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terça-feira, setembro 19, 2023

Dias mais complicados...
E as minhas últimas comprinhas (na Gulbenkian)

 

Um dia complicado. 

Na véspera tinha estado até às últimas a acabar umas coisas. O meu marido perguntou-me qual a pressa. Disse-lhe que prefiro ter as coisas despachadas não fosse surgir alguma situação que me impedisse de levar a água a bom porto. Sempre assim fui e agora ainda mais: gosto de acabar as coisas antes da data limite pois gosto de guardar uma reserva de tempo para imprevistos.

Parecia eu que adivinhava. Uma das coisas que mais impressão me faz, que sempre me fez, isto é, que me custa, é não poder ser eu a gerir inteiramente o meu tempo e as minhas actividades. Mas quem tem pais de idade sabe bem o que é andarmos com o coração nas mãos. Ou é uma coisa ou é outra. E, quando estão sob orientação permanente de terceiros em quem se confia para garantir que a medicação é seguida ou que os sinais de alarme são despistados, é uma coisa. Quando estão autónomos, independentes, orgulhosos de serem senhores do seu nariz, aí a coisa fia mais fino. Fazem o que querem. E não podemos obrigá-los a fazer o que não querem pois estão na plena possa das suas faculdades e ainda bem que assim é. 

O pior é quando o seu querer tem consequências. E não reconhecem como consequências mas, sim, como uma contingência de algo que não percebem ou não querem perceber: é que há dez ou vinte ou trinta anos faziam coisas cujas consequências eram nulas ou negligenciáveis mas, nos noventas, a fragilidade do corpo, já prega partidas.

Enfim. É o que é.

E, portanto, o dia foi daqueles com longas horas, preocupações, canseiras.

Agora parece que a coisa estará mais controlada. Mas, até que tudo passe, não fico tranquila. 

Tenho a sorte de viver muitos anos com os meus pais vivos. 

Mas assisti ao declínio do meu pai e ele também assistiu e sofreu muito por isso. Desde que teve o último e grave AVC ficou altamente debilitado, estando acamado nos últimos anos. Quando ele morreu, obviamente custou-me muito mas, racionalmente, compreendi que tinha chegado a hora dele, a hora de parar de sofrer, a hora de descansar, de chegar ao fim do seu caminho.

A minha mãe, felizmente está ainda bem, apesar das suas doenças e condicionantes. Mas está também a assistir às crescentes limitações que o seu corpo demonstra. E não está a aceitá-las bem. Receia muito essas limitações, desgosta-se muito, não aceita nem compreende, assusta-se. E, portanto, embora por razões diferentes do que aconteceu com o meu pai, com a minha mãe também não está ser fácil.

É lugar comum dizer que não se escolhe. 

Os jornalistas, quando entrevistam pessoas com alguma idade, têm o péssimo gosto de acabar as entrevistas com perguntas sobre a morte: pensa muito na morte? como gostaria de morrer?

Se me perguntassem parvoíces dessas mandá-los-ia à fava. Mas, por dentro, ficaria a pensar. Obviamente gostaria que fosse o mais tarde possível mas que acontecesse quando eu deixasse de gostar de estar viva e que fosse rápido, indolor e, de preferência, sem me aperceber que estava para acontecer.

Mas, pronto, isto não é conversa que se tenha. A questão é que estou cansada, um pouco esgotada.

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(...)
O que desaparece? E o que sobra?
Uma nuvem de aves brancas em céu de cinzas...

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Contudo, não me esqueci do que ontem disse, que ia mostrar os livros que trouxe da Gulbenkian. Contudo, vendo bem as coisas só um é que talvez possa ser cabalmente considerado como livro. Mas eu, que não sou purista, considero-os.

Mostro-os.














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Manon - final pas de deux - Sylvie Guillem & Jonathan Cope


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Um dia bom
Saúde. Tudo a correr bem. Paz.

sexta-feira, fevereiro 11, 2022

O que Kamila faz ao som do Bolero

 


Sei que sou lida por gente nova. Há pouco, para escrever isto, fui confirmar. Segundo as estatísticas do Blogger, 75% dos meus Leitores terão menos de 44 anos. Já agora, a maioria (cerca de 55%) são homens.

Mas, para o efeito do que vou dizer, o sexo tanto faz. A idade é que sim, faz a difereça. É que imagino que estes meus Leitores não façam nem ideia de quem é a Bo nem do sururu que por aí houve aquando do afamado 10, muito menos da cena do Bolero e de mais não sei o quê.

Para dizer a verdade nunca vi o dito filme. Sou visceralmente avessa a tudo o que é falado por toda a gente. Falava-se com ar de coisa tal como se falava da cena da manteiga do Último Tango ou da cadeira da Sylvia Kristel. Estava-se naturalmente no dealbar dos novos tempos e havia muito boa gente que se escandalizava com pouco.

Mas, imaginando que nada de transcendente teve lugar, pelo menos de forma explícita, o certo é que ficou a ideia de que algo de especial aconteceu ali ao som do Bolero. 

A propósito disso, do que pode acontecer ao som do Bolero, tenho que aqui abrir um parêntesis para inserir aquela expressão que, sabe-se lá porquê, viralizou: quem nunca...?

Mas isso agora não interessa para nada. O que interessa é que o Bolero é, na realidade, desafiador para a imaginação (de quem a tem), apela aos movimentos cadenciados e tem um timing muito ajustado a quem goste de se esmerar.

Não admira pois que inspire bailados que nos envolvem e nos transportam para momentos de sedução e intimidade. 

Sylvie Guillem, por exemplo, é extraordinária na interpretação do Bolero. Rodeada de admiradores, ela seduz um por um, cativando-os, prendendo-os aos seus movimentos sensuais.

Em tempos, eu gostava de ver a patinagem artística no gelo, especialmente nos Jogos Olímpicos ou campeonatos mundiais. Agora nunca sei quando e onde dá pelo que perco tudo. Mas soube que uma jovem de 15 anos, Kamila Valieva, talentosa, virtuosa, certamente inocente em relação a malícias e subentendidos, dançou primorosamente o Bolero, fez um salto quadruplo nunca antes visto e encantou todos quantos a viram.

