Enquanto as televisões dão conta de foguetório aceso lá pelos médios orientes, com algumas botas a marcharem a caminho de terreno proibido, refugio-me no meu mundinho suave, banhado a outono e a ouro, onde ninguém maltrata ninguém, onde se fala de escritas e de leituras, em que se cultiva a afabilidade e não a animosidade.
Portanto, é por aí que hoje vou.
Ando geralmente pelas margens. Tento descobrir a escrita genuína, aquela em que não se encontram bolas de efeito, em que as palavras estão junto à respiração, em que não há banalidades enfatuadas mas em que se escreve sobre verdades desabitadas, em que se visitam ruínas ocupadas pelo silêncio.
É verdade que muitos dos blogs em que a escrita escorreita fluía vão rareando. Desmotivaram-se os seus autores, desertaram talvez para redes mais socialites; ou simplesmente cansaram-se. Muito gostaria eu que o Pedro Mexia, a Ana de Amesterdão, o Vítor das Âncoras e Nefelibatas e todos os outros que na minha lista de Frescos e Bons (à direita) aparecem bem cá para baixo já que não publicam há séculos voltassem a aparecer e a aquecer a blogosfera.
De qualquer forma, vou continuando a acompanhar os fiéis e devotos que ainda se mantêm no activo. E ainda os há dos bons.
E, também eu, não perco o que dizem. São apontamentos, são registos no livro de horas dos seus autores, são desabafos, são conselhos. São boas companhias.
Portanto, fui em busca desses frutos que se anunciaram gostosos, maduros.
Juntei-lhe um livro da Martha Medeiros pois tenho lido que os seus livros de crónicas se vendem como pãezinhos quentes e eu, que gosto tanto de ler crónicas (apesar de me dizerem que em Portugal o género Crónica é mal amado e pouco procurado), quero perceber quais as razões de tal sucesso.
E o Nexus do Harari porque claro que sim, é muito cá de casa, e porque o meu marido tem lido de fio a pavio todos os livros dele e estava à espera que este cá chegasse, e um outro também para ele, A História do Mundo do Peter Frankopan de quem já leu As Rotas da Seda.
Nos idos de outras eras, antes de nos termos desiludido de vez com o Expresso, gostava de ler as suas críticas literárias. Mas também havia críticas muito balofas, muito tontas.
Por isso, agora, sem Expresso e sem gurus a opinarem sobre isto e aquilo, bebo com avidez sugestões que vou colhendo aqui e ali, nomeadamente na nossa querida blogosfera.
Vamos é agora ver como me oriento para me deitar a eles (refiro-me aos livros, claro), tanto mais que as pilhas dos não lidos vão crescendo nos lugares estratégicos, ameaçando desabar quando lá pousar o próximo.
Mas é tão bom ver chegar bichinhos novos, cheios de mundinhos por descobrir, cheios de palavrinhas boas...
O mais jovem. De longe o mais jovem. O mais irreverente. O que mais gosta de atirar pedras para o charco. Um que me diverte, me ensina, me chama a atenção. Um que seguramente se diverte enquanto escreve. Quase sempre, ao ler o que publica, me apetece transcrever aqui para ter a certeza de que, se quiser reler, o encontrarei. Depois não o faço, penso que seria deselegante. Mas hoje aqui fica o devido tributo. Acho-o o máximo, o máximo, o máximo.
[Ao fazer o link para a wikipédia e, logicamente, ao ler o que lá se diz, fiquei de boca aberta (literalmente aberta) ao saber de quem é pai. Não fazia ideia. Espantoso -- até por nunca tal me ter ocorrido.]
Hoje transcrevo aqui uns bocadinhos apenas para que se possa apreciar a suculência:
Se alguma coisa Fernando Pessoa viu bem, nos portugueses com que veio encontrar-se, no seu regresso de Durban, foi o seu profundo e não radicável provincianismo. Somos provincianos a admirar e somo-lo a não sermos capazes de o fazer, quando disso seja caso. Um prémio dado lá fora, um elogio vindo de fora, criam um verdadeiro histerismo nacional, como se fôssemos, de repente, o povo eleito.
Já muitas vezes comparei a sobriedade com que o galardão Nobel é anunciado, recebido e comentado, na grande imprensa inglesa. Entre nós, com Saramago, foi aquilo que se viu.
Para quem seja minimamente adulto, do ponto de vista intelectual, e esteja razoavelmente informado dos bastidores e da durabilidade das reputações dos laureados, o espectáculo da fúria admirativa lusíada é realmente confrangedor.
Nunca vi, em França ou na Inglaterra, falar-se no “nosso” Nobel André Gide ou T. S. Eliot. Até seria insultuoso pensar que fora o prémio que lhes dera prestígio e não o seu mérito. O grande dramaturgo George Bernard Shaw não precisava para nada do prémio, porque já era uma lenda viva, na altura em que lho deram: quem precisava do prestígio dele era o prémio. Visto isso, até se deu ao luxo de recusar o dinheiro, aceitando, só por cortesia, o diploma e a medalha. (...)
Tem-se visto isso com os vários gurus de serviço, como foi, por exemplo, a vergonhosa figura feita pela nossa intelectualidade, durante toda a vida de Eduardo Lourenço e, particularmente, por ocasião da sua morte. Aquilo não era admiração, era pura adoração bacoca. Fazerem de um homem que nunca foi filósofo o mais genial deles, na história da nossa cultura, tem que se lhe diga. Mas poucos, em Portugal, apreciam o grito “o rei vai nu!” (...)
Na sua coluna habitual, na última página, da última edição do quinzenário JL, Gonçalo M. Tavares refina na idiotice que usa as vestes sumptuárias de uma pitonisa cheia de segredos ominosos. As suas reflexões sobre a guilhotina, além de já terem vetustas barbas, alcançam, nesta nova formulação, uma densidade de tontice por decímetro quadrado de página, como havia muito não me era dado observar. E este senhor é publicado, patrocinado, promovido, premiado, prefaciado, traduzido, viajado e venerado. Não sei se condecorado, mas deve ser falta de informação minha. O nosso meio intelectual anda realmente a bater no fundo. A boa notícia é que, a partir daqui, só podemos melhorar. (...)
