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quarta-feira, fevereiro 10, 2021

Apesar de tudo

 


Sobre o meu dia o que tenho a dizer é que foi quase como os demais. Só que, nas actuais circunstâncias, qualquer quase faz toda a diferença. Reuniões, telefonemas, caminhada, patati-patata. E, às tantas, sem que nada o fizesse esperar, a ocasião surgiu. Alguém disse: se quiser aparecer... E eu, que tinha traçado o caminho dizendo que haveria uma análise prévia e que, só depois de crivado, é que eu me pronunciaria, tive, de súbito, a vontade de me pôr a caminho.

A legislação prevê que se pode sair quando o trabalho a isso obriga. Tenho, aliás, uma declaração que o considera. Portanto, a bem da nação, resolvi ir.

Dei uma quick vista de olhos ao processo e, acto contínuo, passei à fase seguinte: o que vestir. Olhei para os jeans e pensei que não. Olhei para as outras calças tipo jeans e depois pensei que também não. Mas já nada me parecia prático e, estranhamente, parece que já não faz sentido vestir sem ser na base do casual e do prático. Pus-me a olhar para o suporte das calças. Optei por umas simples, pretas. Depois a blusa. Estando mau tempo, uma camisa ou blusinha das que gosto, fininhas, pareceu-me nonsense, tanto mais que iríamos estar a maior parte do tempo ao ar livre. Optei pela que a minha filha me deu pelo Natal. 

Depois os sapatos. Pretos, de salto alto, claro -- mas todos os que cá tenho são altos de mais. Já não me parece lógico. Pensei: os skechers, também presente de natal. Mas recuei. Não, não encaixa na minha imagem de marca a nível profissional. Pensei: os pretos de camurça e meio salto. Procurei-os. Nada. Lembrei-me então que estão no campo, do anterior confinamento; estavam lá para um just in case. Fiquei sem saber como descalçar a situação. Pensei, então, que os sapatos de pele castanhos, com meio salto, são confortáveis... só que, com aquela roupa, só se levasse outra peça que fizesse um mínimo de pendant. Lembrei-me: o blusão de pele castanha. Prático demais...? Sim, mas foi o compromisso possível. No meio da confusão, reparei que ainda estava com os meus soquetes de trazer por casa, hoje, por acaso, uns cinzentos com corações cor-de-rosa e cós em fio prateado. De repente, fiquei sem me lembrar onde tinha as meiinhas transparentes para calçar com sapato alto. Fiquei no quarto a hesitar. Lá me lembrei. 

Depois, ajeitar o cabelo. Prendo? Não prendo? Ao espelho, a ensaiar. Apanhei, desapanhei. E ia passar um brilho nos lábios quando me lembrei que não valia a pena. Depois o perfume. Ah, tão bom, o prazer de me pôr em frente da prateleira dos perfumes a escolher o que tem a ver. Bzzz, bzzzz, um esguichinho aqui, outro ali, bzzz, um suspirinho perfumado, fresquinho, floral, cheirosinho.

E preparei-me para sair, já estava em cima da hora. Só, então, me lembrei da máscara -- voltei atrás. Depois a carteira: qual? A usual? A nova, também presente? Não, já não dava tempo para mudar as coisas. 

Ia a sair... bolas. Outra vez a ter que voltar atrás. Tinha-me esquecido da chave do carro. 

Uma falta de automatismo. Todos os gestos que antes seguiam espontaneamente uma rotina que se repetia dia após dia, mês após mês, ano após ano, agora não acontecem de per se. Após a interrupção que começou em Março e, salvo raras excepções, dura até hoje, com o teletrabalho, tudo mudou. Nas vezes anteriores, sei com antecedência que vou ter reuniões presenciais e, portanto, mentalmente equaciono as toilettes e preparo tudo atempadamente, quase simulando os anteriores rituais. Hoje, como foi tudo de repente, parecia que estava perra. Hesitante demais. Claro que tudo se passou dentro da minha cabeça e durante pouco tempo mas eu que assisti a tudo senti que já não parecia eu, eu antes tão despachada.

Soube-me bem conduzir. 

Acontece que fui a um lugar onde nunca antes tinha ido. Claro que recorri ao GPS mas neste carro ainda não atinei bem com o gps. Aliás, desde que o tenho, pouco o tenho usado. Ainda não descobri como pôr o número da porta. Como aquilo era numa enorme e muito movimentada avenida, vi-me aflita. Passei o lugar, saí da avenida, meti-me numa rua de sentido único, não atinava com o sítio para poder voltar para trás nem havia sítio para encostar o carro. No gps do carro via que estava a afastar-me. Finalmente consegui encostar e recorrer ao maps do google do telemóvel. Lá consegui dar com aquilo. Já estavam à minha espera, claro. 

Mas, apesar de tudo, gostei. Saí. É bom sair.

Todos de máscara. Aqueles cumprimentos normais de quando nos apresentam desconhecidos agora ficam estranhos: nem aperto de mão nem a cara à vista. Tudo bizarro. Mas foi bom estar com pessoas, foi bom conduzir.

Ao sair de casa, recebi mil instruções: não te aproximes, evita espaços fechados, tem cuidado, desinfecta as mãos, não confio nada em ti, esqueces-te, distrais-te. Quando cheguei logo o controlo: tiveste cuidado? desinfectaste as mãos? desinfectaste o telemóvel?

A vida anda estranha. Não gosto de ter medo, não gosto de ter cuidado. 

