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segunda-feira, setembro 18, 2023

Histórias de uma Colecção

 

Acordei de madrugada com a chuva e depois custei a readormecer. Mas, apesar de alguma dificuldade, lá consegui.

Quando acordei de manhã já não chovia. 

Começámos o dia ao ar livre. A caminhada foi boa. Cheirinho a terra molhada, chão fofo pela caruma amolecida. O cão doido com os cheiros, a parar de centímetro a centímetro.

Depois de anos esforçados, agora temos sempre a vontade de ficar a borregar em casa, sossegados.

Mas a minha filha perguntou no outro dia se não estamos a ficar mongas e essa pergunta deixou-me a pensar. Contei ao meu marido. Ficou arreliado. Não gosta de ser confrontado com umas certas verdades. O meu filho também está sempre a perguntar quando é que saímos, também acha que não devemos enclausurar-nos.

E, portanto, de certa forma sensibilizados com as censuras e apelos deles, resolvemos dar-lhes ouvidos e deixar de ficar aqui a ronronar no conforto e quentinho do ninho. 

Tendo a minha filha alertado para que esta segunda feira já seria o último dia da exposição Histórias de uma Colecção na Fundação Gulbenkian, resolvemos inverter a ordem dos factores a alguns compromissos familiares para não deixarmos a visita para a última. E, portanto, este domingo lá fomos. 

Soube-me que nem ginjas. E almoçámos por lá e comprei uns livros que são um mimo. Estou mesmo contente com os meus livros. A ver se amanhã mostro. E até comprei, imagine-se, dois ímanes para a parede lateral do frigorífico. 

E a exposição é extraordinária. Adorei, adorei, adorei. Muito boa.

E ao fim do dia voltámos a fazer outra caminhada. Uma energia mesmo boa. 

Deixo aqui algumas fotografias da exposição. Mas, acreditem, ao vivo é outra coisa e a amostra que aqui deixo não é seguramente a melhor. 

Se conseguirem, aproveitem. Vale mesmo a pena.


Para nos acompanhar na visita, Maria João Pires interpreta Clair de Lune, Debussy




















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Desejo-vos uma bela semana a começar já nesta segunda feira

Saúde. Ânimo. Paz.

sábado, março 18, 2023

Lucy

 

Tenho a informar que, certamente fruto da sessão de hidroginástica e da meia dúzia de braçadas de ontem, esta sexta-feira dormi até depois das onze da manhã. Nem mais. Acordei e vi as horas para avaliar se ainda era boa hora para dar meia volta e dormir mais uma ou duas horas. Onze e vinte. De penalti, desde que me deitei, às duas e pouco, até às onze e vinte. Se não tivesse visto as horas de certeza que o sono se prolongaria, o corpo pedia-me mais. Levantei-me com sono. 

De tarde, tanto era o sono, fui para o meu cadeirão reclinável, puxei uma mantinha, fechei os olhos e foi imediato, boa noite cinderela. 

Infelizmente o cadeirão está junto à janela de que o urso de guarda fez guarita. Assim, mal passa um carro ou uma pessoa ou mal o cão do lado se mexe, aí está a fera a ladrar como se não houvesse amanhã. Por isso, a sesta, se existiu, foi de minutos. 

E o dia foi completamente improdutivo. Uma ressaca a preceito como se um ontem tivesse sido um dia de excessos. Mal dá para acreditar.

Parece que continua um qualquer bicho dentro de mim a sugar-me a carga da bateria. Ando sem pilha. O olfacto e o sabor estão repostos, a tosse foi-se e só de vez em quando fico com algum pingo ou alguma sensação de estar como que a resfriar-me ou a começar a doer-me a garganta. Coisas breves, episódicas, mal vêm assim se vão. Agora esta falta de energia mantém-se. É uma estupidez sem explicação

Apesar disso, entre uma breve caminhada a meio do dia (na verdade, a seguir a ter tomado o pequeno almoço) e a do fim do dia, fiz mais de dez mil passos. Mas esta última, debaixo de vento e frio, foi feita a pensar no bem que ia saber-me a caminha daí por mais um bocado. E sinto as pálpebras pesadas como se estivesse com défice de sono. Dá para entender...? Não dá.

E o meu marido está na mesma. Continua a levantar-se cedo, mas, de dia, passa largos períodos deitado no sofá (hoje, por exemplo, a rever os penaltis do jogo de ontem e, provavelmente também a dormitar) e agora, depois de se ter deixado dormir há séculos, já foi para a cama.

Claro que não fomos ao ginásio. Constatámos o óbvio: é melhor deixarmos passar mais uns dias.

Caraças para esta falta de energia. 

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E depois do boletim clínico (sorry por abusar da vossa santíssima paciência), vamos ao que interessa. 

Lucy. 13 anos. Um talento increditável.

O cérebro humano, esse vasto universo desconhecido, é extraordinário. Dá ideia que, nos casos em que os recursos não são distribuídos como usualmente, em vez de se perderem, não: são alocados a outras zonas. 

