Quando comecei a trabalhar havia profissionais que, mais tarde, desapareceram. Por exemplo, havia codificadores. Mais tarde, as próprias pessoas escolhiam os códigos que, de entre a lista, melhor se adequavam. Na informática, que ocupava enormes 'salões', havia 'analistas' de diversos tipos, programadores e 'operadores de recolha'. Os diversos serviços enviavam diariamente montanhas de documentos que estes últimos 'recolhiam'. Aos poucos, a 'recolha' acabou pois os diversos serviços introduziam a informação directamente nos sistemas.
Dentro dos centros de informática propriamente ditos, espaços gigantescos, havia os preparadores que organizavam a sequência em que entravam os 'jobs' e, para a informação ser cozinhada, havia programas que 'corriam' de noite. E, de manhã, os estafetas distribuíam lençóis, 'pijamas', por todos os serviços - listagens enormes de papel às risquinhas com buraquinhos dos dois lados. Aos poucos isso foi saindo nas impressoras que estavam nos serviços e mais um conjunto de profissionais ficou sem trabalho.
Havia salas enormes com operadores de telex. Os serviços preparavam o que hoje seriam mails, os 'contínuos' levavam à sala dos telex's.
E havia a enorme sala de dactilografia. Só senhoras. Eram elas que 'batiam à máquina' cartas, relatórios, contratos e o que houvesse a fazer em letra de forma. Algum tempo depois, essas salas desapareceram.
Outra das salas enormes, enormes mesmo, era a da Contabilidade. As facturas dos fornecedores chegavam lá, eram contabilizadas em máquinas de manivela, e eram registadas e arquivadas em mais do que uma via.
Já mais recentemente, as facturas chegavam, alguém abria os envelopes, organizava-as e passaram a ser digitalizadas à chegada e, a partir daí, todo o processo passou a ser automatizado, com sistemas que transformam imagem em dígitos, com workflows para que circulassem por quem as aprovava, e, daí até entrarem directamente no sistema, eram um ai. Vários profissionais foram dispensados, claro. Posteriormente, a mudança foi ainda maior com os fornecedores a registarem directamente as facturas no portal que a empresa disponibilizava. E mais redução de pessoal, claro.
Fazer o orçamento da empresa e fazer o acompanhamento mensal, quando entrei, ocupava muita gente e era um trabalho terrível. Tinha que se recolher informação manual de todas as áreas e fazer infindáveis cálculos manuais. Fazer uma alteração implicava, frequentemente refazer todo o processo. O produto do orçamento era um dossier enorme, cheio de folhas datilografadas, que era distribuído pelas direcções. Mensalmente eram produzidos, em papel, relatórios com os desvios e as suas explicações bem como uma projecção dos impactos no resultado anual. Uma trabalheira que hoje dificilmente se imagina.
Aos poucos, os escritórios foram encolhendo. O que antes requeria edifícios gigantes com muitas centenas de funcionários ficou reduzido a um andar em que a maioria das pessoas já estava afecta a áreas mais 'nobres' como planeamento, investigação, inovação, qualidade, gestão de talento e coisas assim.
Fora dos escritórios a revolução foi também brutal. Os armazéns, por exemplo, antes fervilhavam de gente: uns recebiam o material, outros codificavam, outros inseriam as guias de entrada em dossiers e em folhas de registo para serem 'recolhidas' ou, mais tarde, directamente no sistema, isto depois dos codificadores catalogarem tudo. Depois havia os que arrumavam os artigos, outros que faziam inventários, outros que atendiam quem lá ia levantar artigos e, aí, faziam os movimentos inversos. Hoje poucas pessoas lá trabalham. Tudo está informatizado, automatizado.
E podia continuar mas o panorama seria sempre o mesmo.
Em cada um destes movimentos houve sempre alguém que foi sacrificado mas, vendo a posteriori, nada disto foi globalmente dramático pois as pessoas iam sendo 'reconvertidas', outras saíam com indemnização e arranjavam lugar noutras actividades. E isto era um processo gradual.
O que aconteceu nas empresas em que trabalhei, aconteceu em todo o mundo.
Mas não sei se a revolução que a inteligência artificial não vai ser mais disruptiva. Não a vejo como um interruptor -- hoje funciona assim e amanhã já é de outra maneira e, de um dia para o outro, saltam pessoas aos milhares -- pois as organizações levam tempo a assimilar as mudanças e a adaptar-se. Mas, assim que se inicie a migração para processos que incorporem a inteligência artificial, o movimento será irreversível e rápido.
