os cuidados intensivos com uns e os descuidados desintensivos com outros? Não, não estabelece. 

E eu, face a isto e face à histeria desta gente que me parece mentecapta, desligo-me das notícias e sigo para a música. Abençoada música. Abençoada, abençoada.

De tarde, vinda do trabalho, no carro, ponho na TSF a ver que guerra é que se desencadeou enquanto eu estava a ter uma tarde agradável rodeada de juventude, ouço um comandante a explicar como é que um avião haveria de se portar para não se despenhar. Pensei: caraças, anda para aí um avião prestes a abrir um buraco no chão. Afinal não. A coisa já se tinha dado e nada tinha acontecido de mal. Mas isso não demoveu a TSF: não aconteceu mas podia ter acontecido. Caraças para este jornalismo que adora cadáveres, cheiro a decomposição, anúncios de tragédias. Nem imagino o festim que terá sido nas televisões. 

Não suporto. Caraças, não suporto mesmo. Não há notícias boas? Nada acontece de bom neste mundo? 

Agora chego aqui e vejo que morreu Steiner. E fico sem reacção. Pena em primeiro lugar. Mas, logo a seguir, intimamente penso que as pessoas que vivem das palavras, de escrever, de ler, de opinar, devem chegar a um ponto em que só lhes apetece o silêncio, a ausência de palavras. Como a Agustina. Se eu fosse como eles, haveria de chegar a um ponto em que haveria de me apetecer não me pronunciar ou ler ou escrever palavra que fosse. Só música, música com muitos silêncios dentro que é como deve ser a boa música, de preferência a dos pássaros quando estão lá muito em cima, distraídos da vida, e degustar chá quentinho, e olhar, e semicerrar os olhos devagar, e sentir o perfume das flores, e passar a mão pela macieza de uma capa de veludo, e sentar-me em frente a um muro branco e ver as sombras e a cor da luz a mudar ao longo do dia, de todos os dias do ano. Steiner devia ter, imagino eu, vontade de descansar a cabeça, dar-lhe tréguas da luta com as palavras. E, de resto, pode alguém ficar cá eternamente? Para quê prolongar a existência quando a qualidade de vida já é apenas uma triste sombra do que foi? Portanto, Steiner morreu, viva Steiner. A sua obra fica, independente dele.

E siga o andor.

E, tirando isso, o que posso dizer é que vinha no carro e vinha também a pensar que tempos houve em que a esta hora, aqui sossegada na sala, estava a bordar grandes carpetes de arraiolos, com desenhos que me punham a cabeça em água, desenhos miudinhos, réplicas de grandes tapetes do século dezasseis e dezassete que estão em museus. Gostava tanto. Os desenhos iam nascendo. Depois os desenhos iam aparecendo cheios de cor. Bordava horas a fio, a juta enchendo-se de lã colorida sobre as minhas pernas. Outras vezes estava a pintar, pintava até de madrugada, incapaz de parar, um frémito de emoção e liberdade a percorrer-me o corpo. Ou a ler, a ler pela noite adentro. Porque me dá agora para aqui estar em vez de estar a fazer qualquer dessas coisas? Não sei. Tenho vontade de pintar. Tenho a tela ali atrás, tenho ideia das cores que quero usar, tenho uma vaga ideia das formas. Recuso-me a pensar para não aprofundar a ideia pois gosto é de me deixar surpreender pelo que nasce na tela, independente da minha vontade. E tenho também ali atrás uma carpete incompleta e a vontade que, por vezes, tenho de me voltar pôr a bordar não sei explicar. As saudades, as saudades que tenho.

Saudades de não estar aqui a escrever. 

E, no entanto, quando vinha a pensar nisto, ocorreu-me começar a escrever uma história e, logo ali, começou a forjar-se o que ela seria mas, quando me meto nisso, é tão absorvente, deixa-me tão pouco espaço para o resto, parece que a gente que ali nasce ganha vida própria e eu mal posso esperar todos os dias para aqui chegar e deixar que vivam como gente de verdade. Por isso, evito. Mas faço bem evitar? Ou é irrelevante? Acho que sim, acho que é irrelevante, na verdade o mundo está cheio de ruído e lixo e mais vale é que estejamos sossegados, que eu esteja sossegada: zero waste.

E agora vou mesmo sossegar. Hoje estou em dia de silêncio.
Tremem-me as mãos para ir fazer aquele tom de azul que não me sai da cabeça, um azul a meio tom, meio violeta, meio secreto, meio indefinido e, depois, matizá-lo com fios dourados. Tremem-me as mãos para deixar a mão voar na tela sem que eu saiba o que ela vai fazer. Depois, quando a mão tiver praticado a liberdade, deixá-la escrever sobre mistérios, enigmas, longos espaços abstractos e silenciosos, deixar que seres sem nome e sem rosto habitem esses perigosos lugares sem geografia. Mas não vou fazer nada disso.
Vou simplesmente suspender as palavras. Vou descansar. Vou deixar que o silêncio percorra o seu caminho dentro de mim.