O caso de Lucy (tal como, por exemplo, o de Kodi Lee), é ilustrativo dessa hipótese. 

Lucy também é autista -- autismo severo --, e cega. Ainda quase bebé teve que ser operada a tumores malignos nos olhos. Tem também algum atraso no seu desenvolvimento. E, no entanto, apesar de parecer viver isolada do mundo, tem um dom extraordinário. Toca piano de uma forma absoluta. Todo o seu corpo vibra. Não se consegue dizer se é ela que procura a música para se entregar ou se é a música que a procura a ela para a envolver e conduzir.

O professor de piano, Daniel Bath, descreve o peculiar e difícil método de ensino. Diz também que nunca trabalhou com ninguém tão talentoso quanto ela. Ele toca, ela reproduz. Ela engana-se, ele põe as mãos dela sobre as suas. Ela escolhe o que tocar. Ou Bach ou Chopin. Ou Debussy. Outras vezes jazz. Intercala. E improvisa. 

Vê-se e ouve-se e não se acredita. Muito comovente. 

Mika e Lang Lang, que fazem parte do júri, também se mostram surpreendidos e emocionados.

Para assistir com o coração.

Lucy 
Ao vivo no Royal Festival Hall na  final de "The Piano"


E abaixo um vídeo em que se percebe melhor

The Amber Trust  -- A história de Lucy


Um bom sábado
Saúde. Amor. Paz.

quinta-feira, setembro 03, 2020

Felicidade: o poder das pequenas coisas





As férias grandes este ano são curtas. Mas o dia de hoje foi um dia grande. Pelo dia em si e talvez também por ser um dos últimos dias de férias (este ano apenas são dez), foi não apenas grande como muito bom.

Fomos outra vez à praia de manhã e a minha filha e os meninos juntaram-se-nos. Areal extenso, mar lindo, bom tempo. Para o almoço juntou-se-nos o meu filho e respectiva família. A reunião é sempre motivo de alegria para todos e, em particular, para os meninos que se adoram. Ele trouxe frangos assados, arroz e batatas fritas. Antes, vindos da praia, eu e o meu marido passámos pelo supermercado e trouxemos sumos, pães variados (e se os havia bons) e gelados. Fruta e salada havia em casa. A minha filha trouxe um bolo que fez à noite. 

Portanto, mesa grande sob o toldo, cercados por buganvílias em flor. Conversa sempre animada, os meninos sempre em festa. Até me apeteceu cantar os parabéns a você mas ninguém achou que viesse a propósito. Só o bebé, que disse logo que apagava as velas.

Depois, uns em teletrabalho, outros em férias, os meninos na conversa, na partilha de informação sobre vídeos, sobre jogos, a andar de balouço, a brincar, a tarde foi decorrendo na maior tranquilidade. O jardim transmite serenidade, é muito verde, muito acolhedor. Estamos nele e sentimo-nos em paz, longe de qualquer mal.

Mais para o fim da tarde, o meu filho saiu com a criançada toda para um passeio de bicicleta. É uma coisa bonita de se ver. O bebé vai na cadeirinha da bicicleta do pai. Os outros quatro, cada um na sua. Todos de capacete. Um bando animado e colorido.

Passado um bocado, talvez mais de meia hora, não sei, passaram por casa para beber água. Cada um deve ter bebido um litro de água. Vinham encalorados, divertidos. E lá foram de novo. Passado um bocado regressaram, um dos ciclistas tinha dado cabo de um joelho. Mas, valentão, suportou bem a lavagem e tratamento. Depois foi o lanche. Iogurtes, sandes, pães de deus, sumos, bolo.

E estivemos a ver fotografias de cães que estão para adoptar. Já estamos nesta fase. Depois de, durante anos, eu ter jurado que não voltaria a afeiçoar-me a um cão para não passar pelo desgosto de que ainda não me recuperei quando a nossa canita se foi, já estou convencida a voltar a ter outro. Não sou muito de fiar nestas minhas juras -- é o que se conclui. Estou convencida... mas é um convencimento condicionado. Em abstracto, parece que já percebi que sim, voltarei a ter um amigo daqueles que é tão verdadeiro que tudo farei para nunca o decepcionar mas, em concreto, ainda me custa dar esse passo. Voltar a ter um cão a quem vacinar, tratar, que vai fazer disparates, na volta buracos na relva, necessidades onde não deve, de que não teremos vontade de nos separar quando formos passear, que transportaremos no banco de trás do carro e que provavelmente deixará o carro a cheirar a cão... é daquelas para a qual parece que ainda não estou psicologicamente preparada.