Poetas como Gastão Cruz, seduzidos por proclamações extremistas e carecidas de verdadeiro sentido, não perceberam estas coisas como não perceberam muitas outras e ficaram cinquenta anos agarrados ao excesso deliberadamente provocante de Mallarmé, pretendendo fazer poesia só com palavras.
Seria bom que os nossos críticos literários, com tribuna oficial e responsabilidades acrescentadas, dessem um banho lustral às suas ideias e não andassem a vender gato por lebre, lançando a confusão nas jovens cabeças que os frequentam (...)
Toda a recensão está cheia de coisas confusas e sempre me pareceu que uma cabeça confusa não é o melhor equipamento para clarificar as ideias dos outros. Os nossos literatos têm de interiorizar, de uma vez por todas, que o opaco e o obscuro da escrita não são um valor, muito pelo contrário. A um literato deve exigir-se, tal como a um cientista ou a um filósofo, a boa fé das ideias claras.
Já basta a obscuridade que muitas vezes habita na própria poesia, não se lhe acrescente a de quem a escrutina. Citando o nunca assaz citado António Sérgio, um eclipse do sol é uma obscuridade, mas a explicação científica desse eclipse deve ser uma claridade.
Não há uma escrita literária e uma escrita de ideias, há só uma escrita.
A mais criativa. Talvez também a mais genuína. Do pouco faz muito. Há qualquer coisa de inocência e de muito íntimo em tudo o que publica. Há nela qualquer coisa de Lispector e de Helena Almeida. Gosto muito do que faz e gosto muito dela. Acredito que seja muito boa pessoa. Diz-se solitária mas desencanta nela e no que a rodeia sucessivos motivos de inspiração. Gosto imenso de a acompanhar. É uma lufada de ar fresco.
Quis repetir uma pose que fiz em outras férias, as de há uma década. (link aqui) Já nessa altura imitei esta pose, havia visto algures alguém roçando os cabelos na água da piscina e, considerando giro pra caraças, imitei. Ora, este ano, imitei-me foi a mim, que o lugar é o mesmo e idem para o fotógrafo - O Luís, who else? - Entretanto, lá atrás, há post fotográfico com a foto, porém de corpo inteiro. Antes de a publicar idealizei que faria uma junção de quadradinhos azuis desenhados (desenhei-os para apagar as pessoas presentes na piscina, sei lá se quereriam estar presentes no blogue!) com os quadradinhos do interior da piscina, mas depois deixei-me de falas dispensáveis e toca de chamar simplesmente 'quadradinhos azuis à despedida'. - Pronto, sou deveras original. - Deixo agora a foto recente, mais aproximada do que a já publicada, bem como a que publiquei há uma década. Qualquer diferença encontrada, casual ou procurada, pois que, pá... Pára o mundo de girar? Não, né? Poi zé.
ou:
Pequeno-almoço
Chá de hibisco e torradas com manteiga, o pequeno-almoço. Às vezes parece que, escrevendo, retirarei a presença, e até a poesia, às coisas que vivo. Calo-me, então.
ou:
Cremes no rosto
Como sabem, e se não sabem não faz mal, eu gosto de vocês na mesma, tenho um creme de rosto que afinal até nem é creme nenhum, é um sérum, e oleoso, e eu tinha idealizado que o poria no nécessaire aquando das férias, a ver lhe acabava com o rasto e pâ pâ pâ. Pois bem, acabei, já até pus a embalagem no contentor dos plásticos. Guardei foi a tampa, que lhe estou a dar um uso para o qual não foi criada - o de servir de base e apoio para o desodorizante, que, estando de resto, virei ao contrário para o líquido escorrer e se manter always junto ao roll. Precisely, a tampa é redondinha, daí não se manter em pé e ao contrário. A imagem, o que tem a ver com o assunto já exposto, é que estava a distribuir o protector solar pelo rosto quando me lembrei que podia tirar-me o retrato e assim eternizar os pedaços de creme que haveria de espalhar. Pus o filtro que pus porque o retrato a nu é tão risível que não o aguento.
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O mais romântico. O mais subtil, o mais elegante no manuseio de palavras que acariciam, o que estende a leveza do traço ao desenho e à escolha das cores, o que destila com requinte as mágoas, as saudades, os sonhos. Também um cuidadoso coleccionador de instantes, de troca de palavras alheias, de troca de olhares. Alguém que, no acto de coligir, sempre encontra maneira de deixar perceber a atenção carinhosa com que observa os outros. Um romântico integral. Silencioso e sedutor como um gato.
Todos precisamos de alguém a quem possamos realmente dizer a verdade quando nos é perguntado:— Como estás?
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Que és tu?
Comprei o livro no dia em que saiu sem ter lido qualquer referência, que os mergulhos em águas escuras são trepidantes também. Terminado no espaço de vinte e quatro horas, pergunto-me: terminou, de facto? Haverá sequela, haverá fecho em obra subsequente? «What are you?», se chama o livro de Lindsay Lerman, e idêntica interrogação se pode colocar quanto ao livro em si: o que és, «What are you?» Que objeto incompleto, inacabado és que nos deixas mais interrogações que respostas? Ao leitor são dadas pistas, indicações, sinais, mas não conclusões, sequer pontes entre os dados. Como uma impossível estante de montar à qual faltem prateleiras e uns quantos parafusos. Para leitores que querem ser co-autores. Para mim, talvez, assim me ache capaz de assumir tal responsabilidade sem o poder associado, a mais temível das condições, a que sempre evito, aquela que será difícil aceitar, para já.
Se a algum dos três ilustres bloggers aqui festejados não agradar que as suas fotografias, ilustrações ou textos aqui tenham sido plantados, por favor diga-me, está bem? Retirarei logo que possível, prometo.