Fui ver e, na realidade, ela desafia as leis da física. Não se percebe como consegue girar a tal velocidade, elevando-se no ar, rodopiando, girando e caindo de pé para continuar a deslizar. E sempre com uma leveza e graciosidade encantadoras. 

Numa das vezes cai mas, de imediato, se levanta e prossegue como se nada tivesse acontecido. E prossegue magistralmente. Contudo, no fim, faz beicinho, está triste, sente que não foi perfeita. Uma menina.

O pior são agora as suspeitas. Dizem que testou positivo a uma certa substância. Li que se trata de um medicamento que previne os ataques de angina (se bem percebo, a chamada angina de peito). Não me perguntem porque é que ela, a serem verdadeiras as suspeitas, tomará isso nem como é que um medicamento para uma questão cardíaca pode funcionar como um estimulante ou coisa que o valha. Nem sei quem é que, no caso de uma criança de 15 anos, decide o que ela toma ou deixa de tomar. Diria que seriam os pais. Mas os pais autorizariam uma filha, uma criança, a tomar medicamentos que a podem prejudicar quer a nível desportivo quer, sobretudo, a nível físico? E já nem falo no aspecto psicológico. 

E, pensando bem -- se isto do simbolismo vale alguma coisa --, se a minha filha, aos 15 anos, participasse nos Jogos Olímpicos, a mim não me agradaria que dançasse o Bolero. Com tantos milhares de hipóteses de músicas por que raio de carga de água logo haveria de dançar o Bolero...? Claro que o Bolero é o Bolero é o Bolero e é independente do que se pode fazer ao ouvi-lo mas, sabendo que a coreografia teria forçosamente alguma conotação sexual, eu acharia que se poderia muito bem esperar pelos 18 anos da miúda.

Mas, enfim, isto é uma idosa a falar. Acho que estou assim, a modos que mal disposta, por pensar que uma jovem tão fantástica -- com umas pernas esguias desta boa maneira, com uns braços que giram em volta do corpo, com uma capacidade de elevação e uma elegância tão superlativas, com uma vida tão promissora pela frente -- pode ver manchada a sua reputação e comprometida a sua carreira por lhe darem a tomar medicamentos proibidos.

Desejo que tudo não passe de um equívoco. 

Isto no dia em que soubemos que, por cá, um puto de 18 anos se preparava para causar um desgraça na escola. Soube na rádio, quando estava no carro à vinda para casa, à noite, e nem queria acreditar.

Nestas ocasiões as televisões são inundadas de espertos. Ainda não se sabe de nada e já eles sabem de tudo. Ouvi que se tratará de um puto tímido, introvertido e que consumia muitos videojogos de violência. Não vale a pena tecer considerações antes de haver certezas. O que sei, independentemente deste caso, é que deixar os putos entregues às PlayStations, a brincarem às guerras, aos ataques e a essas cenas virtuais que parecem verdadeiras e em que o seu cérebro, dúctil, se habitua às mortes e às múltiplas vidas que se podem comprar e em que as mortes não causam dor é daqueles erros que mais cedo ou mais tarde se pagam caros.

Mas, enfim, não me apetece escrever mais. Más notícias que envolvem crianças ou adolescentes deixam-me sem vontade de escrever.

Kamila Valieva Lands Historic Quadruple Jump At Only 15 Years Old | 2022 Winter Olympics



Já agora: Sylvie Guillem - Bolero


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Desejo-vos uma bela e happy friday
Alegria. Saúde. Ar puro e paz de espírito.

sábado, fevereiro 13, 2021

O tempo das flores em pleno devir

 



O dia trouxe sol e eu, ao vê-lo, fiquei logo outra. Para começar, vesti logo uma roupa mais leve. A temperatura dentro de casa marcava o mesmo de ontem e penso que na rua até estava mais frio. Mas, na temperatura -- como em tudo na vida -- uma coisa é o que é e outra é o que parece. 

E, não sei se por isso se porque sim, correu mais leve. Pelo telemóvel foram chegando fotografias dos meus meninos pequeninos. Bonitos, crescidos, bem dispostos. Derreto-me quando os vejo. Com os dedos, amplio a imagem, quero vê-los melhor. E quase parece que os meus dedos querem tocar os seus rostinhos tão queridos.

E os seus sorrisos e brincadeiras foram trazendo suavidade e luz ao meu dia.


A caminhada da hora do almoço foi agradável. Sem frio, sem vento, sem chuva, sem uma manta de humidade, pesada e cinzenta, a cobrir-me o ânimo, despi o casaco, arregacei as mangas, e caminhei em plena alegria.

Tive várias reuniões e devo dizer que uma delas foi dura. E aposto que, do outro lado, todos sentiram como posso ser cortante quando a dureza me parece indispensável. Ouço-me e sinto que se, fosse eu o alvo da minha marcação, talvez ficasse ansiosa. Mas creio que não há outro caminho. Um veículo desordenado em que impera a aleatoriedade e o desrespeito por prazos ou orientações recebidas é um veículo que não vai a lado nenhum. Só espero que compreendam que o meu propósito não é incomodar as pessoas mas conseguir que a casa em que vivem parte do tempo e de onde lhes vem os rendimentos seja uma casa próspera.