E, quando foi da nossa boxer, havia uns criadores onde uns primos tinham comprado o seu e fomos lá. Tinha pedigree, estava registada, sabíamos de que tamanho iria ser, conhecíamos o seu temperamento. Desta vez decidimos que, a termos cão, será um adoptado. Portanto, não há raça, não há pedigree, na maior parte das vezes não se conhece pai e mãe, não se sabe como será em adulto (se adoptarmos um jovem). Eu não quero com pêlo grande para não encher tudo de pêlo, não quero caniche, não quero esganiçado, não quero tipo galgo ou desses estrelicados. O meu marido quer de porte médio/grande ou grande e que seja um bom cão de guarda. Olhamos para as fotografias e hesitamos. Eu hesito porque receio dar este passo. Ele hesita porque fica na dúvida quanto ao porte e características do cão quando adulto.

Os meninos ficam entusiasmados de cada vez que vêem qualquer um, só querem que o vamos buscar, não vêem a hora de andar por ali a brincar com um cão. E não percebem estas nossas dúvidas.

Depois o meu filho e família lá foram. A minha filha ainda continuou por mais um pouco. Andei a varrer a relva e um dos meninos a ajudar-me, outro a ler o livro dos cães, ela a aproveitar os últimos raios de sol e a ler. E depois também foram.

Eu, ainda de fato de banho, mantive-me a ler o Narciso e Goldbum enquanto os pássaros passeavam e cantavam por entre as árvores. E assim fiquei até que a luz começou a escassear.

Agora que aqui estou de regresso a esta sala clarinha e acolhedora penso que não é preciso procurar muito para encontrar a felicidade. Ela está nas pequenas coisas, na companhia daqueles que amamos, no prazer do contacto com a natureza. É certo que falo de barriga cheia. Quem não tem saúde, quem não tem trabalho ou dinheiro ou condições para viver condignamente não poderá falar como eu falo. Mas eu acredito que, mesmo na adversidade, se conseguirmos contar com a companhia e o apoio dos que nos são queridos, se formos capazes de dar valor aos momentos de luz, aos sorrisos, ao aconchego, então conseguiremos vislumbrar alguns instantes de felicidade. Ainda que breve, a felicidade faz bem à alma. Sentimo-nos bem a viver aquele momento. Parece que a nossa existência se justifica nem que seja apenas por estar a viver aquele bocadinho de vida.
A table, a chair, a bowl of fruit, and a violin; what else does a man need to be happy?– Albert Einstein
A quiet secluded life in the country, with the possibility of being useful to people to whom it is easy to do good, and who are not accustomed to having it done to them; then work which one hopes may be of some use; then rest, nature, books, music, love for one’s neighbors.  Such is my idea of happiness.– Leo Tolstoy
It was only a sunny smile, and little it cost in the giving, but like morning light it scattered the night and made the day worth living.– F. Scott Fitzgerald
Happiness is not something ready-made. It comes from your own actions– Dalai Lama
Happiness is a warm puppy.– Charles Schultz
The art of creating intimacy cannot be bought by anything but time, interest and engagement in the people around you.- The Little Book of Hygge: The Danish Way to Live Well, Meik Wiking
True happiness comes from the joy of deeds well done, the zest of creating things new.– Antoine de Saint-Exupery
Life is not a problem to be solved. Just remember to have something that keeps you busy doing what you love while being surrounded by the people who love you.- Ikigai: The Japanese secret to a long and happy life,  -- Hector Garcia Puigcerver
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Todas as fotografias são de Steve McCurry e ilustram o seu último post, Happiness: The Power of the Ordinary do seu Steve McCurry Curated, post do qual também transcrevi as citações. Tudo ao som de Debussy interpretando o seu Clair de Lune, coisa que me é algo especial.
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Um dia muito feliz

terça-feira, junho 16, 2020

As casas dos escritores


La Villa Arnaga d'Edmond Rostand



La Maison d'Émile Zola

Já aqui falei várias vezes: tenho esta coisa de que, um dia que tenha tempo, hei-de sentar-me a escrever, a escrever a sério. Histórias, guiões, romances, cartas, macacadas, o que me der na bolha. Tudo menos poesia que a poesia pede recato e eu sou tudo menos recatada, pelo menos a escrever.

Para escrever a sério preciso de saber que consigo mergulhar no espírito da coisa e lá ficar até adormecer. Por isso, só escrevo de noite, quando sei que não haverá nada que possa interromper-me. De dia, em especial neste regime de teletrabalho em que tenho conseguido aguentar-me (vejamos até quando), não consigo escrever. Sabendo que a qualquer instante pode chegar mail a requerer resposta urgente, telefonema ou meeting dentro de pouco, não consigo que a mente se encarreire para aqueles caminhos em que deixa de receber ordens e em que fica por conta própria, as mãos descomandadas.

Le Château de Monte-Cristo d'Alexandre Dumas

Mas se preciso de tempo e sossego, há outra coisa de que também preciso mesmo. E disso também já aqui falei.
Repito-me, repito-me. Há tanto tempo a escrever aqui todas as noites que não consigo inventar coisa para ser todo o dia um enredo diferente. Repito-me, pois. 
É que preciso de um lugar especial. E esse lugar eu ainda não encontrei. Tem que ser lugar amplo, mesa grande e vazia, só uma jarrinha pequena de flores frescas. Talvez, em vez de jarra, um vasinho com uma orquídea. Nunca tive orquídea. Acho que tenho receio que não se dê e que, com isso, me traga desgosto. Mas a mesa grande deveria estar ao pé de uma janela. E ao pé deveria ter música. A música inspira-me.