E, por hoje, por aqui me fico. Se amanhã não surgir nenhuma emergência que vá além de tartarugas gigantes a bloquear o tráfego ferroviário no Reino Unido ou da suposição de que Trump enterrou a primeira mulher, a loura recauchutada Ivanka, no 1º buraco do seu campo de golf para ter benefícios fiscais e se, estoicamente, continuar a não ceder à tentação de dizer algumas coisinhas sobre o Presidente de todos os comentadores que comenta pecados de cardeais, bocas de uma senhora num restaurante da Caparica e outras inconveniências, aqui estarei para dar curso a mais umas quantas selecções. Boa matéria prima e ilustres candidatos é o que, felizmente, não falta.
Amanhã, se tudo correr de feição, falarei do mais cirúrgico, do mais inesperado, do mais doido ou de outros ainda melhores. E não quero dizer que sejam do género masculino: podem ser e podem não ser. O que são é especiais.
Se calhar, aos poucos, começo a dar mostras de querer reentrar naquilo a que quem goste de aspas poderá chamar, com dedinhos circunflexos ao lado, o velho normal.
No sábado, reincidi: haveria de voltar tentar o melhor gelado de Lisboa. E à tardinha lá fomos: duas big balls, uma de chocolate e laranja e outra de arroz doce. Ao compor o exagero, a menina perguntou: 'Canela?' e eu, sem pensar, 'sim, pode ser'. Se me tivesse perguntado se queria nozes, pinhões, passas, rum, lascas de banana, pedaços de abacate caramelizado, whatever... a tudo teria dito que sim. Tudo de que estive privada nos últimos tempos. Consolei-me. Coisa mais boa.
Hoje tinha um sms a anunciar uma promoção da Fnac. Durante o novo normal (e toca a coçar os dedinhos no ar para fazer as aspinhas) bem poderiam chover promoções de tudo e mais alguma coisa: a nada prestava atenção, tinha a alma fechada ao consumo. Hoje não: hoje fui espreitar e sabia que ia predisposta ao vício. Encomendei cinco livros e, para rematar, ainda aceitei o gift por 1€. Escolhi um sabonete literário. Não o usarei para lavagens mas, se cheirar bem, para pôr algures no quarto. Um quarto com cheirinho a sabonete parece-me o suprassumo da leveza lavadinha.
Mas o pior da minha recaída nem foi isso: no outro dia fui trabalhar presencialmente. Cheguei a casa mais cedo do que antes chegava. Presencialmente não trabalho tanto. As pessoas vêm conversar, querem saber coisas, dar opiniões, falam, falam. Mostro-me disponível mas, por dentro, contabilizo a improdutividade. Em casa, é trabalho de seguidinha. Vim, portanto, mais cedo. Pensei: vou para casa, pôr o trabalho em dia. Mas, a caminho, ao passar pelo supermercado, deu-me vontade de ir olhar para as prateleiras, com tempo, sem ninguém a puxar por mim. Então, trouxe três vasinhos com suculentas e, não contente com isso, vi uma blusinha na promoção do dia que me pareceu um graça: algodão alinhado em verde azeitona. 7,99€. Tentei repescar o raciocínio do último ano e picos: 'Preciso?'. No 'novo normal' dir-me-ia 'Claro que não'. Mas agora a resposta foi: 'Que se lixe'. E trouxe a blusinha. E, no parapeito do escritório, tenho os vasinhos. O meu marido, quando chegou, ficou passado. Flores no parapeito..., coisa mais insólita.
A semana, uma vez mais, está sobrecarregada. Só que desta vez, aos trabalhos do costume, juntei outros que agora não vêm ao caso.
Há bocado, ao sentar-me aqui, adormeci. Tiro e queda. Isto resulta de ter acordado com um telefonema que me obrigou a puxar pelo raciocínio quando os neurónios ainda estavam em posição fetal, sonhando com coisas boas. Todo o santo dia o sono me agarrou pelas pálpebras, puxando-me para o descanso, para a horizontalidade.
Por isso, agora estou aqui que não posso. Há os que não me compreendem e, quando lêem isto, saltam para o meio da rua, mão na anca, para me gritar: mas, ó mulher!, então porque é que escreve? E eu dou a resposta de sempre: porque sim, porque gosto, porque me descansa a cabeça, porque os dedos gostam de dançar sobre o teclado mesmo quando os olhos já dormem.
Queria escrever uma coisa toda pipi, toda misógina, mas o tema puxava para o meu lado may west e isso não é compaginável com a pancada de sono com que estou. Mas me aguardem que guardado está o bocado para quem o há-de comer.
Ao fim do dia, enquanto andava a telefonar à minha filha e à minha mãe, tirei fotografias em especial aos brincos de princesa que adejavam ao sabor do vento.
Andam todos poéticos por aí e eu estava também a pensar que haveria de homenageá-los, em especial por um dos mais belos textos que ultimamente tenho lido. Cécias, o vento. Uma maravilha, uma maravilha. Já para não falar de quem, homenageando a repórter da natureza, teceu mais uma das suas múltiplas belas peças em que se adivinha o rasto da sua perdida penélope. E fotografei umas flores lindas que apareceram do dia para a noite para oferecer a quem ousa despedir-se da sua darling, deixando um rasto de decepção, um caminho que parece manchado de sangue.
Mas hoje não é o dia para nada disso. Ainda por cima, recebi há pouco um mail que me deixou verde. Verde no mau sentido, claro. Tive vontade de soltar os cachorros, de partir a louça, de bater com a porta. E só pensei: misógina o escambau, deveria era arranjar uma mulher para o lugar dele. Uma mulher pode ser pérfida ou burra mas tem sempre os pés na terra e mãos para amassar a massa. Quando um homem é burro é mil vezes pior, é um atraso de vida. Mil vezes o tenho dito: se mais mulheres houvesse em lugares de poder, o mundo seria outro, muito melhor. Os homens, se são poucachinhos, não atam nem desatam, mastigam mas não engolem, não dançam nem saem na pista, não procriam nem saem de cima. Um castigo. Este que me enviou o mail que me tirou do sério é daqueles que mesmo que se fossem dez iguais a ele fariam dez vezes menos do que uma só mulher, fosse ela como fosse.
Portanto, apesar das minhas boas intenções, deixo as boas ideias para um dia em que consigam espraiar-se à vontade e à vontadinha. Hoje, agora, vou mas é pregar para outra freguesia.