Hoje ainda não sabemos dizer ao certo todas as áreas em que a IA vai mexer mas é só questão de começar. Onde ela entre, o movimento será imparável.
A nível caseiro, já a uso a toda a hora -- e já sinto que há um antes e um depois do ChatGPT. Dou um exemplo: contei no outro dia que a rega não tinha arrancado. Herdámos o sistema de rega com a compra da casa. Tem sido sempre uma aventura atinar com o seu funcionamento pois não ficou nenhum manual e, quando tínhamos jardineiros, cada um mexia à sua maneira, dizendo que tinha reprogramado. E havia noites em que regava em permanência, outras vezes arrancava de dia, em horas impróprias, outras vezes funcionava dia sim, dia não. Quando resolvemos que estávamos melhor sem jardineiros, esse imbróglio passou para nós. O incrível mundo das electroválvulas e das estações e dos programas passou para nós. O mal das coisas complexas e sofisticadas -- que dão para adaptar a tudo e mais alguma coisa e que permitem combinações de tudo com tudo -- é que descortinar o que está programado e o que se pode fazer sem fazer perigar todo aquele equilíbrio instável é um desafio. O meu marido é apologista da técnica de mexer o menos possível. Eu sou o contrário: eu sou de tentar perceber tudo e depois refazer tudo em consciência. Mas, antes, faltava-me o apoio técnico.
Até que chegou o ChatGPT. Agora fotografo o programador e coloco dúvidas. Ele reconhece a marca e o modelo e começa a interpretar o que vê. E vou seguindo o que 'ele' diz. Claro que ele não me diz tudo às primeiras pois é sabido que a maior ignorância é a que desconhece a dimensão da sua ignorância. Portanto, não pergunto tudo o que há para perguntar e, portanto, vou recebendo respostas que são apenas uma parcela do que há a fazer. Uma luta. Tentativas infrutíferas umas atrás de outras. Mas não desisto. Faço, fotografo o que diz o monitor, volto ao ChatGPT, volto ao programador, e assim sucessivamente. Neste momento, já estou mais perto de dominar a coisa. Ainda não estou lá, mas já vi a luz ao fundo do túnel mais longe... Claro que ainda não cheguei à parte a que provavelmente nunca me atirarei: a do aspecto físico da coisa, o das electroválvulas, a sua associação às estações respectivas. Mas, se calhar, até para isso, 'ele' me ajudaria. O que antes requereria um jardineiro especialista em sistemas de rega, agora está nas minhas mãos e nas do ChatGPT.
E quem diz isto diz interpretar um balanço e uma demonstração de resultados, apontando pontos críticos, áreas a requerer atenção -- e isto através do 'upload' de um ficheiro ou de fotografias. Isso ou interpretar análises clínicas ou relatórios de exames médicos. Ou fazer o upload de um livro, ou de um contrato ou do que for, e pedir um resumo, uma apresentação ou o que for. E o trabalhinho aparece imediatamente feito.
O impacto disto nas empresas, nos escritórios de advogados, na Administração Pública, na Investigação, na análise das imagens de exames médicos, em todo o lado..., vai ser imenso.
Claro que haverá sempre muitas profissões que não desaparecerão. Muitas. E novas profissões surgirão. Muitas.
Estudar o impacto, área a área, de tudo isto é imperioso: para programar a formação e as vagas por curso, para repensar a sociedade no seu todo. Se tudo for pensado e planeado, decorrerá sem sobressaltos de maior. Se nada se fizer, será um ver se te avias de crises, crises daquelas bem problemáticas.
A entrevista que o Anderson Cooper conduz com o CEO de uma empresas de Inteligência Artificial é interessante. Penso que é um tema que deveria ser trazido para a ribalta. Em vez de andarem mais do sete cães a um osso a ver quem diz mais mal do Gouveia e Melo mais valia que se antevisse o futuro. Com pés e cabeça. Com factos, com objectividade. Com gente que saiba e não com papagaios. Estou farta de papagaios.
AI company's CEO issues warning about mass unemployment
Anthropic CEO Dario Amodei tells CNN's Anderson Cooper that "we do need to raise the alarm" on the rise of AI and how it could cause mass unemployment.