Quando acabei, peguei no copo de água para o levar para a cozinha e pensei que ia encerrar o expediente. Ainda via uns leves raios de sol e queria ir desfrutá-los. Mas vários telefonemas atrapalharam-me os planos. Um e outro e outro e eu a ver o dia a querer esconder-se. Já era quase noite quando consegui evadir-me para o jardim. Mal abri a porta do lado, ouvi uma voz. Ao fim de tanto tempo de isolamento e silêncio, uma voz. Era a minha vizinha do lado encostada à parede da sua casa, ao telefone. Certamente estava ali desde que ainda ali batia o sol. Ouvi-a falar de coisas da sua profissão. Estava focada, falava com motivação das suas preocupações. Sei do que fala, a comunicação social não tem falado de outra coisa. Creio que nem deu por mim. A cameleira está coberta por belas e muito efémeras flores. Quando estava a apanhar camélias caídas, ouvi uma respiração ofegante e logo uns passos. Era um homem de calções e tshirt de manga curta que passava na rua, a correr. Obviamente não me viu. Mas gostei de ver e ouvir gente vivendo como se vivesse uma vida normal. Penso que foram os raios de sol que trouxeram estes vestígios de normalidade para a rua.


E, depois, quando fui espreitar os botões de magnólia, foi a surpresa das surpresas. Soltei um ah... descobri que já estão a transformar-se em flores. Não sei como dizer aqui a minha alegria.

E as boas notícias não se ficaram por aqui. No canteiro junto ao estendal, as roseiras estavam adormecidas, temi que as tivesse perdido. Fiquei a pensar que deveria ter feito qualquer coisa que não fiz. Apenas uma haste seca e nada mais. Hoje, ao abeirar-me, nem queria acreditar. Uma bela e profunda rosa num rubro sentido. 

Fui a casa, a correr, buscar, de novo, a máquina fotográfica. E pudesse eu ter aqui, para vos oferecer, o perfume desta rosa singular...


Claro que a incrível descida do número de infectados foi outra parcela relevantíssima neste bom estado de espírito. Grande parte de nós, ao mesmo tempo, pusemos a pata em cima da curva e ela está a ir-se abaixo. Claro que a curva não é ramo seco que a gente tenha partido. Não: é aquilo de que tantos já falaram -- é uma mola. Com a pata em cima, ela agacha-se. Se soltamos, dispara. Devemos esperar mais uns dois meses. Pelo menos. Com a quebra no ritmo de produção de vacinas, o grosso da coluna só se consegue lá para o verão. Portanto, é isto. Com sorte, com os números de base relativamente baixos e com o bom tempo, talvez o verão seja minimamente razoável. Mas não sei se, por essa altura, poderei agarrar os meus meninos, puxá-los par o meu colo, enchê-los de beijos. E tenho tantas saudades disso. Sinto a falta daqueles cinco insurrectos pimentinhas correndo e fazendo barulho e brincando. E comendo como lobinhos famintos. Claro que também sinto a falta dos pais deles. Tomara que chegue o bom tempo e o desconfinamento para estarmos de novo todos juntos. Mas  esperança em melhores dias ajuda-nos a suportar a espera.

Bem. Algumas das fotografias que recebemos mostravam a mana e o maninho pequenino a fazerem piza e ela, a piza, a ficar com ar apetitoso. 


No outro dia, ao vermos a caixa do correio, descobrimos um papel: entregavam piza em forno de lenha. Guardei o papel e não nos lembrámos mais disso.

Então, ao fim da tarde, o meu marido chegou-se ao pé de mim: aquelas pizas, não sei, o que achas?, se forem como as outras, lembras-te, às vezes mandávamos vir, eram boas, não sei, fiquei a pensar. Atalhei: resumindo, apetece-te piza? Há uma congelada. Mas ele estava noutra: pois, não sei, estava a pensar nas de forno de lenha, será que as do papel do outro dia são parecidas? Ainda tentei resistir: mas temos jantar. E ele: não sei, não estou muito para aí virado.

Pronto: encomendámos. Pela primeira vez desde que aqui estamos, encomendámos comida para entregar em casa. Veio uma piza daquelas com uma massa fininha, mozzarela, natas, tomate, búfala, salmão fumado, manjerição. E mais um pão de alho e queijo. Tão bom. Tão bom não ter que fazer jantar. Pusemos um pouco no forno. Tudo quentinha, bom, bom. Até parecia que era quase fim de semana como antes. Só faltou irmos passear para a beira da praia.

Portanto, o dia foi (quase, quase) bom.

E este sábado o programa também se anuncia promissor. Ainda por cima, já vi que não chove. Com sorte ainda consigo pôr-me ao sol, de manga curta. Com sorte as magnólias estarão já gloriosas. 

Vamos cumprindo o nosso caminhos.


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E, já agora, e desculpem o despropósito, deixem que partilhe convosco um vídeo que achei muito interessante:

Incredible, Eccentric, Accidental: The Life of Art Collector Herbert Lust




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E tenham um belo sábado, está bem?
Saúde. Alegria.

domingo, abril 07, 2019

JV e Paulo Batista: les beaux esprits se rencontrent

A palavra a dois millennials de excepção






Junto dois textos que aparentemente nada têm a ver um com o outro. Calhou serem os dois últimos comentários que a JV e o Paulo escreveram. São textos muito bons, escritos por dois jovens especiais que ilustram bem a qualidade excepcional da nova geração.

A JV e o Paulo são ambos cultos, engagés, despertos para as circunstâncias concretas que enformam a sociedade em que se inserem. Se, jovens como são, pensam e escrevem assim, imagine-se quando a vida depositar neles mais e mais camadas de conhecimento, de aprendizagem de que, quanto mais se sabe mais se percebe o que há para descobrir, de novas emoções, de novos deslumbramentos.

Sempre que recebo comentários ou mails deles fico contente pois trazem-me sempre uma visão nova, fresca e pujante da vida.

Transcrevo, então, palavras de ambos e, como forma de agradecer a sua generosidade por escreverem aqui o que pensam, junto algumas fotografias feitas hoje de tarde in heaven. Todas menos uma: esta aqui abaixo foi-me enviada pela própria JV e mostra a floresta onde gosta de se perder.