Ele contou-me que, quando o outro falou em Tordesilhas para lhe dizer que de um lado estava ela e, do outro, todas as outras pessoas, ela lhe respondeu: obrigadinha por me deixares aqui sozinha, longe de todo o mundo, obrigadinha.
E depois, como o outro não percebesse, que ela foi ainda mais directa: não queres pular a cerca e passar para o lado de cá...?
Mas que o outro, que é mais dado a subtilezas, sorriu e disse que ela não sabia era nada de história.
[A partir dos escritos de Mister X que, andando numa de veraneio em regime de bar aberto, logo ali que abordou o tema das Tordesilhas, o deixou trancado. 😎]
Tenho ideia que ouvi dizer que a lua está vermelha, tingida de sangue. Olho-a e vejo-a branca. O céu espraia-se em branco derramado sobre o rio. Estive à janela a ver a via láctea espelhada no tejo. O céu translúcido. Nem um pingo de sangue. Se calhar ouvi mal. Acontece-me estar a ouvir música na rádio enquanto atravesso a cidade e ir no meu comprimento de onda, pensando palavras, se calhar imaginando outras.
Por vezes, quando chego ao meu destino, tento lembrar-me do que ouvi e do que pensei e, geralmente, nunca me lembro de nada. Acho que as palavras e a música que ouço se esvaem de mim e que as palavras que se vão juntando dentro de mim também se evadem, sem deixar rasto.
Olhei a lua durante parte do percurso: aqueles pontos brilhantes que se unem através de segmentos muito finos, uma geometria elegante -- tudo quase branco. Nem róseo, muito menos sanguíneo. Finíssimos desenhos em branco na face visível da lua. Sou muito ignorante mas sei que sou pelo que pensei que já deveria ter ido tentar saber o que há do lado de lá, no lado oculto, no lado B, mas não sou só ignorante, sou desinteressada do que me parece escuro e meio triste. Prefiro outros fragmentos e colagens. Poeiras lunares numa paisagem desolada, escura e fria, não é a minha praia. Xodós, lamentos, cantos, poemas destilados, bilhetinhos de amor -- isso sim, eu gosto, espero sempre por mais. Escritos por todos os apaixonados ou apenas por um, tanto me dá.
Mas, enfim, não sei da lua senão que é branca, doce, e que ilumina com leite e mel os corações enamorados e que chama pelos amantes. Coisas assim, poéticas, sem utilidade outra que não a de fazer a gente sentir a alma mais humana, mais frágil, mais abraçada.
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Portanto, para concluir, posso é dizer que, se a lua não é branca, encarnada também não é. Fotografei-a de longe e de perto e confirmei: não lhe corre sangue nas veias nem a face visível está ruborizada. White ou quase white. Blanche. Mas dizer que está de um branco lunar não apenas é redundante como pode não ser correcto. Ponho-a, então, azul e trago aqui a outra blue moon. E chamo pela vossa companhia. Fiquemos aqui a contemplar as águas do rio, a ouvir os acordes cheios de noite.
E posso ainda acrescentar um outro pequeno despropósito: já converti em acto o presente da massagem que recebi pelo Natal. Entrei num lugar de luz verde, de vegetação tranquila e verde, de água a correr numa fonte, de música de aragem a dançar entre bambus, harpa, piano, sons muito límpidos.
No gabinete quase não havia luz, apenas uma luz muito levemente coada sobre o leito. E umas velas, perfumadas, num canto. E fui mandada despir-me toda. Toda? Toda, e fios, brincos, anéis. Recebi uma tanguinha de papel e deitei-me. E ao longo de uma hora, umas mãos cobertas de óleo foram percorrendo todo o meu corpo, ora com suavidade, ora com intensidade. Não sei se a música foi cambiando. Estive de olhos fechados e sem ouvir nada, sem dizer nada, entregue apenas à sensação boa de umas mãos percorrendo o meu corpo. Quando acabou, deixei-me ficar. Tinham-me avisado: não se levante logo. Por isso, fiquei. Noutro comprimento de onda, descontraidíssima. Saí de lá a flutuar.
E agora vou outra vez pôr-me à janela a contemplar a blue moon sobre o rio.
Verão de 2007. Portugal estava a banhos e descansava sobre um crescimento económico de quase 2,5%, a que se juntava o défice abaixo das exigências de Bruxelas e uma dívida de 68% do PIB.
Do lado de lá do mar, o sentimento era outro. O Lehman Brothers mostrava os primeiros sinais de instabilidade. Ainda assim, ninguém fez grande caso, até o banco apresentar perdas de 3900 milhões, deixando os mercados em estado de sítio. O resto da história já sabemos. O fim da bolha do imobiliário norte-americana deixou o sistema europeu em apuros, secou o financiamento à atividade económica e obrigou a gigantescos resgates com dinheiro dos contribuintes. As economias periféricas, mais frágeis, foram as primeiras a cair, assim que a loucura dos especuladores chegou às dívidas públicas. Sob a pressão das agências de rating, o financiamento dos estados ficou insuportavelmente caro, precisamente no momento em que era mais necessário. E, tudo isto, sob o olhar parado e indiferente do todo-poderoso BCE.
Passaram oito anos. Com desemprego, pobreza e recessão, os países periféricos pagaram o facto de serem a economia errada, no momento errado, no sítio errado. Promessas foram feitas: os mercados seriam controlados. Mas, desde então, o BCE injetou milhões de milhões de euros num sistema financeiro que continua demasiado endividado, forrado de ativos tóxicos ou desvalorizados pela crise prolongada na Europa. Crise europeia que, diga-se, o desempenho das economias emergentes já não consegue mascarar.
Eis agora que o maior banco alemão, o Deutsche Bank, aparece a anunciar perdas de 6000 milhões de euros, sabendo-se que detém derivados no valor de 65 triliões, umas vinte vezes o PIB alemão. E que foi condenado a pesadas multas por manipulação de mercado. Perante isto, tudo isto e mais a crise dos refugiados, o perigo da extrema-direita e a eventual saída do Reino Unido da União Europeia, o ministro das finanças Alemão, Wolfgang Schäuble, não encontrou melhor explicação para o "nervosismo" dos mercados do que o Orçamento do Estado português, o tal que se atreveu a fazer valer, ainda que timidamente, um pouco de autodeterminação.