Gostava tanto de conduzir a ouvir música. Hoje nem isso: para ouvir as instruções do gps, nem música ouvi. 

Em que mês é que os jacarandás estão em flor? Gostava tanto de andar de carro, janelas abertas, a ouvir música, talvez jazz se fosse ao cair do dia. Não havia máscaras, cuidados. Não havia medo, rotinas negativas. 

Mas, enfim, não me posso queixar. A vida há-de voltar a entrar nos eixos mesmo que os eixos sejam outros.

E os dias estão maiores. Hoje às seis e picos da tarde, já em casa, ainda havia vestígios de dia. Mudei de sapatos, fui apanhar uma laranja, fui olhar o céu e as árvores. As luzes do muro já se tinham acendido, as luzes da casa dos vizinhos todas acesas, como é costume, as luzes da vizinha do outro lado acesas no alpendre e uma luz suave lá dentro. A laranja estava fresca e doce. Senti o meu perfume. Apanhei umas quantas camélias caídas. Regressei a casa. Liguei à minha filha, liguei à minha mãe. Liguei ao meu filho. Ia correr com o filho. Àquela hora, já de noite, com o frio que estava. Fazem bem. No outro dia mandou uma fotografia: os dois rapazes depois de terem corrido três quilómetros e meio, o menino todo orgulhoso. 

O jasmim está uma nuvem rosada, cujos botões se metamorfoseiam em delicadas florzinhas brancas. E as magnólias estão a começar a despontar. Emociono-me ao ver os seus botões, ousados, afoitando-se ao mundo, indiferentes às pandemias, aos confinamentos. Não vejo a hora de as ver, certamente umas flores escandalosas de tão belas. 

Malgré tout, este é um mundo com o seu quê de maravilhoso. Acho eu...

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Para a despedida, umas imagens muito bonitas

Missed Nuance - a ballet art film


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Fotografias feitas cá em casa

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Desejo-vos um dia feliz

domingo, outubro 22, 2017

Hoje já vi marcas do Outono in heaven





Note-se. Quando cheguei estava como estava, de manhã cedo, na cidade: sol, temperatura amena, sol azul.

Logo à entrada, a glicínia -- enleada no portão -- já alourada como sempre acontece no Outono. Todas as estações do ano têm os seus encantos mas é por estas alturas que a doçura melhor se materializa, seja nas cores, seja na temperatura, seja nos cheiros. Seja também nos sabores.


Voltei a parar na senhora que, à beira da estrada, vende fruta. Trouxe um saco cheio: dióspiros, uvas, ameixas escuras, maçãs bravas de esmolfe, e, claro!, aquelas romãs rubras, dulcíssimas. O carro ficou perfumado com os cheiros da fruta madura. Tão bom.

Mas, se estava um solinho bom, à sombra ou se a suave brisa se avantajava para aragem, sentia-se já o fresco. E se me soube bem este frescor. E, aqui e ali, água. Pouca. Uma ou outra pocinha. Mas que alegria ver que choveu, que a chuva deve ter sido recente. Que visão boa.


No prato fundo que costumo deixar para os gatinhos e que, quando lá chego, está sempre seco, desta vez havia água. 

E se me soube bem o perfume que se desprendia da terra húmida, da folhagem pesada, embebida numa chuva que já não vi mas de que sinto vestígios por todo o lado. Não sei descrever este cheiro de que tanto gosto: é um cheiro orgânico, como se fervilhasse de uma vida invisível, como se a terra fosse o ventre de onde tudo brota, onde a vida se gera. Já o disse antes: um cheiro íntimo, feminino. 


Passo por baixo dos pinheiros, dos cedros, das aroeiras, dos eucaliptos, das azinheiras, piso a caruma rubra e molhada, e aspiro este cheiro tão bom, tão acolhedor. E as cores, tão bonitas. E a forma como o tempo que circula por entre a vegetação vai tingindo de luz a folhagem, os frutos, tão bonita, tão suave.


Sinto que este lugar me acolhe. Longe do mar e dos rios junto aos quais nasci, cresci e sempre vivi, é neste bocado de terra que sinto que estou verdadeiramente em casa.

Passo as mãos pelas folhinhas, vejo como, aos poucos, se vão tisnando, sinto a sua textura, aspiro o perfume. Ouço os pássaros. Estão felizes os pássaros.


De tarde estive a ler 'Da pintura' de Eduardo Lourenço. Uma felicidade. Leio com embevecimento palavras que há tempos não ouvia. O vocabulário corrente tem vindo a estreitar-se. As pessoas falam muito, falam a toda a hora, e, no entanto, as palavras escasseiam, esvaziam-se. Eduardo Lourenço usa um vocabulário rico. Mas usa-o com uma sabedoria elegante. Há beleza e uma sagesse muito consolidada nas imagens que constrói, nos raciocínios que vai desenrolando.


Eu que tanto gosto de ler sobre pintura e pintores, deleito-me com este rio de palavras que corre brandamente enquanto, deitada no sofá, vou olhando o tempo que delicadamente vai passando do lado de fora. Fico com vontade de fazer cópias destas páginas, quase como se, transcrevendo os seus textos, as minhas mãos pudessem aprender o caminho para o refúgio das palavras esquecidas.

Mas não o faço. Há coisas que não se aprendem assim. Então limito-me a deixar-me encantar, enquanto me encanto também com as cores que vejo estampadas no vidro, no qual se misturam os reflexos de dentro com a visão do exterior.


Estamos finalmente no Outono, o tempo da serenidade

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