Palavras da JV

Há uma palmeira na avenida da liberdade da qual emana uma chilradeia que chega a mais de trinta metros. Devem ser dezenas de passarinhos aos guinchos por comidinha! Já tenho visto muito turista a parar e tentar fotografar as avezinha lá no alto. 
As árvores são lugares fantásticos, povoadas de vida. 
Há uma árvore num jardim da nossa cidade que é minha. Não por título de propriedade, mas porque quem gosta tanto de uma coisa deve considerá-la sua, sob pena de cometer uma injustiça. 
É uma propriedade que não é exclusiva, partilhada com quem lá está quando não estou eu.  
Mas não é menos minha. 
Quando estou debaixo dela ou empoleirada nela (eu ainda subo às árvores) é como se tivesse entrado num mundo que parece ser todo meu. 
Mesmo num dia de fim de semana, uma tarde de sol radioso, com o jardim cheio de gente, o recanto onde aquela árvore fica é um espacinho isolado com uma vista desafogada lá do alto onde não se avista vivalma. 
Fora desse recanto, pessoas a tropeçar umas nas outras, velhos, crianças, namorados, solitários, amigos, um sem fim de gente. 
Tenho fotos de uma tarde dessas em que parece que estou imersa numa floresta sem ninguém.

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Palavras do Paulo Batista

... eu acho que parte dessa desagregação do sistema político e da sua dificuldade em construir respostas eficazes não deve tanto à inadequação de um conjunto de "velhos" que comanda um sistema (político e económico) anacrónico e inadequado para a malta nova, mas talvez deva mais à incapacidade da malta nova, saltar efetivamente da sua rede social, colocar-se no lugar do outro (diferente de si) e procurar construir respostas colectivas, integradoras, da crescente diversidade de grupos, de indivíduos e de condições de vida que co-habitam os seus territórios. 
Não quero com isto parecer um millennial "velho do restelo" (embora tenha fama disso). Eu acho que esta (a minha) geração tem as condições e as ferramentas para construir uma sociedade melhor. No entanto, talvez inebriados pela intensidade que os novos e velhos meios de comunicação colocam na ligação e integração do indivíduo numa dada rede social, tem aumentado a criação de "bolhas" de (ir)realidade. 
Os algoritmos de recomendação e dos serviços de "redes sociais" na internet são só a face mais vísivel disso mesmo - mecanismos simples mas poderosíssimos na criação desse efeito "bolha social".
Apesar da atitude aberta e liberalizante dos "millennials" perante a vida (maior abertura às redes "fracas"), paradoxalmente, o efeito material e imaterial é uma fragmentação desses mesmos grupos sociais (as redes fortes têm uma dimensão cada vez mais reduzida). Desta forma, o arquipélago de grupos sociais torna-se de tal forma complexo e "ingovernável" que resulta num crescente imobilismo coletivo. 
A fragmentação do sistema político e dos partidos tradicionais, num cada vez maior número de grupúsculos, parece-me resultar deste fenómeno de fragmentação dos "millennials" - e o Brexit, por exemplo, é mais um sintoma dos "defeitos" da geração emergente do que como uma consequência do anacronismo e "antanho" das gerações passadas.

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E como é bem verdade que les beaux esprits se rencontrent, termino com uma bela coreografia de Jiří Kylián sobre música de Mozart e com Sylvie Guillem num momento de 'petite mort' com Massimo Murru. Um prazer.


Para ambos, os mais sinceros votos de felicidade nas suas vidas e de que saibam encontrar a formar de fazer deste mundo um melhor lugar para se viver.

domingo, junho 10, 2018

A palavra a uma Leitora que há pouco tempo percebeu porque se suicidam as pessoas




Na sequência do meu post de ontem sobre o suicídio de Anthony Bourdain, recebi um mail de uma Leitora que me impressionou e, porque acho que quem se sente mal ficará melhor se souber que não é a único e que é importante que saiba que pedir ajuda é essencial e que há tratamento, pedi~lhe autorização para o partilhar convosco. Cá está:
Há cerca de um ano percebi porque se suicidam as pessoas, percebi que temos uma energia que nos motiva, que nos faz levantar da cama com projectos, uma energia que nos faz enfrentar e aguentar tudo. Só me apercebi dessa energia quando a perdi.
Não é tristeza, como dizem, porque tristeza temos todos. 
Pedi ajuda a um amigo médico, disse-lhe "dá-me qualquer coisa". Adversa que sou a drogas rasguei o folheto informativo e tomei tudinho. Ainda tomo (pela primeira vez obedeci a um médico).
Eu queria desistir mas não posso, pelos filhos, pela minha família -- não podia mesmo.
No outro dia, uma colega, meia idade -- um marido bem sucedido na sua profissão, um filho a acabar um curso superior, uma querida, nada dada a mostrar riquezas exteriores, saiu da empresa, e atirou-se ao mar. O corpo foi encontrado no dia seguinte.
Via sempre Bourdain. Fora da caixa, inteligente -- e dizia asneiras como eu gosto de dizer.
Infelizmente não se fala de depressão, não se fala nem se usa a TV para falar das doenças mentais que, se não matam, também não deixam "viver". Quando acontece uma desgraça chamam um psiquiatra ao telejornal e ficam por aí.
Estamos a viver de forma errada e nesta loucura esquecemos o essencial.

PS: Não sei se se apercebeu mas a CNN ao dar a notícia aparecia no ecrã um nº de ajuda


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Tendo em atenção a dica da Leitora a quem muito agradeço, permito-me colocar aqui a linha de apoio ao suicida que, apesar de não ter ligado para lá a confirmar, admito que esteja activa.

 213 544 545 - 912 802 669 - 963 524 660 / Diariamente das 16h às 24h 

Linha Verde gratuita - 800 209 899 / Entre as 21.00 e as 24.00 horas

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domingo, maio 13, 2018

Casos e descasos.
[E: o que aparece escrito e quem escreve]





Uma vez, estava eu muito no início -- e ainda acreditava que na blogosfera era tudo gente de bem, gente incapaz de um golpe baixo -- aconteceu uma coisa. Conto. Certo dia apeteceu-me fazer aqui uma graça, coisa mesmo de brincadeira, e, antes de a fazer, enviei um mail à pessoa que me tinha inspirado, explicando o que ia fazer e pedindo-lhe autorização para a fazer. Essa pessoa respondeu-me na hora, achou piada, brincou, disse que claro que sim, que nem precisava de ter pedido. E, na maior alegria e ligeireza, fi-la.