Isto já só não espanta quem tiver deixado de ver para além da pequena gaiola onde nos enfiaram com a história do "portem-se bem, a culpa é toda vossa, viveram acima das vossas possibilidades". Uma Europa lamentável e, acima de tudo, muito triste.
O senhor Wolfgang olhou para a neve que lhe tapava a janela do quarto e ainda assim sorriu. Estava feliz. É certo que tinha que se ralar com a impopularidade da chefe do seu acolhedor país, com uma cratera nas contas do maior banco do seu impoluto país, com a perda de encomendas no maior fabricante de automóveis do seu regrado país. Mas ao menos hoje, pela saúde da águia, ao menos hoje não tinha que se preocupar com os juros da dívida pública daqueles calaceiros do sul. O senhor Wolfgang estava tão radiante que até saiu em roupão para atirar bolas de neve aos passantes, com os olhinhos a cintilar por trás das astutas lentes.
E claro que podia juntar mais literatura de apoio como, por exemplo, O regresso dos gémeos tóxicos das finanças europeias da autoria de Wolfgang Münchau (a que fui parar através do Vida Breve). Mas, para já, acho que chega. Contudo, se os papagaios avençados das rádios, televisões e jornais precisarem de mais, disponham: estou aqui para ajudar.
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E caso queiram saber o que acho do apoio que António Costa deu ao Carlos Costa no sentido de, caso ele precise, lhe dar um little empurrão já que ele, pelos vistos, não tem força anímica para de lá se desalapar, queiram, por favor, descer até ao post já a seguir.
Nesta fotografia a deputada do CDS até está muito compostinnha. Agora, na AR, estava um despropósito. Uma autêntica Miss Piggy mas em versão debochada
Sobre os dislates provocatórios que a senhora Deputada Teresa Caeiro lançou na direcção das bancadas da esquerda, sobre as expressões, sobre os trejeitos que, vistos na televisão, pareceram alarves, só posso dizer que é uma pena que haja deputados que exerçam assim a sua função.
Não vou aqui reproduzir as vacuidades que proferiu porque acho que estaria, eu, a prestar um mau serviço à democracia evidenciando a fraca qualidade de alguns deputados.
Sóbria e acutilante esteve Heloísa Apolónia. E enquanto a ouvia, a desorbitada Teggy continuava rebolando-se no seu folguedo pseudo-argumentativo.
A direita está passada dos carretos, fora dos eixos, parece que tudo o que aquela gente diz revela que não está na plena posse das suas capacidades mentais. Um despautério posto em marcha a toda a hora - mas em roda livre. E Teresa Caeiro, do que vi, foi na AR, ontem,o expoente desse desconchavo.
Quanto ao que lá se passou, limito-me a deixar aqui o link para uma das notícias e a dizer que acho bem o resultado da votação porque o mal que uma mulher sofre quando aborta é um mal maior e grande parte das mulheres que o faz, faz, em sofrimento, porque não tem condições para dar uma vida digna aos filhos. Fazê-la pagar uma taxa moderadora, a menos que prove que não pode pagar, é impor-lhe um sacrifício escusado, gratuito, uma coisa mesquinha que revela ausência de compaixão.
Os que são contra a chegada dos refugiados, encontrarão nos atentados motivos de validação das suas posições; as fronteiras no espaço europeu ir-se-ão fechar, definitivamente; os que fugiram de um dia a dia, nos seus países, idêntico aos horror que ontem se viveu em Paris, continuarão a morrer aos milhares na travessia do Mediterrâneo ou no trajeto por terra; se lá permanecerem, provavelmente morrerão também — porquê ficarem?; os bombardeamentos irão aumentar na Síria, no Líbano, no Iraque; os que sobreviverem a tudo, sobretudo os mais jovens, só conhecerão como horizonte a vingança, o ódio, o desespero, a violência — não terão qualquer perspetiva de educação, de futuro, de normalidade em países inteiramente arrasados. Sem modo de vida na sua terra, traumatizados por anos de guerra (alguém fará ideia do que será crescer em Aleppo?) que farão? Que adultos se tornarão? Onde, e quando, se irão fazer explodir?
Eu penso em você, minha filha. Aqui lágrimas fracas, dores mínimas, chuvas outonais apenas esboçando a majestade de um choro de viúva, águas mentirosas fecundando campos de melancolia,
tudo isso de repente iluminou minha memória quando cruzei a ponte sobre o Sena. A velha Paris já terminou. As cidades mudam mas meu coração está perdido, e é apenas em delírio que vejo
campos de batalha, museus abandonados, barricadas, avenida ocupada por bandeiras, muros com a palavra, palavras de ordem desgarradas;
(...) e penso em Paris que enfim me rende, na bandeira branca desfraldada, navegantes esquecidos numa balsa, cativos, vencidos, afogados... e em outros mais ainda!
Isto não aconteceu em França, aconteceu-nos a nós e à nossa maneira de viver. Isto é connosco, os que podemos escolher se nos apetece ou não crer num Deus e, escolhendo crer, podermos optar pelo Deus que mais nos convém, isto é connosco, que escolhemos gastar o nosso dinheiro em livros, em todos os livros, a conhecer outros mundos ou a dançar tango, olhando nos olhos as mulheres com quem dançamos. Isto é connosco, os que não temos medo do que ainda não conhecemos nem dos que não pensam como nós ou não fazem como nós, os que aceitamos as diferenças porque serão sempre as diferenças que nos inspiram a avançar, mais sábios e mais capazes, os que não têm medo de véus nem de barbas compridas nem de livros estranhos nem de quem nos vem tirar os trabalhos que nunca quisemos ter, os que não precisámos de Paris para saber de que fogem os refugiados.