Vou deixar que, na escuridão da noite, novos mundos me visitem na imensidão do deslumbre.


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As fotografias são da autoria de Uldus Bakhtiozin

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A todos desejo um dia bom

sexta-feira, janeiro 05, 2018

O debate entre Santana Lopes e Rui Rio e a cara de Vítor Gonçalves depois de ter entrevistado a Carla Bruni.

[E os dilemas intransponíveis que se levantam quando penso em tornar-me escritora]

-- E William Burroughs, John Irving, George Steiner e António Lobo Antunes --





Nem sabia que havia o debate. Quando percebi que estava a haver, o meu marido não quis ver. 'Era o que faltava.'. Insisti. Apetecia-me ver se, olhando para aqueles dois marretas durante uns instantes, conseguia perceber qual deles será eleito. O meu marido aborreceu-se: 'Tencionas votar neles?'. Percebi que não valia a pena explicar que se tratava apenas de uma questão conceptual. Disse apenas: 'Põe na 1 e cala-te'. Ripostou arreliado: 'És parva' e, para me ser simpático, lá mudou mas, lamentavelmente, o debate estava a acabar. Apenas vi o Rio a enterrar o Santana Lopes com base na vez em que Santana se enterrou a ele mesmo. Logo de seguida, o Vítor Gonçalves acabou o debate com um sorriso preso ao rosto. O meu marido disse: 'Aquele gajo, desde que entevistou a Bruni, ficou assim'. Olhei e achei que ele tinha razão. Quando vimos a dita entrevista, fartámo-nos os dois de rir com o baile que ela deu ao pobre coitado.

Pronto. A seguir ao debate, vieram os comentários mas, como é bom de ver, fugimos deles. Se eu fosse sipatizante do PSD andaria à nora: entre a fome a vontade de comer, escolher o quê? Velhos e relhos -- e nem tem a ver com a idade biológica dos dois. Comida da véspera. Roupa velha. Já os conhecemos, já os papámos noutras eras. Outra vez não. Não é possível que as hostes laranjas nestes anos todos não tenham parido ninguém que se afirme e que tenha sangue novo. Nada... nada...?

Felizmente não tenho nada a ver com aquela tristeza. Quem fez a cama que se deite nela.


Com isto e andando sem motivação para falar de nulidades, pus-me, como sempre, a cirandar pela net. Como já o contei, parece que apenas me sinto atraída por coisas bizarras. Volta e meia vejo links para outros blogues nos blogues que acompanho. Fico espantadíssima porque eu nunca descubro nada do que as outras pessoas descobrem. Em contrapartida, entretenho-me com coisas inenarráveis. É como quando os meus colegas ou amigos falam dos livros que andam a ler e todos os conhecem menos eu. Em contrapartida, se quiser limpar a face e não passar por completa iletrada, não apenas geralmente não me lembro do que ando a ler como, caso me lembre, ninguém nunca ouviu falar nos escritores que refiro.

Enfim.

Por exemplo, estive aqui a ver um vídeo que mostra a casa de William Burroughs e mais não sei o quê.

E estava a ver o vídeo e a pensar no que, na véspera, me tinha ocupado a mente na viagem à noite para casa depois de ter feito os meus telefonemas do costume. Conto. Vim a pensar que, um dia que tenha tempo, gostava mesmo de escrever. E, como sempre acontece, de imediato a minha mente mostrou como é fútil. Em vez de pensar no género que iria abraçar, nos temas que me cativariam, na disciplina que teria que ter, etc, não senhores: pus-me a pensar onde é que me iria instalar. E, como sempre, vou elencando possibilidades: na secretária do escritório? Não. Teria que limpar a secretária que está cheia de tralha (até um monitor dos antigos ainda lá jaz), teria que arranjar outra cadeira (a cadeira que lá está é muito clássica, de pele, pouco ergonómica), teria que arranjar um melhor candeeiro (o que lá está é lindo demais, tem um abat-jour em tecido plissado e um elegante pé de vidro mas é desapropriado para iluminar uma escritora). Depois pensei que me sentiria ali sozinha. Não gosto de me sentir sozinha. Talvez preferisse trabalhar na mesa redonda que está junto à janela aqui nesta sala mas, lá está, teria também que arranjar outra cadeira já que as cadeiras desta mesa são cadeiras seculares, que já vieram de casa dos meus avós. Mas não sei se aqui nesta sala teria concentração. Para já também que teria que tirar de cima da mesa todos os livros que ali se foram alojar. Aliás, estou a precisar de uma estante adicional. Mas não sei onde metê-la. Pensei então que o melhor mesmo seria se conseguíssemos comprar o andar ao lado do nosso, depois abrir passagem de uma casa para a outra e usar a outra como local de trabalho. Nessa altura, já estava a pensar onde haveria de abrir essa passagem e nenhum ponto me parecia adequado. 