No dia seguinte, para meu espanto, num outro blog, alguém sem nada a ver, fez um post desancando-me. Fiquei perplexa. Uma violência que eu nem entendia, um despropósito. Pensei: esta pessoa não é de bem. Se achava aquilo, tinha-me escrito um mail, coisa em privado, não uma coisa daquelas. Então, no seu blog, no post, escrevi um comentário, explicando que aquilo meu era pura brincadeira e que, ainda por cima, tinha antes pedido autorização e que a autorização me tinha chegado envolta em sorrisos e boa disposição. Pensei eu que, com a minha explicação, desfaria qualquer eqívoco e que ela me pedira desculpa. Mas não. Também para meu espanto, essa pessoa não publicou o meu comentário. Fiquei francamente incomodada, pensando que não era justo que não me desse oportunidade de me explicar lá onde me tinha desferido tão violento ataque. Pensei: esta pessoa não é mesmo pessoa de bem.


Enquanto eu era uma novata na blogosfera, com poucos leitores, pouco ou nada conhecendo de outros blogs, essa pessoa era autora de blogs há muito tempo e, por isso e porque escreve bem, tinha muito mais leitores.

E por me ter dado aquela inusitada tareia e por lá ter posto um link para o meu blog, nesse dia, eu tive muitas visitas a partir de lá. Mas tive mais: para ainda maior surpresa, nesse dia recebi também alguns mails de pessoas para mim, até então, desconhecidas que me escreveram para se solidarizar comigo e aconselhando-me a continuar a escrever, não ligando ao que aquela outra tinha escrito. Para meu espanto, fizeram-me confidências e revelações: creio que, sem saberem uns dos outros, contavam que eram colegas dela, que a conheciam bem, que ela era conhecida justamente por ser uma destemperada, uma desequilibrada, e que, volta e meia, por pequenos nadas, esquecia as públicas virtudes e a pose de ilustre erudita para armar chavascal do grosso, peixeirada de mão na anca e chinelo no pé. Achei um piadão. Fui rever a fotografia dela para imaginar as cenas. Pensei: olha que deve ser giro... E achei graça.

Sem qualquer ressentimento, continuei, obviamente, a escrever até porque escrevo pelo prazer de escrever e não para ganhar votos. E continuei a acompanhá-la no blog, muitas vezes palavras que revelavam azedumes, outras com angústias e outras com arrependimentos mas, sempre, com uma escrita escorreita, consistentemente desenvolta e boa de ler.


Até que o blog desapareceu. Tive pena. Parece que escreve no facebook mas facebook é terreno que não piso.

E, no outro dia, ao vaguear pela pequena livraria onde gosto tanto de ir, dei com um livro seu. Trouxe-o logo. Eu, que gosto de diários, reconheci logo ali os seus belos textos autobiográficos, todos eles simplicidade e boa escrita. Uma pessoa pode escrever sobre nada, e a gente, lendo-a, sente que ela escreve sobre tudo, porque a vida real é mesmo feita de pequenos nadas. E a verdade é que, lendo as suas palavras, sentem-se os seus nervos, a sua pele, a sua solidão, a sua vontade de paz.

Só não escrevo aqui o nome do seu livro porque, depois da introdução deste meu texto, não quero correr o risco de que alguém fique a pensar mal dela. A qualidade da sua escrita vai para além dos seus arrufos ou dislates. Nem eu nunca guardei qualquer ressentimento nem nunca deixei de a ler porque não apenas, nada daquilo me causou dano, como sempre tive para mim que a arte, para ser bela e eterna, se quer intangível e desligada da humanidade de quem a produz.


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Fotografias de Jardins - no The Guardian

Laura Marling, lá em cima, interpreta What he wrote

Sylvie Guillem - Evidentia
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domingo, fevereiro 11, 2018

O meu vasinho de violetas




Recebi de presente um vasinho de violetas. Não estava à espera de receber presentes, muito menos um vasinho de violetas. Adoro violetas. Adoro o desenho das pequenas e delicadas flores, a cor das pétalas, a textura aveludada das folhas.

Agora, para aqui lhes fazerem companhia, fui à procura de poemas dedicados a violetas. Não encontrei. Os poetas são mesmo gente desatenta, gente aluada. Como é possível? Como...?

Eu, se fosse poeta, destilava as minhas muitas palavras e ficava-me pela essência azul das violetas e pelos segredos inocentes que elas escondem. 

Inventava que nelas caberiam mil noites, mil desvarios -- tantas as saudades, tantas, tantas. E não saberia de quê porque as saudades quando são tantas, tantas, não sabem de motivos, não sabem de nada, sabem só que são azuis e macias como veludo e que sentem a falta de olhares loucos e de mãos sem rumo e de murmúrios e lágrimas de amor. 

Se eu fosse poeta imaginaria que todo o mistério do mundo caberia na beleza extrema de flores assim tão elegantes, tão perfeitas, tão intangíveis quanto o som de uma voz que me está longe, quanto a ternura de um sorriso distante, um sorriso nascido para mim.  

Se eu fosse poeta quereria ter um vasinho de violetas perto de uma janela, entre a sombra secreta da memória e a luz vibrante dos sonhos. 

Se eu fosse poeta, viraria depois o mundo ao contrário e a noite seria manhã e a manhã viria radiante enchendo a pedra de luz e na luz pousava o vasinho, deixando que as flores se iluminassem de cor de rosa. 

Depois, procurava. Ah. A luz radiante da manhã precisa de companhia.

E ali estava ele. O fruto dourado, macio e doce. Abria-o ao meio, punha-o ao lado do vasinho de violetas e fotografava-o. E faria um poema carnudo, luminoso, com um perfume de mel em cada palavra.


Isto se eu fosse poeta. Mas, como não sou, não digo nada disso.