(...) O Estado Islâmico foi o grupo terrorista que mais foi apreciado pelo Ocidente, ajudou Israel a livrar-se do seu grande inimigo e, muito provavelmente, a anexar definitivamente os Montes Golan, daí que sejam muitos os que apontem o dedo à Mossad. Ajudou a Turquia a matar curdos e xiitas. (...)Os inimigos do Irão, da Rússia ou da Síria, do Hezbollah ou dos palestinianos são amigos do Ocidente, de Israel, da Turquia e da Arábia Saudita. Desde que as coisas não passem para a comunicação social podem matar indiscriminadamente, podem matar livremente os alauitas e curdos na Síria, podem fazer desaparecer os Houttis do Iémen, podem eliminar xiitas na Síria, Iraque, Líbano, Israel.
Recordo-me de ver os mesmos chechenos que hoje são os mais extremistas entre os extremistas do Estado Islâmicos serem recebidos na Europa Ocidental como democratas e libertadores vítimas da tirania russa, os fascistas ucranianos que querem fazer desaparecer culturalmente quase metade da população ucraniana e que tiveram um passado de apoio ao nazismo serem agora aclamados como grandes democratas
Só que os terroristas são mesmo terroristas e não hesitam fazer como a aranha Viúva Negra, não resiste à tentação de se alimentar do seu próprio parceiro. Os franceses não foram apenas vítimas dos terroristas, foram-no também de governos feitos de gente suja, para quem tudo vale. Isto é a versão em política internacional do mesmo a que estamos a assistir na economia e em todos os domínios da sociedade. Estas são as consequências da transformação da velhacaria em ideologia do Ocidente. (...)
(...) Em cada época, cada guerra é devidamente preparada para enlevar a população. Agora é Hollande, um político socialista, que acaba de afirmar que a guerra foi declarada a França. Espera-se mais uns milhões de contratos de armamento, uma expectável maior ousadia militar (sobre a triste figura feita pela França, leia-se o último número de Le Monde Diplomatique). Mais mortes a prazo.
E tudo isto acontece precisamente no mesmo momento em que terminavam as conversações em Viena, nomeadamente com a administração norte-americana e o governo russo, fixando um cessar-fogo na Síria, com um acordo de 3 páginas, prevendo um governo de transição de 3 meses e eleições em 6 meses.
As guerras podem ser paradas por quem as combate. E nós somos soldados sem o saber. Morremos como soldados, como peões adormecidos na nossa vida pequena.(...)
Serge Reggiani interpreta Les Loups Sont Entrés Dans Paris
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[As notícias que me chegavam à medida que eu ia escrevendo sobre os atentados de sexta feira, 13 de Novembro de 2015 em Paris, podem ser vistas no post seguinte]
Quando eu for grande, gostava de ter o poder de contenção, a precisão algébrica, a limpidez de escrita, a capacidade de investigação e de síntese que leva a, em meia dúzia de palavras, agarrar em mil pontas soltas que reconheço no autor do fantástico blog Xilre (a que, aqui na minha galeria lateral, chamo Livro de Horas).
Em tempos, num outro blog, li que o Xilre é um dos melhores blogs de homens, ou o melhor (já não me lembro), e achei isso tremendamente injusto porque, classificando-o dessa forma, parecia reduzi-lo ao género, uma coisa quase tão deslocada como dizer que Ana de Amsterdam é um dos melhores blogues de mulheres. Um blog que é bom, é bom independentemente do sexo de quem o escreve, especialmente quando se distingue pela qualidade da escrita ou quando aflora temáticas que não estão agarradas aos limitados temas supostamente específicos do sexo do autor.
Considero que um blog pode encaixar na categoria de 'blog de homens' quando grande parte do que escreve se dirige explicitamente ao sexo feminino, seja numa de galanteio, seja numa de provocação brincalhona (abundando, então, posts com títulos como, por exemplo: 'O problema das mulheres', 'aquilo de que as mulheres gostam', 'o que as mulheres não conseguem perceber', etc).
Ora o Xilre não é nada disso. Se, por vezes, ali se vêem descritos pequenos episódios do dia a dia ou referências culturais tantas vezes inesperadas e sempre gratificantes de ler, ou pequenos apontamentos poéticos, frequentemente haikus muito pessoais que certamente resultam de uma observação decantada do mundo ou das almas, e/ou uma cuidada e requintada selecção de pinturas ou músicas, é também ali que encontro das mais pertinentes, oportunas e bem fundamentadas reflexões sobre temas marcantes da actualidade.
Hoje li ali um post cuja leitura muito vivamente recomendo.
Sob o título Mestres dos Disfarces, o que ali se lê é o retrato a cru do que tem sido a actuação oportunista, prepotente e arrogante dos alemães tantas vezes em cima de práticas ilegítimas.
Transcrevo apenas a conclusão do post mas, repito, aconselho a sua leitura integral.
Wolfgang Münchau, do Financial Times, antevê: «a minha expectativa é que a VW seja mantida viva através de alguma combinação de ajudas ocultas ou visíveis por parte do estado.» Assim como já fomos chamados a salvar os bancos alemães, resta-nos saber quanto é que nos cabe na fatura das ajudas ocultas à indústria automóvel germânica. Ela chegará, não duvidemos, como a anterior. Só resta saber quando — e quanto.
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A pintura lá em cima é de Marc Chagall: I and the Village (1911).
Alfred Brendel com a London Philharmonic Orch. interpretam o concerto para piano "Emperor" de Beethoven
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E, se para aí estiverem virados, desçam um pouco mais que verão a escola onde os PàFs aprenderam a fazer contas.
Maçães partilha artigo que desvaloriza emoção com foto de criança morta
O secretário de Estado Bruno Maçães, dos Assuntos Europeus, partilhou hoje no Twitter um texto da revista britânica Spectator que trata como "pornografia moral" a difusão viral da foto de uma criança síria que surgiu morta numa praia turca.
Com o título "Choro, logo sou bom", Maçães partilha no seu Twitter um tweet com o link de um artigo de Brendan O'Neill intitulado "Partilhar uma foto de uma criança síria morta não é compaixão, é narcisismo".
No artigo, O'Neill desvaloriza a autenticidade de quem mostrou emoção com o caso partilhando de forma viral a fotografia - que hoje fez cobriu as capas dos jornais pelo mundo inteiro.
"Os meus filhos escorregaram-me das mãos", diz o pai de Aylan e Galip.