Como se os dilemas não fossem poucos, dei comigo a pensar numa outra questão: se ficar em casa a escrever, será que depois tenho motivação para me levantar, escolher toilette, arranjar-me? Ou ficava com roupa caseira, confortável, cabelo apanhado, sem uma sombrazinha nos olhos? Esta hipótese, que me parece a mais provável, incomodou-me. Então toda a minha roupinha ficará, forever, inútil, arrumada no roupeiro e sem qualquer préstimo? Nem uns brinquinhos, nem uma pulseirinha a fazer pendant? E eu toda mal amanhada, fechada em casa, apenas transitando do quarto para a sala, da sala para a cozinha? Não...

E, conduzida por estes racicínios, pareceu-me que escrever, afinal, seria uma actividade desinteressante para mim.

E, ao chegar a esta conclusão, desiludi-me comigo. Mulherzinha fútil e burra. Então é com estas pepineiras que uma candidata a escritora se preocupa...?

Então, para tentar arranjar uma tábua de salvação, derivei. Devia era viver numa casa maravilhosa, no campo, onde tivesse uma espécie de um estúdio para onde pudesse ir como se fosse para o trabalho e onde pudesse abrir a janela e ouvir os pásaros. Mas, aí, pensei: mas, espera lá, já tenho uma casa no campo e até lá há um estúdio assim. Mas ia para um estúdio onde ficasse sozinha? Nem pensar. Mais: aposto que, em vez de ir escrever, ia mas era varrer, limpar as teias de aranha, dar cera de abelha nos móveis, lavar e estender roupa. Ou, então, tinha que ir inspeccionar o que o meu marido andaria a fazer. Às tantas andava de roçadora a cortar mato, levando alfazema, alecrim e orégãos tudo à frente. Nem pensar em ficar fechada num estúdio com ele à solta, a fazer estragos por todo o lado!


Portanto, já à chegada ao meu destino sem ter conseguido chegar a uma conclusão construtiva, vinha incomodada. Querem lá ver que não conseguirei ser escritora só porque não consigo escolher o lugar onde escrever...? E concluí: 'Não me parece normal. Coisa mais patética'.

E juro que isto se passou assim, tal e qual. Parece-vos normal? Acham que com esta cabecinha oca alguma vez daqui pode vir a sair escrita que se veja...? A mim não.


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John Giorno mostra o bunker de William Burroughs
[Step inside ‘The Bunker’ in New York, the windowless former apartment of the legendary writer William S. Burroughs, and let yourself be guided around – from Burroughs’ typewriter to his shooting target – by its current resident, the iconic poet John Giorno. (...)]


E John Irving em casa


E acabei por ir dar a Steiner. E se gosto de ler o que ele escreve, não é menos bom ver os seus olhos cintilantes e o seu rosto com um sorriso gaiato e ouvir as suas palavras sempre certeiras. O vídeo está legendado.

Aqui Steiner conversa com António Lobo Antunes


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As fotografias,  tão lindas que quase parecem abstractas, são da autoria do fotógrafo e arquitecto Tugo Cheng e mostram um método tradiconal de pesca no sudeste da China.

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segunda-feira, novembro 27, 2017

"Nenhuma poesia é possível depois de Auschwitz"...?
Está bem, está.





Poderá alguma coisa tornar-nos incapazes de certas impercepções, de certas cegueiras ou tipos de surdez? Alguma coisa poderá tornar a imaginação responsável e imputável perante os princípios da realidade da existência humana em nosso redor? Essa é a questão.
(...) Uma das respostas possíveis é dizer que toda a nossa cultura se mostrou totalmente impotente e sem defesa, aliás, embelezou uma grande parte do assunto.
Gieseking tocava a integral da música para piano de Debussy durante as noites em que se ouviam os gritos das pessoas nos vagões de comboio selados na estação de Munique com destino a Dachau, nos arredores. Os gritos chegavam à sala de concertos. Isto foi registado. Nenhum testemunho sugere que ele não tenha tocado maravilhosamente bem, tão-pouco que o público não se tenha mostrado completamente receptivo e profundamente comovido.


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"Na base de cada grande obra de arte estão os escombros da barbárie"- Walter Benjamim

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Nenhuma poesia é possível depois de Auschwitz, disse Adorno.

Mas a história encarregou-se de o refutar. Desde logo Celan e Primo Levi, lembra George Steiner. Embora se tenham suicidado a seguir, refere ele.

Mas habituamo-nos bem ao mal dos outros -- essa é a grande verdade. E isto já sou eu a dizer. Temos, aliás, uma extraordinária capacidade para nem nos darmos conta do mal dos outros. Todos nós. 

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Já agora.
Relembremos.

Se isto é um homem - Primo Levi


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SalmoPaul Celan 

Ninguém nos moldará de novo em terra e barro,
ninguém animará pela palavra o nosso pó.
Ninguém.


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O texto lá em cima, em itálico, é um excerto da entrevista de George Steiner concedida à Paris Review em 1995, lida no 3º volume das Entrevistas da Editora Tinta da China.

As imagens representam Auschwitz. A primeira é da autoria de Bart Vromans e a segunda de Anne Berger

Walter Gieseking interpreta "Reflets dans l'eau" de Debussy

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Caso vos apeteça desanuviar, nada como uma caminhada por Lisboa. É só descer.

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