Limito-me a ser eu. Portanto, teve que ser: comi-o.

Agora, quando olhar para o vasinho, nem sequer vou sentir falta de ter o fruto tentador ao pé das flores porque sei que o fruto doce e macio corre no meu sangue, dentro do meu coração.


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E agora, se vos apetecer passear, queiram fazer o favor de descer até ao Seixal.

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segunda-feira, maio 16, 2016

Escrever




Ando a escrever uma história e isso é coisa que temo. Já não é a primeira vez. Já aqui escrevi umas quatro ou cinco histórias, nem sei.

Têm sempre mulheres. Depois de acabar, eu continuo com algumas elas ao meu lado (Lídia, Eva, Ana). Claro que também há homens mas parece que nunca são tão fortes como elas (Afonso, Duarte ou Tomás, por exemplo; deste último lembro-me tanto como se fosse uma pessoa de verdade).

Outras vezes comecei a escrever uma mas, a pressão do dia a dia -- nomeadamente alguma revolta a propósito de desmandos laparianos ou coisas quejandas -- fez-me preferir comentar a actualidade; e a descontinuidade introduzida na história fez-me perder a embalagem: fiquei pelo caminho.

De resto, confesso que, quando começo uma história, logo me indisponho comigo mesma.
Não gosto de obrigações para além das que garantem a minha subsistência e o facto de pensar que devo dar continuidade ao que escrevi já me contraria. 
Sento-me aqui a pensar que, para não me deitar de madrugada, mais valia deitar mãos à obra mas a aversão aos deveres auto-impostos logo me leva para descaminhos: ponho-me a ver vídeos, a ler poemas, a ver outros blogues, a olhar para a televisão -- se eu gostasse da palavra, diria que procrastino; assim não digo, palavra mais difícil de dizer. 

Mas o pior nem é isso: é que, fosse eu prudente, só me aventurava nisto quando tivesse já escritos pelo menos um ou dois capítulos para a frente. Mas a prudência é virtude de que nasci desapossada. Portanto, a cada dia em que me dá para escrever, nunca sei o que vai sair. Quando acabo, acho que talvez aquilo que escrevi tenha feito algum sentido. Mas não sei, quando acabo já estou quase a dormir. O que sei é que o espírito dos personagens parece que toma conta de mim e calha acabar de escrever em lágrimas ou tomada pela inquietação. Mas, no dia seguinte, em background, arrasta-se em mim uma inquietação: e agora como dar seguimento à coisa? porque me fui meter por ali sem saber como sair de lá? Não quero que seja absolutamente óbvio, não quero que seja lamechas nem que que seja inverosímil. A cada dia penso, então, atalhar: se calhar podia acabar já assim e cada um que fique a imaginar o que poderia acontecer a seguir. Mas se me aborrece sair de um filme em que parece que a coisa acaba antes do desfecho, que jeito teria eu fazer o mesmo?

Por isso, venço a minha disparatada rebeldia, obrigo-me a entregar os dedos ao teclado e... seja o que for.

Hoje, por exemplo, sinto como que um fervilhar em brando, como que uma aragem a soprar num campo de espigas e papoilas, ou seja (metáforas bucólicas à parte), vontade de ir descobrir o que vai acontecer a seguir à Clara e ao Pedro. Mas, porque publiquei o último episódio apenas este domingo de tarde, não me parece fazer sentido avançar já com outro. 

Por isso, se calhar hoje não vai ser. Logo vejo. Mas acho melhor não. E, para além disso, depois de uma noite de amor como a que eles acabaram de viver, o que fazer para não lhes estragar o clima de romance?

Bem. Já vejo.
(Estão a ver como isto é chato? Estes dilemas? Não era melhor eu não me meter nestas cavalgadas? Limitar-me a estar sossegada a ver os Globos de Ouro?)
Sei muito bem que não sou escritora. Por vezes, alimento o sonho de que um dia terei tempo para o tentar.
Gostava de ter uma sala grande, quase vazia, com uma mesa de madeira, uma mesa comprida, enorme. Teria livros nas pontas para me deixar um espaço amplo para eu escrever. Talvez tivesse, junto a mim, uma pequena jarra redonda, baixa, com flores frescas. Teria uma aparelhagem pequenina, ao pé dos livros, para poder ir ouvindo música. Teria uma janela grande ou portadas de vidro a dar para um bosque. Se calhar, então, seria uma cabana num bosque. Tenho esta atracção pelos bosques. As árvores, o canto dos pássaros, os cheiros da terra, os seres silenciosos que os habitam. 
Quando penso em ter condições para escrever, aquilo em que penso logo é no lugar onde a coisa teria lugar. 
Mas, embora nessa sala eu pudesse estar sozinha, não é forçoso que o estivesse. Aliás, na casa não poderia estar sozinha. Não gosto de estar sozinha. 
Parece que só depois de ter um ambiente assim é que eu conseguiria que o pensamento e a emoção se alinhassem com as mãos para que as palavras tivessem alguma coisa a dizer. Soa disparatado, eu sei. E soa porque, com certeza, é. Os escritores não devem padecer destes pensamentos absurdos.
Mas não sou escritora. Nem sei se sou escrevinhadora. Sei apenas que gosto de escrever palavras que saem sabe-se lá de onde.