Família síria tinha feito pedido de asilo ao Canadá, que fora rejeitado. Mas saiu da Turquia numa tentativa desesperada de chegar ao outro lado do Atlântico.
A Europa era só um ponto de passagem, mas Aylan e Galip Kurdi, de três e cinco anos, nunca vão chegar ao destino. Os dois meninos curdos morreram ontem, quarta-feira, com a mãe, num naufrágio no mar Egeu, quanto tentavam chegar à Grécia. A imagem do corpo de Aylan na areia de uma praia da Turquia tornou-se o símbolo mais recente da crise dos refugiados da Europa. Mas o destino era o Canadá, do outro lado do Atlântico, onde os esperava uma tia.
O pedido de asilo tinha sido rejeitado, mas a família saiu da Turquia numa tentativa desesperada de chegar ao outro lado do Atlântico. Só o pai, Abdullah, sobreviveu. E tudo o que quer agora é voltar a casa, em Kobane, para enterrar a família.
O pai de Aylan e Galip à saída da casa mortuária onde estão os corpos dos filhos
"Os meus filhos escorregaram-me das mãos", disse Abdullah à agência noticiosa turca Dogan. "Tínhamos coletes salva-vidas, mas o barco virou-se subitamente, porque as pessoas se levantaram. Segurei a mão da minha mulher, mas os meus filhos escorregaram-me das mãos", explicou o pai de Aylan e Galip. Segundo o The Guardian, o comandante do barco entrou em pânico devido à força das ondas e saltou da embarcação para o mar, deixando Abdullah no comando.
Depois de o barco virar, o sírio ainda conseguiu segurar nos braços a mulher e os filhos, que já estavam mortos.
"Não queremos ir para a Europa. Só queremos que parem a guerra na Síria"
Refugiado sírio de 13 anos tem uma mensagem para os europeus.
Kinan Masalmeh tem 13 anos e é refugiado. Chegou à Europa com a sua irmã e, quando foi interpelado pela Al Jazeera sobre a mensagem que tinha para os europeus, não hesitou. "A minha mensagem é: ajudem a Síria. Os sírios precisam de ajuda agora", disse. "Nós não queremos vir para a Europa. Só queremos que parem a guerra na Síria".
Em 2011, a Alemanha exportou 5,4 milhões de euros em armamento, dos quais 2,3 mil milhões para países do chamado terceiro-mundo (Infografia: Der Spiegel)
«Duas opções restam à indústria de armas alemã, com os seus 80.000 empregos: ou se reduz, com a diminuição da procura, ou desenvolve novos mercados. Mas acontece que esses mercados são em regiões do mundo onde os ditadores estão em guerra uns com os outros, regimes religiosos financiam terroristas ou autocratas usam a violência para suprimir os seus próprios povos. Os mercados em maior crescimento estão no Médio Oriente e nas economias emergentes do Sudoeste Asiático ou da América do Sul.»
O resultado de tal estratégia de desenvolvimento de novos mercados é o que está à vista.
(Daqui. E, se me permitem, vejam também aqui - pois nos factos aqui referidos está, em parte, o fundo da questão)
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NB
E quem diz Maçães diz qualquer um dos outros que têm contribuído para que a Europa seja o bordel que é hoje, contribuindo para espalhar o mal por esse mundo fora.
(Maçães é apenas uma caricatura maior, uma coisa ao nível do absurdo, e ilustra bem o que são as criaturas ineptas que opinam, decidem, empatam, atrapalham e dão cabo da Europa e da vida de muita gente por esse mundo fora)
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A imagem que encabeça este post tal como a que o fecha fazem parte de uma série na qual artistas de todo o mundo reagem à dolorosa imagem de Aylan Kurdin, o menino morto na praia que não me sai da cabeça, um menino que saíu de casa todo arranjadinho para ir em busca de um futuro melhor.
No post abaixo já me insurgi contra o que se está a passar nas urgências dos hospitais do Serviço Nacional de Saúde. Há coisas que devem ser olhadas com a seriedade que elas merecem e a vida humana é, seguramente, uma delas.
Paulo Macedo deveria reflectir nisto, a contabilidade que ele gosta de fazer não deveria esquecer a contabilidade das mortes que decorrem da gestão do seu ministério. Passos Coelho, que parece que chefia o governo do qual Paulo Macedo faz parte, também deveria reflectir nisto. E Cavaco Silva, que supostamente estará a acompanhar a situação do país, não deveria ignorar o que se está a passar.
Mas, enfim, talvez tudo isto seja pedir demais a estes personagens. E, sobre isto, falo no post abaixo. Aqui, agora, a conversa é outra.
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No outro dia, uma das crianças, numa exposição, em frente de uma pintura abstracta, perguntava-me o que era aquilo. Respondi que achava que não era nada. Ele ficou admirado, como poderia alguém fazer uma coisa que não era nada? Disse-lhe que uma pintura não precisa de ser alguma coisa em concreto. Ou poderia ser uma parte de uma coisa de que só estávamos a ver essa parte e, por isso, não percebíamos. E, de facto, ele não percebia. Está habituado a fazer desenhos em que se lhe pede que represente qualquer coisa concreta: um barco, uma casa, uma árvore, a família. Disse-lhe que se pode pintar de uma maneira diferente da que se vê, que podemos pintar o que imaginamos. Ele continuou muito admirado.
Disse-lhe que, para fazer uma coisa tal e qual, mais valia fazer uma fotografia e que, mesmo assim, numa fotografia também se pode mostrar apenas uma parte do que se vê ou mesmo não se perceber o que é.
Gosto muito de Paul Klee e, tantas vezes, vá lá eu saber explicar o que é aquilo que ali se vê ou porque é que o fez daquela maneira.
À direita, Senecio, Paul Klee, 1922
(também chamado, com humor, Head of a Man Going Senile)
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A minha cor é psíquica — ele disse. E as formas incorporantes. (...) Mas eu vi latejar rudemente nos seus traços milagres de Klee. Manoel de Barros em Klee da Bolívia
Fiz copiar algumas das suas pinturas para azulejos para poder tê-las junto a mim.