La Maison de Balzac

Só que ao dizer tudo isto percebo que tudo são dificuldades. Que mesa? Deveria ser uma mesa rectangular, branca. Mas não a tenho nem tenho onde uma mesa assim ficasse bem. Nem sei já onde ouvir música. No computador, spotify, cenas dessas? Aqueles meus cds todos com sinfonias, concertos, jazz e blues, alguma vez os voltarei a ouvir?  Onde? Ou ter um pequeno rádio onde possa ouvir a antena 2? Mas ainda haverá rádios à venda? 

Tudo me parece difícil, intransponível. Uma logística impossível.

La Maison de Louis Aragon et Elsa Triolet

Penso também que deveria ter, por perto, um sofá macio ou cadeirão de reclinar para fazer uma pausa quando a cabeça pedisse descanso. Talvez num lugar onde entrasse a luz da tarde que é dourada e me envolve a alma em paz e emoção.

E há mais dificuldades: qual a hora do dia e o que fazer com os afazeres, como garantir a capacidade de conciliar com a culinária, a jardinagem, os telefonemas e os cuidados com a família.

E isto para não falar na cadeira. Não sei qual a ideal. Já experimentei várias e nenhuma é suficientemente neutra para não ser tema. Na escrita nada mais pode ser tema senão as palavras.

Mesa e cadeira: dois pontos chave no desbloqueio desta minha inibição. Uma vez arranjei uma secretária que achei que tinha tudo a ver. Uma secretária antiga, de nogueira, tampo de pele verde, gaveta grande a meio, gavetas dos lados. Para começar, pus um vidro espesso em cima. Tive medo que alguém sujasse ou rasgasse a pele. Depois não é confortável. O espaço para as pernas é um bocado apertado e volta e meia dava com a parte de cima da perna numa das esquinas das gavetas. Não. Falta-lhe largueza, simplicidade, silêncio. Teria que ser um espaço branco, silencioso. A música também deveria ser silenciosa, mais espaços do que notas. Claridade, o perfume da relva cortada ou das flores a vir da rua, os passarinhos a cantarem, a luz a vir pousar em mim.

La Maison de George Sand

Tudo muito difícil. Não sei como é que há tantos escritores. Se eu, mesmo só para me armar em pseudo, não consigo reunir as condições para, como é que os outros, os verdadeiros, o conseguem? Sou eu que sou picuinhas, cheia de esquisitices e nove horas? Se calhar sou. Se calhar os escritores de verdade pegam num guardanapo de papel e, mesmo no meio da confusão, constroem um personagem. Se calhar é isso. Não tenho alma de -- porque, sendo como sou, com tanto escolho, não sei como é que algum dia poderei dar largas a esta minha vocação escondida. 

E toda esta conversa para dizer que, tendo hoje o dia sido mais calmo, em vez de aproveitar a agenda mais bondosa e tentar a arte, não senhor. Ao fim da tarde, peguei na máquina e fui fotografar o mesmo de sempre. Depois fui pôr-me a cuscar cenas. E, logo a abrir, dei com uma que me agradou bué. Les maisons d'écrivains à voir en France. D'Émile Zola à Colette en passant par Victor Hugo et Jean Cocteau, tour d'horizon des plus belles maisons d'écrivains à visiter en France cet été.


La Maison de Jean-Jacques Rousseau à Montmorency

Até me deu vontade de me meter no carro e ir por aí, em passeio -- e o que eu gosto de passear de carro -- a conhecer a casa deles para perceber como é que tinham resolvido tamanha quadratura de círculo. E, agora que o escrevo, penso que, na volta, poderia era organizar um passeio assim pelas casas dos nossos escritores. Será que há várias abertas aos cuscos como eu?

La Maison de Marcel Proust à Combray
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Marnie Laird interpreta Clair de Lune de Claude Debussy e escolhi esta interpretação de uma música que me é cara por vários motivos, alguns dos quais muito poucos óbvios, sobretudo pelo décor. É que esta é outra: o meu sonho é poder ter uma área da casa coberta de livros, do chão quase até ao tecto, estantes brancas ou de cor neutra, um lugar a preceito. Hoje tenho estantes de várias nações e quase todas escuras. E até gostava de ter uma escadinha deslizante. Mas isso já seria um preciosismo.

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E uma boa terça-feira.

quarta-feira, janeiro 22, 2020

Oh pah... digam-me o que é isto....