Não percebo como funciono. Não consigo descrever o que se passa comigo quando escrevo. Provavelmente passa-se o mesmo que se passa com toda a gente que escreve. Mas, agora que o escrevi, acho que não: não há 'uma' (única) maneira de escrever. Deve haver quem se ponha a magicar, quem arquitecte o texto todo antes de escrever, quem escreva em papel e depois o passe para computador, quem faça um apanhado de tópicos e os estude para ter a certeza que não comete erros de palmatória. Eu não. Nada. Parece que a minha cabeça só se liga aos meus dedos no preciso instante em que os dedos começam a passear pelo teclado. 
Gosto de ler as entrevistas do Paris Review. Claro que não se tira nenhuma conclusão nem é suposto tirá-las. Uns escrevem de pé, outros sentados, uns sofrem, outros gozam, uns lapidam a escrita até luzir como um diamante, outros é como se fizessem pão, vai ao forno e logo se vê como sai. 
Eu, se um dia me meter a tentar escrever, não vai ser para sofrer, para mim é bom o que se faz com prazer -- senão não vale a pena. 
Tenho este meu lado epicurista: flanar pela vida, olhando a beleza que está por todo o lado, aprendendo com aqueles que me abrem portas para novos mundos, deixar-me emocionar com os afectos, com a superação que vejo noutros, entusiasmar-me com a procura e as  conquistas de quem não se aquieta perante a vida. Coisas assim. Por isso, se um dia me der para escrever, terá de ser de maneira a que não me prive do que gosto nem me retire o prazer de, a cada momento, sentir a alegria de continuar a aventurar-me por novos caminhos.
Mas, para concluir, se percebo pouco do que se passa à minha volta, menos ainda percebo o que se passa dentro de mim. Por isso, quando às vezes me sento aqui a escrever e, do nada, me aparecem palavras que falam de gente que não conheço, eu fico sem perceber o que se está a passar nem porque é que, aos poucos, começo a afeiçoar-me às pessoas que invento. E, então, por tudo isto, eu fico sem saber se germina em mim a semente da escrita ou a da loucura.

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No entanto, a bem da verdade vos digo que, para mim, o melhor mesmo é não pensar muito nestas coisas, deixar acontecer. Como camadas que a vida nos vai revelando, deixar que se aproximem de nós as palavras, as ondas de luz e de música, as emoções, os afectos, os inesperados instantes que para nós estão guardados. Vivamos a maravilhosa e surpreendente dança que é a vida. É isso. E chega.

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As fotografias foram feitas este domingo de manhã e, é verdade, a câmara fotográfica também parece ser uma extensão de mim.

Nina Simone, lá em cima, interpreta Mr. Bojangles (e o vídeo mostra uns Whirling Dervishes).

Sylvie Guillem, cá em baixo, dança o Bolero de Ravel.

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Caso não tenham lido a A primeira noite de amor -- e estejam numa de saber de intimidades alheias - é só descer.
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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma bela semana a começar já por esta segunda-feira. 
Sejam felizes.


quarta-feira, abril 27, 2016

De que matéria?



De que matéria é feita a emoção que sinto quando vejo uma tela encarnada, quase só uma mancha, quase só nada? Que parte de mim é activada para que eu sinta o peito a vibrar e eu com vontade de entrar dentro do vermelho, o meu sangue feito pigmentos derramados sobre a tela, eu feita o nada que habita uma tela inerte? Ou não é inerte a matéria que assim me convoca? É mesmo luz o que sai do coração da tela, uma alvura que não tem explicação, talvez leite, talvez nuvem, talvez apenas silêncio? Que laços se soltam desta tela para virem, assim, enlear-me, eu atraída pela injustificação que me prende? Sombras, rolos de fumo, o quê, em baixo, que nasce de dentro da matéria da tela, que nasceu das mãos de Rothko, que nasceu do nada que por vezes habitava a sua mente? 

Mas a tela não está agora aqui, o que está é uma representação sob um vidro, flocos feitos de ínfimos impulsos que atravessaram o espaço, que entraram nas redes invisíveis e infinitas que entretecem o espaço; e, no entanto, vendo o que estou a ver, sem querer, eu penso em mim, no museu, eu em frente da tela imensa e silenciosa, e eu com vontade que a tela seja oração e eu uma sombra passageira que passou por ali levando consigo a emoção de ver estes simples rectângulos cor de sangue e luz.

De que matéria posso eu falar quando falo do que estou a falar? De matéria nula, intocável, toda e só abstração?


E de que matéria é este meu sentimento de devoção, de enlevo, de encantamento, como se só de ouvir esta música eu me tornasse outra, melhor, como se por atravessar as minhas células, a música me transformasse, eu por momentos transcendente, ou não eu mas a matéria que em mim se transformou para recolher a impressão que a música quer deixar gravada na minha curta memória?

Ouço uma música assim e penso que algures dentro de mim há cordas invisíveis que se agitam como borboletas efémeras ou como um mar de papoilas ondulando ao vento. Saberia eu fotografar essas imagens invisíveis que se formam dentro de mim quando ouço uma música assim? 

E as searas coloridas que dançam suavemente num lugar luminoso dentro de mim quando ouço Horowitz a tocar Mozart serão iguais às vossas, Caros Leitores? Ou a vocês a música não desenha searas mas nuvens deslizando no céu ou pássaros brincando na rebentação das ondas? Ou apenas um lugar de recolhimento, uma capela vazia? 


E de que matéria é feita a minha curiosidade atenta quando ouço Sylvie Guillem falar enquanto o seu corpo se move como eu gostava que o meu soubesse mover-se? E que partículas elementares dentro de mim se agitam em uníssono, certamente em uníssono, uma manta de partículas movendo-se em sintonia, enquanto observo as longas pernas de Sylvie, a elegância das composições, a inquietação dos arabescos que desenha com o seu corpo, os seus braços longos como asas nuas?

Ou não há matéria envolvida nesta história? Apenas rastos que as partículas em movimento deixam em mim? Sonhos imateriais, ligações intangíveis?

E de que matéria é o movimento que conduz os meus dedos que deslizam pelo teclado em busca das letras que cheguem até vós como sinais de luz com significado, transportando até junto do vosso olhar a emoção que sinto no momento em que as palavras se formam, já soltas de mim?

Pergunto -- mas felizmente não posso responder, porque me desconheço.

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E, caso estejam para aí virados, queiram descer para irem visitar a Dona Guidinha e, a seguir, a poesia de Eugénio de Andrade.

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terça-feira, março 03, 2015

O que é a arte? O que é a beleza? - que questões difíceis me coloca, Rosa Pinto. A verdade é que não lhe sei dizer, posso apenas falar de algumas coisas de que gosto.