Uma delas é de uma simplicidade desarmante, um anjo, ou um espírito, a servir um pequeno almoço. Não me perguntem porque é que eu olho para esse pequeno trabalho e lhe acho tanta graça - talvez a leveza, o humor, o desconcerto. Quis tê-la perto de mim, um espírito a andar por ali, in heaven, servindo leite, pão, fruta.
Eu levava as caixas com os azulejos pintados, marcava-os por trás, para que o senhor da aldeia que fazia estes trabalhos, ao aplicá-los nas paredes ou nos muros, soubesse a sequência e, para ajudar, deixava ainda um desenho com o esquema matricial. Ele ia lá fazer isso durante a semana e durante a semana nós não estávamos lá, era por esses esquemas que ele se orientava. Geralmente corria sempre tudo bem.
Contudo, quando aplicou este pequeno painel e eu lá cheguei, ao olhar para o resultado ia-me dando uma coisa: uma perna do espírito para cada lado, uma das pernas encostada à ponta de um braço, a asa nem se percebia que era uma asa, os pés em cima, a um canto, quase pegados um ao outro, tudo desligado - em suma, um desastre. Fiquei estarrecida a olhar para aquilo e, confesso, só me apetecia chorar. Não percebia como tinha acontecido uma coisa daquelas nem percebia como não tinha ele dado por aquele disparate. E não via maneira de tirar os azulejos para os aplicar da forma correcta sem os partir.
Quando o senhor lá chegou, mostrei o meu descontentamento. Eu olhava para o desenho e achava que se via bem que estava tudo mal e sentia-me mesmo triste com o absurdo que ali estava. Ele, muito admirado, disse-me que se calhar se tinha enganado e que tinha lá tido um cunhado a ajudá-lo e que, se calhar, o cunhado tinha percebido mal as orientações tendo-lhe passado os azulejos para as mãos virados ao contrário, não sabia, mas que aqueles desenhos dos azulejos que eu andava a trazer-lhe lhe pareciam tão fora de normal que achava que não se notava a diferença. Eu ouvia aquilo e não queria acreditar.
Há um pensamento em Paul Klee que sempre me comoveu, aquele onde diz que o visível é só um exemplo do real. A poesia seria então a intenção de revelar os aspetos da realidade que não são visíveis
Roberto Juarroz em Uma outra realidade
Mostrei-lhe a página do livro em que se via a pintura tal como ela era na realidade e ele olhou - e eu via que ele estava mesmo preocupado com o que tinha acontecido e com a minha tristeza - e com franqueza disse que eu não levasse a mal mas que o original não lhe parecia muito diferente do que tinha saído.
Juro, eu ouvia as palavras dele e também não queria acreditar. Como era possível? O que estava no muro e o que ele estava a ver no livro não tinham nada a ver... e ele achava que ia dar no mesmo ou que era indiferente? Eu mal conseguia falar tal a estupefacção e tal a tristeza que aquele erro me causava.
O meu marido nestas coisas o que quer é que não haja dramas e saíu-se com uma daquelas que lhe é típica: que assim até tinha mais graça. Mais uma vez eu não queria acreditar no que estava a ouvir. Lembro-me bem de ter ficado furiosa, parecia-me aquilo uma heresia da parte dele, estava a querer sacrificar uma coisa linda apenas para não ter chatices, era uma tentativa estapafúrdia para acabar com o assunto.
Mas a verdade é que, depois, conformei-me. A alternativa seria partir aquilo, mandar fazer outro painel e esperar que a coisa saísse bem. Mais despesa e mais tempo de obras.
Ficou assim. Agora, quando olho dá-me vontade de rir.
E já está o anjo, caseiro como um pão fraternal e seguidor até à morte.
O espírito que vagueia in heaven a servir chá e scones é um anjo psíquico, ainda mais surreal do que o genuíno, talvez nem Klee o reconheça quando o vê lá de cima.
É tudo tão relativo.
É como a poesia. Porque é que umas dúzias de palavras se tornam uma poesia? Não sei dizer. Pode nem ser uma ideia. Pode ser apenas um esboço de uma ideia, um fragmento, uma musicalidade.
Um pássaro preto.
Este domingo de manhã - uma manhã gelada, o rio agreste, rijo, as gaivotas doidas, soltando grandes gritos pelos ares - vi um pequeno pássaro preto sossegado na relva olhando as águas picadas. Preparei-me para o fotografar mas o vento interrompeu a sua meditação, voou, escondeu-se numa árvore, deixei de o ver.
Mas porque fico eu numa alegria sempre que vejo um pequeno pássaro preto no meio do verde? Não sei explicar. Sei apenas que aquele pequeno pássaro é um poema que me cativa e enternece. O que poderia eu dizer sobre ele? Não sei. Não saberia dizer muito mas, quando o vejo, sinto a liberdade de ser um pequeno pássaro preto na relva junto ao rio como se fosse ele.
Mas ouçamos agora as palavras de Wallace Stevens. Qual o sentido das suas palavras? Porque é poesia o que ele diz? Não sei dizer. Mas é. Oh, é. É mesmo.
Thirteen Ways of Looking at a Blackbirdde Wallace Stevens
(lido por Tom O'Bedlam)
A man and a woman
Are one.
A man and a woman and a blackbird
Are one.
The river is moving.
The blackbird must be flying.
It was evening all afternoon.
It was snowing
And it was going to snow
The blackbird sat
In the cedar-limbs
Um cedro in heaven, perfeito demais para ser verdadeiro
Blackbird por Herbie Hancock & Corrine Bailey Rae
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Paul Klee para quem não esteja muito familiarizado
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Luminosos os dias visitados pela cor, pela poesia, pela música, pelo inesperado, pelo afecto.
Luminosos os dias que trazem palavras inesperadas, formas desconhecidas, vozes que falam de pássaros ou de cedros, afinidades indefinidas, outras realidades, sorrisos que se adivinham em quem os recebe.
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Não é que me apeteça muito trazer para aqui temas desconfortáveis mas permitam que relembre que a seguir a coisa descarrila e falo do actual estado da saúde em Portugal. Não é tema que predisponha bem mas, enfim, caso queiram, é só descer até ao post já a seguir.
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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma boa semana a começar já por esta segunda-feira.