E eu a gabar a presciência do algoritmo do YouTube. Está bem, está... Ou, então, está mesmo bem. Tem-me na conta de uma pírulas da cabeça e, se calhar, até sou. É que abri para perceber que coisa mais mirabolante era aquela e, quanto mais via, menos acreditava no que estava a ver e, menos ainda, que continuava a ver.

O que se passa é que, na volta, sou ainda menos preconceituosa do que penso que sou. É que, na ideia que tenho de mim, bastava ver o outfit para intuir que dali não saía coisa de jeito e bye bye maria odete. Mas eu, na realidade, pelo que constato, sou permissiva, tolerante, curiosa. Ou maluca.

Acho que nunca mais vou conseguir ouvir o Clair de Lune sem pensar nesta virtuosa pianista em alvos trajes menores, com uma rosa a aflorar-lhe os lábios, depois numa pose absurda, rodeada de flores, uma virgem sem tirar nem pôr. Tudo de um kitsch inenarrável. Quase dá vontade imaginá-la como deputada, uma cicciolina reciclada. Talvez deputada do Livre. 

Lola Astanova, a musa, interpreta Clair de Lune


Até já

sexta-feira, abril 12, 2019

Cinco obras de arte em dias destravados




Os dias desta semana andam-me desencontrados. Na terça-feira, quando fui fazer o euromilhões, convencida que era quarta-feira, preenchi apenas uma aposta para sexta-feira. À noite, às tantas, quando estava a ver as notícias, vi a chave vencedora do euromilhões e, espantada, fui confirmar: era mesmo terça-feira. Fiquei a sentir-me desfasada. Hoje, estava a combinar reuniões e a tentar encontrar um buraco na agenda para 'amanhã' e outro para sexta. A pessoa com quem eu estava a falar olhou-me e perguntou-me: 'Que dia é hoje?' e eu, estranhando a pergunta, pensando que ele é que estava desorientado: 'Quarta' e ele 'Quarta...? Pois. Era bom, era. Mas isso foi ontem'. Fiquei desconfortável. Ele, simpático, tentou que eu não ficasse a pensar que o problema era meu: 'Os dias andam a passar a correr'

Há bocado, estava a ver como vai ser amanhã e voltei a ficar baralhada: já sexta-feira? Já dia 12? Já a meio do mês de Abril?


Aliás, de manhã, no carro, liguei a um a perguntar-lhe o que se passava para ainda não me ter respondido a um mail no qual lhe pedia uma data para avançarmos para uma certa coisa. E ele explicou-me que está sem recursos, que não encontra gente, que já está a contratar gente no Brasil e que prudencialmente o melhor era apontarmos para daqui por um mês. E eu fiz contas de cabeça e vi que aquilo ia dar para depois de férias quando eu, a estas horas, já queria era ter despachado aquilo. E, depois de desligar, fui a rebobinar enquanto conduzia e a pensar em que é andei a ocupar o tempo para não ter dado pelo tempo a passar desta maneira. E a verdade é que tive alguma dificuldade.

Talvez seja que, com a idade, venha uma aceleração do tempo. E isso não é uma boa sensação.

A meio da tarde fui a uma reunião onde estava alguém com mais dez anos que eu. Muito bronzeado, muito tranquilo. Explicou que vive agora a maior parte do tempo numa quinta na Beira -- junto dos passarinhos, disse ele. Como cheguei atrasada, expliquei que tinha apanhado o trânsito cortado numa certa zona. Ele sorriu, disse que em Lisboa ja não usava carro há muito tempo. E toda a sua conversa foi de pessoa sem pressa, de pessoa que não deixa os dias assarapantarem-se, fugirem sem se dar por eles.


Agora, antes de chegar ao blog, abri os jornais e vi a fotografia de um velho de cabelos brancos e longas barbas brancas. O título da notícia referia Assange e eu, desatenta, pensei que aquele era alguém que não ele. Noutro jornal vi a mesma fotografia. Olhei, então, com mais atenção. Percebi que era mesmo ele. E voltei a sentir-me a viver um jet leg agudo, como que sugada por um qualquer buraco negro. Pois se não há muito o homem ainda era relativamente novo, quantos anos decorreram sem que eu tivesse dado por nada para o homem já estar assim?

Serei só eu? O tempo está a andar ao seu ritmo normal? Só eu é que ando desfasada da realidade cronológica? Se calhar sou.

Enfim. 


Felizmente, encontrei um artigo que agora me alegrou: As cinco obras de arte mais espectaculares do mundo. Antes de deslizar pela página fechei os olhos tentando pensar em obras de arte espectaculares para ver se algumas coincidiam com a selecção de Claire Beghin. Depois fui ver. Zero. Aliás, das cinco, apenas conhecia Puppy de Jeff Koons, esta aqui acima, mas, na verdade, nem me ocorreu. Na altura, quando estive ao lado dela, fotografei-a de vários ângulos, acho que até tenho uma fotografia com ela atrás, coisa rara pois nunca apareço nas fotografias. Achei uma coisa bem apanhada. Mas mais do que pensar nela como uma obra de arte, achei uma ideia engraçada, bem arquitectada, engenhosa. 