Eu não sei o que é arte nem sei o que é belo. Sei apenas o que me toca e, então, eu não sei explicar porquê. O que a mim me parece belo muitas vezes não o é aos olhos de outras pessoas. Não sei o que é mas sei o que não pode ser: não pode ser perfeito. Não gosto do excesso de perfeição. A perfeição absoluta atinge-se com muito esforço, com depuração, com a perda da espontaneidade, e esse esforço, essa depuração, a mim parece-me quase um ornamento e eu não gosto muito de ornamentos. 

Quando eu fazia tapetes de Arraiolos, aquelas complicadas réplicas de tapetes do século XVII que aqui tenho em casa, eu bordava com todo o preceito. Os mais exigentes, ao verem os tapetes, viravam-nos logo porque pelo avesso é que se vê se é um verdadeiro Arraiolos e nunca encontraram defeito nos meus, eram perfeitos. Milhares de pontos e nem um ponto em falso. E, no entanto, não há um único tapete em que eu não tenha deliberadamente trocado um ponto. Tinha que ter um pequeno toque de imperfeição senão não seria meu.

Às pessoas de feições muito perfeitas eu acho monótonas. Às pessoas muito bem comportadas eu acho umas chatas.

Da mesma forma, aquilo que eu acho belo ou que me toca como sendo arte tem que conter assimetria, desconcerto, desequilíbrio, tem que haver algures o chamamento para o abismo.




Emocionei-me uma vez perante uma grande tela de Caravaggio e talvez o que mais me tenha impressionado tenha sido a sujidade das mãos, das unhas. Ou o ar de deboche e de noites mal dormidas dos rapazes que ele pintava.




Ou o excesso de injustificação que existe nas telas de Rothko. A vontade de me misturar nas cores sem motivo, de me perder no azul, de me incendiar com os encarnados cheios de luz. Ou os encarnados densos, sombrios, contendo a perdição da noite mais profunda. Ou o nada banhado de cor, a oração mais sentida.







Ou cavalos azuis. Gosto de cavalos azuis cruzando os espaços que habito, sonho que atravessam a noite transportando sonhos, ouço-os passar sedosos, silenciosos, apenas a sua corrida deixando um rasto de corpos suados no ar. De manhã encontro-os em repouso, passeando tranquilos entre caminhos onde o alecrim floresce.




Ou corpos nus que dançam em roda, e a música une o sangue que neles corre e o coração une-se para que a dança em roda se feche como um anel o desejo que os percorre. E junto-me a eles e festejo os perfumes suaves e o som dos pássaros e o prazer que o meu corpo sente quando dança ou quando vê outros corpos livres, elevando-se em desequilíbrio até onde os deuses permitem.







Na escultura também procuro o imprevisto, a imperfeição dos corpos. Ou a ausência de explicação, o desenho da luz, as sombras, os corpos abandonados, os corpos sem forma, ou a erosão do tempo.

Na música eu gosto do que me transporta nem sei para onde, para o desconhecido, porque o que me atrai é o que não conheço. Ou melodias que me embalem. Ou que me tirem para dançar, ou que me levem até às portas de jardins cheios de perigo.

E na escrita eu gosto que as palavras tenham vida própria e criem histórias impossíveis, teias imprevisíveis onde os corpos não escondam a carne, onde os olhos não escondam as lágrimas, onde os corpos não escondam o riso e o voo, onde os sexos não tenham pudor nem limites. E gosto de cartas e de diários e gosto de sentir que está ali a essência de quem os escreveu, sem véus, sem rodeios. Ou subtilezas que mal se percebam. Ou confissões pagãs, ou segredos sagrados ou a semente da loucura.

E gosto da leveza da poesia. Ou do peso esmagador da poesia. Ou da música da poesia. Ou do sangue quente da poesia. Ou do brilho ardente que se esvai do coração dos apaixonados e se transforma em poesia. Ou das cinzas e sombras que se ocultam na poesia. Ou da terra fértil e húmida que cheira a poesia.




E nas flores eu gosto que elas nasçam e vivam por si, selvagens, livres, delicadas, efémeras. Perfeitas e imperfeitas como o amor, como as palavras não ditas, como o desassossego que se adivinha.




E nas árvores eu gosto de tudo. Do tronco que fica mais largo como o corpo de uma mulher que amadurece, da pele que se solta como memórias perdidas, de como se enlaça em flores e alegrias, dos cheiros que se misturam como seivas, espermas, salivas, beijos.




E na fotografia eu gosto do que não é óbvio, do que se adivinha por detrás do olhar de quem fotografou e gosto de sentir a aragem que fazia flutuar a flor ou o silêncio que envolvia uma orquídea na escuridão, ou um rasgo numa parede ou na pele de um homem.

E...

E podia continuar e estaria de gosto. Ainda não falei de arquitectura, por exemplo. Ainda não falei da representação. Mas a noite já envolve as minhas palavras e eu tenho que me ficar por aqui.




Vou sonhar que sou uma mulher feliz, mergulhada em espantos azuis e vou ouvir o canto dos pássaros e a música do vento nas ramagens e vou esperar que passem os cavalos azuis para eu me misturar com eles e partir à descoberta dos mistérios da noite.

Mulheres correndo, correndo pela noite.
O som de mulheres correndo, lembradas, correndo
como éguas abertas, como sonoras
corredores magnólias.
Mulheres pela noite dentro levando nas patas
grandiosos lenços brancos.
Correndo com lenços muito vivos nas patas
pela noite dentro.

[Herberto Helder]

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Permitam que vos convide a visitar o meu Ginjal e Lisboa. Hoje tentei redimir-me da minha ausência por lá: 

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Por aqui tenho tanto sono que já nem consigo colocar legendas nas imagens. As minhas desculpas.

E permitam ainda que vos convide também a descer até ao post seguinte onde dedico uma música ao láparo: A mula da cooperativa. Ai és tão linda.
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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma bela terça-feira.