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terça-feira, março 13, 2018

O abade prevenia que semelhantes teses e temas só deviam ser apresentados e discutidos a "determinadas mesas e com discrição" e, ainda assim, "mandando sair os criados".





Thérèse philosophe inspirava-se num caso célebre: o padre Girard, um jesuíta reitor do Seminário Real de Toulouse, fora acusado por Catherine Cadière, de quem era confessor, de a tentar seduzir. O padre fora absolvido pelo Parlamento de Aix, em 1731, mas numerosos panfletos repetiram e romancearam o episódio. Assim, Thérèse philosophe passava também a ser um roman à clef.


O padre Girard, Dirrag na ficção, usava os famosos Exercícios Espirituais de Santo Inácio numa desvirtuada acepção carnal, misturando sexo e sacrilégio. A mensagem era a desmontagem da dualidade corpo-alma e a disseminação de uma filosofia materialista. (...)

Para se ilustrar nestas matérias, Thérèse ia lendo na biblioteca do Conde, seu interlocutor, alguns clássicos da pornografia. No final, tirava as conclusões consequentes: a volúpia e a filosofia faziam a felicidade do homem sensível, que chegava à volúpia graças ao tacto e que amava a filosofia graças à razão.

Ao mesmo tempo que se desdobrava em experiências com vários parceiros -- padres, aristocratas, filósofos --, Thérèse ia referindo outros prazeres, para leitores que supunha da sua condição: vinhos de qualidade, como champanhe e bourgogne, e pratos raros e caros, como ostras. O gourmet, o filósofo, o libertino, juntavam-se na boa vida. O público alvo era, claramente, a sociedade dos salões. 

Já Diderot, Voltaire e Montesquieu, em La Religieuse, Candide ou Lettres Persanes, conhecendo a ligeireza intelectual do beau monde, seguiam a mesta receita, servindo a filosofia em pequenas doses, facilmente digeríveis pelas elites do tempo, como os petits pâtés anticlericais de Voltaire. Uma das personagens de Thérèse philosophe, o abade, prevenia que semelhantes teses e temas só deviam ser apresentados e discutidos a "determinadas mesas e com discrição" e, ainda assim, "mandando sair os criados".

Só os escolhidos deveriam ter acesso a estas verdades, pois, se conhecidas e partilhadas por todos, poderiam subverter a ordem social. Assim, a filosofia ilustrada era só para as elites, permanecendo o povo na ignorância e nas trevas da religião e da tradição, sendo preferível e desejável que assim acontecesse.



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Na sequência de Filosofia e Pornografia e de Um best-seller em 1748, este também é um excerto de Bárbaros e Iluminados, Populismo e Utopia no século XXI de Jaime Nogueira Pinto.

Kate Moss aqui é fotografada por Tim Walker

 Divna Ljubojevic interpreta Песма над песмама

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Um best-seller em 1748
-- Teses filosóficas intercaladas com descrições eróticas --




Um texto exemplar deste novo género, e um dos best-sellers da época, foi Thérèse philosophe, um romance libertino típico, em que os diálogos filosóficos acompanhavam os mais variados, sofisticados e rebuscados desvarios sexuais entre os dialogantes.

O título completo do romance é Thérèse philosophe ou Mémoires pour servir à l´histoire du P. Dirrag et de Mlle Éradice. O livro foi publicado em 1748, em pleno século das Luzes. A sua autoria deixa algumas dúvidas, embora seja geralmente atribuído a Jean-Baptiste de Boyer, marquês d'Argens, aristocrata e militar, protegido de Frederico II da Prússia. 

D'Argens era um escritor muito prolífero que se fixara na Holanda para poder livremente atacar a religião católica. Nos 40 anos que precederam a Revolução, o romance conheceu dez edições. Ao modo do tempo, apresentava teses filosóficas intercaladas com descrições eróticas, que a narradora, a tal 'Teresa filósofa', ia contando em jeito de memórias. O livro não tinha alusões políticas críticas -- apenas a religião católica e o clero eram objecto de ataque nas descrições de constantes orgias em bordéis e conventos. Thérèse philosophe inaugurou um género que, até à Revolução, iria contribuir decisivamente para pôr em causa, na sociedade francesa, sobretudo nos círculos do poder, nas classes altas e na burguesia de província, os valores e princípios cristãos.


O próprio Marquês de Sade havia de reconhecer os méritos do livro, que atribuía a d'Argens. (...)

Esta e outras obras chegavam ao público que as queria e as lia através de uma rede de cumplicidade de autores, editores, impressores, livreiros, funcionários e políticos.


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No seguimento do post abaixo, Filosofia e Pornografia, mais um excerto do livro Bárbaros e Iluminados, populismo e utopia no século XXI de Jaime Nogueira Pinto

Ilustrações de época de Thérèse philosophe

Hristos Anesti por Divna Ljubojevic

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Filosofia e Pornografia





As ideias dos filósofos e enciclopedistas, críticos dos pilares das instituições do Ancien Régime, a Igreja e a Monarquia, o Altar e o Trono, encontravam a sua divulgação através da literatura popular que, com o atractivo da proibição, circulava entre gente da classe alta e da burguesia de província, gente geralmente protegida de consequências repressivas pelo estatuto social.

Estas "obras filosóficas" tinham a característica de juntar uma linguagem e uma temática claramente eróticas, ou até pornográficas, e uma filosofia implícita de sátira e de crítica dos costumes tradicionais e da hipocrisia das classes dominantes, sobretudo dos religiosos que, reprimindo em nome da religião e da moral a liberdade sexual dos outros, a praticavam usando e abusando da sua condição.

Assim, estas narrativas assumiam uma natureza utópica nova, descrevendo um mundo ideal, em que os prazeres do sexo e outros excessos sibaríticos eram acessíveis e imediatamente realizáveis; um mundo sem transcendência e sem expectativas de trancendência, onde não havia limites religiosos ou éticos ao desejo nem à imaginação do desejo.


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Ilustração de George Brassens - La Religieuse

Volin Partita no.2 - Gigue - Arthur Grumiaux ( Bach )

Excerto de Bárbaros e Iluminados de Jaime Nogueira Pinto