E agora tenho estado a saber mais sobre cada uma. De facto, todas me parecem espectaculares e gosto de todas. A primeira, a das sete montanhas mágicas de Ugo Rondinone, já está a dar-me vontade de chegar lá ao meu little heaven e empilhar pedras e pintá-las. É o tipo de coisa que me traz alegria. 

Também achei fantástico o nome da aranha de Louise Bourgeois: Maman. Disse a autora que a obra era uma ode à mãe, a sua melhor amiga. Que associe a imagem de uma aranha à mãe e a uma pessoa muito amiga parece-me curioso.

A escada para o infinito, Diminish and Ascend de David McCracken, também é o máximo. Houve uma altura que me dava para meter escadas que não levavam a lado nenhum no meio das minhas pinturas. Não sei porque as fazia. Apareciam ali. Esta escada também me parece uma ideia fantástica. Parece que as gaivotas se espetavam no bico em que termina (acaba em bico, justamente para, através de ilusão óptica, parecer que acaba no infinito) pelo que agora o substituiram por um material menos rígido.

Mas a minha preferida é esta aqui abaixo. Celestial Vault de James Turrell. Acho uma ideia maravilhosa. Um local para sentir a magia do espaço imenso, o céu, a luz, o vagaroso devir do tempo.


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E não sei se A mão no Arado vem a propósito -- o mais certo é não vir -- mas apeteceu-me tê-lo aqui


sexta-feira, março 22, 2019

Qual a palavra para dizer azul, silêncio, limpidez?





Nos outros, eu gosto de ler textos curtos, palavras soltas. Mas eu, quando me ponho a escrever, não sei ser contida. Falta-me um freio, falta-me um filtro, falta-me a sabedoria para destilar as ideias. 

É como na pintura. As que escolhi e comprei aqui para casa são neutras, claras, simples. Eu, se me ponho a pintar, desfaço-me em cor, incapaz de controlar a torrente.

Não sei que é isto em mim, este excesso. 


Por exemplo, agora estou com vontade de escrever sem ser por nada e gostava mesmo era de ser capaz de saber dizer palavras silenciosas, transparentes. Estou a escrever e a parar, a pensar, sem saber como escrever para que, quem leia, se sinta como se estivesse a contemplar, em silêncio, uma lâmina de gelo azul, límpida, perfeita. Pétalas de azul efémero.

Também gostava de saber falar sobre a paz. Não a impossível paz no mundo mas, sim, apenas, a paz entre duas pessoas talvez unidas por invisíveis e inconfessáveis laços feitos de palavras. Mas não sei. Acredito que seria preciso muito mais do que sei. Não sei alcançar as quimeras, não sei como aproximar-me do transcendente. Nem sei se a palavra transcendente aqui faz sentido pois desconheço as letras que deslizam, frescas, azuis, que se unem, que formam palavras puras. Afecto, luz, paz, água, azul, olhar, silêncio. Ou fogo.


Uma cama azul, infinita, amores perfeitos e intangíveis, palavras cegas, perdidas, procurando o gesto, o tacto, o remoto olhar. Soubesse eu qual a palavra, a única palavra, soubesse eu dizer pouco e numa única palavra guardar dentro o reflexo, a saudade, o sonho, o murmúrio, o fogo. Mas não sei.

Talvez a palavra amor.

Mas não sei.

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As fotografias mostram o gelo a quebrar-se no Lago de Michigan
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segunda-feira, novembro 27, 2017

"Nenhuma poesia é possível depois de Auschwitz"...?
Está bem, está.





Poderá alguma coisa tornar-nos incapazes de certas impercepções, de certas cegueiras ou tipos de surdez? Alguma coisa poderá tornar a imaginação responsável e imputável perante os princípios da realidade da existência humana em nosso redor? Essa é a questão.
(...) Uma das respostas possíveis é dizer que toda a nossa cultura se mostrou totalmente impotente e sem defesa, aliás, embelezou uma grande parte do assunto.
Gieseking tocava a integral da música para piano de Debussy durante as noites em que se ouviam os gritos das pessoas nos vagões de comboio selados na estação de Munique com destino a Dachau, nos arredores. Os gritos chegavam à sala de concertos. Isto foi registado. Nenhum testemunho sugere que ele não tenha tocado maravilhosamente bem, tão-pouco que o público não se tenha mostrado completamente receptivo e profundamente comovido.


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"Na base de cada grande obra de arte estão os escombros da barbárie"- Walter Benjamim

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Nenhuma poesia é possível depois de Auschwitz, disse Adorno.

Mas a história encarregou-se de o refutar. Desde logo Celan e Primo Levi, lembra George Steiner. Embora se tenham suicidado a seguir, refere ele.

Mas habituamo-nos bem ao mal dos outros -- essa é a grande verdade. E isto já sou eu a dizer. Temos, aliás, uma extraordinária capacidade para nem nos darmos conta do mal dos outros. Todos nós. 

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Já agora.
Relembremos.

Se isto é um homem - Primo Levi


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SalmoPaul Celan 

Ninguém nos moldará de novo em terra e barro,
ninguém animará pela palavra o nosso pó.
Ninguém.


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O texto lá em cima, em itálico, é um excerto da entrevista de George Steiner concedida à Paris Review em 1995, lida no 3º volume das Entrevistas da Editora Tinta da China.

As imagens representam Auschwitz. A primeira é da autoria de Bart Vromans e a segunda de Anne Berger

Walter Gieseking interpreta "Reflets dans l'eau" de Debussy

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Caso vos apeteça desanuviar, nada como uma caminhada por Lisboa. É só descer.

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sexta-feira, setembro 08, 2017

Clair de lune



Au calme clair de lune triste et beau,
Qui fait rêver les oiseaux dans les arbres
Et sangloter d’extase les jets d’eau,
Les grands jets d’eau sveltes parmi les marbres.


[Verlaine]


Je suis Clair de Lune. O efémero luar. O que ninguém pode possuir. O que não é senão um reflexo, uma ilusão. Um nome que não é nome. Tão nossa e, afinal, tão imaterial. Distante. Tão presente e tão de todos. E de ninguém. 

Nesta noite tranquila olho a lua por entre longilíneas árvores. Está dourada. Olho-a melhor. Tem pontos de luz. Quase cintila. Ilusão. Pura ilusão. 

Longínqua, sempre em mutação, indefinível. No outro dia em crescente, hoje já plena, esplendorosa. Olho-a. No luar que dela parece emanar encontro outros olhares, votos que se cruzam com os meus. Sonhos, devaneios. 

Logo, logo vai começar a desaparecer. Esconde-se. Depois ficará oculta. No entanto, sabemo-la ali presente, no escuro. 

Mas hoje está luminosa e encerra mil promessas. Um dia. Um dia. Ah um dia. Sim, um dia.

Estive na varanda. Está uma temperatura amena. Estivemos sentados na varanda, a beber um Porto e eu comi um bombom de chocolate. Às escuras, apenas a luz do luar. Silêncio. A lua é silenciosa e cheia de segredos. Secreta como a sua luz que não é luz mas que envolve em seda e ternura os amorosos olhos que a olham.

Clair de Lune. Je suis Clair de Lune.
(Faz de conta, claro)



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Fiz as fotografias da lua há pouco. À última puxei pelo contraste, pela luz e transformei-a numa abstração.

Quem interpreta Clair de Lune de Debussy (que foi inspirado pelo poema de Verlaine) é Kathia Buniatishvili.

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domingo, outubro 16, 2016

Stratus, cumulus, cirrus, nimbus


'A nuvem sobe, adensa, esgarça, desce' é um verso de Goethe (em tradução de João Barrento) de um poema dedicado a Howard Luke, o homem que conseguiu surpreender as formas dos seres mais instáveis, as nuvens, e encontrar para elas o nome certo. 'Que nuvens é que viste hoje?', pergunta a mulher. 'Stratus, cumulus, cirrus, nimbus', lenga-lenga encantatória, que se desfaz em humor infantil. 'Não', continua o homem, 'hoje só vi uns carneirinhos', de lã cardada, escreve Goethe, referindo-se ao destino de cirrus. Todos nós conhecemos este rebanho sem pastor.



Entre os antigos estóicos, os sentidos eram os mensageiros, os anjos, do nosso corpo.

Tal como os sentidos do nosso corpo, o mensageiro das nuvens está preparado para receber e manifestar de modo expressivo aquilo que recebeu: tendo bebido a água, deixa-a cair: ouro e pétalas.

Estamos diante dos segredos meteorológicos e cosmológicos que anunciam a preparação das nuvens no vórtice da tempestade, no grande reservatório das forças do todo que procuram a espiral do nosso olhar. Ao seu encontro chama-se vertigem.


Aqui, a água e o fogo parecem nascer da mesma fonte, em que ser atraído e ser expelido se confundem. Observam-se jogos entre grandes massas montanhosas. Porém, a necessidade que governa essas poderosas geometrias não apaga os vestígios da leveza que ondula nos tecidos e esvoaça nas fitas, na lançadeira inquieta. Talvez se lhes possa chamar o elemento atmosférico feminino.

Na interrupção que as colagens engendram percebemos as provisões que o tempo nos traz, arrasta e abandona.

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Excertos de Rebuçados Venezianos de Maria Filomena Molder, ed. Relógio d'Água

A Orchestra Filarmonica della Scala sob direcção de Claudio Abbado interpreta Nuages (nuvens) de Debussy

Fotografias feitas este sábado in heaven

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Desejo-vos, meus Caros Leitores, um belo dia de domingo.

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quarta-feira, agosto 31, 2016

Vi duas sereias no mar do Algarve. Juro. Vi mesmo.
[Mas como estava dentro de água não consegui fotografá-las]





Ora muito bem. Agora que já vos mostrei a bela vista que tenho da varanda do meu quarto e, de caminho, também o mar alteroso que, quando o vento o vira do avesso, chega a assustar e impede que uma pessoa possa nadar em paz, falo-vos de uma aparição.

Mas, atenção, não apenas não alucinei como o meu marido presenciou o mesmo que eu. Isto que vou contar passou-se. Mesmo.


Estava eu dentro de água, numa altura em que o desassossego do mar abrandou, quando vi duas raparigas de cabelos muito compridos chegarem à beira da água, enfiarem uma espécie de calças do que parecia ser uma lycra azul e verde mas com com uma única perna e com uma barbatana enorme nos pés: tal e qual a que o bacano da fotografia lá em cima enverga.

Fiquei perplexa. Sentadas na areia, enfiaram aquilo, depois arrastaram-se para a água e, quando atingiram boa altura, desataram a nadar com aquele movimento das sereias, ondulante. Logo deixei de as ver. Eu estava verdadeiramente estupefacta com tudo aquilo, até pelo desaparecimento delas.


Quando cheguei a terra, perguntei se o eu marido as tinha visto. Que sim. Igualmente admirado. Uma destas nunca tínhamos presenciado. E igualmente deixara de as ver e, tal como eu, estava intrigado.

Estive ali em estado de prontidão para as poder fotografar. Tempos e tempos. Nada.

Saímos tarde da praia. Pouca gente já. Alguns últimos intrépidos saíam da água e retiravam-se à medida que o sol começava a depôr armas sobre o mar antes de se incendiar.


Das sereias nada. Nem sequer ao longe as vimos, porque as procurávamos com o olhar de barlavento a sotavento. Nada. Não sei se mergulharam e foram até ao fundo do mar, se têm alguma gruta secreta onde se abrigam ou se foram a nadar até muito longe dali. 

E juro que não estou a fantasiar. Se as jovens sereias por acaso aparecerem por aí, nem que seja nos mares do norte ou do outro lado do mar, avisem-me, está bem?: quero fotografá-las.

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O sereio da fotografia lá de cima é Joshua Varozza.
A música é Syrènes de Claude Débussy.

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E, se descerem um pouco mais, testemunharão o meu especial agradecimento a dois Leitores francamente simpátcos.

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quarta-feira, junho 08, 2016

Cresçam como bons revolucionários





No outro dia perguntaram-me há quantos anos trabalhava eu. Nem referi os dois anos e picos em que dei aulas mas, ainda assim, um número obsceno. Comecei mal acabei o curso (que era à antiga, de 5 anos), tinha eu 22, já estão a ver.

A quantidade de anormais ou gente excelente, de lutadores ou capachos, de leva-e-traz ou escorreitos, de acomodados ou visionários, de bajuladores ou verticais, com que me tenho cruzado não vos passa pela cabeça. 

Nas minhas equipas também já tive de tudo.

Os submissos, engraxadores, perfecionistas ou chatos cedo devem perceber que a coisa não corre lá muito bem entre nós. Prefiro os que me mostram outros caminhos, os que ousam, os que não são de vergar (nem erante a minha impaciência ou teimosia).

Quanto a mim, perante os meus chefes, entre servilmente fazer de tudo para pisar o chão que o rei pisa ou andar à espadeirada no terreiro contra ventos e marés opto pela segunda hipótese.

Claro que há que ter inteligência emocional e gerir com inteligência os diferendos, embora sempre de forma frontal e leal. E, se necessário, não temer fracturas. Entre virar costas e seguir de cabeça erguida ou vergar a espinha e anular a opinião ou a vontade, opto pela pimeira. Se há coisa que me chateia é ir à luta, meter-me em trabalhos e, quando espero que alguns que sei que concordam comigo se coloquem do meu lado, os vejo de cabeça baixa, amedontrados, dispostos a ceder só pelo medo de perder. Passo-me, tamanha a decepção.

Contudo, há os de tipo oposto. Já tenho visto malucos que se afogam no seu próprio fel ou que, ainda a contenda não se fez anunciar, já eles estão aos tiros para o ar ou para os pés. Pensam que são uns valentes mas são uns tolos. Esses assim também não têm grande valor (digo eu, claro).

Nas empresas pode parecer que se dão melhor os pajens do rei, os bobos da corte, os cães que provam a comida. Fazem parte da corte que sempre cerca o rei. Mas a vida, ainda que por vezes tarde de mais, é justa: lá chegará o dia em que muda o rei.... e lá caem eles logo de seguida. E, quando chegam a casa e se vêem ao espelho, o que vêem? Ao princípio talvez se alegrem com a imagem de cortesão ou cortesã que o espelho lhes devolve mas, um dia, a lucidez abrirá caminho e será implacável. A partir desse dia, verão no espelho a imagem de uns pobres coitados, apenas invólucro.

Gente assim, quando nas empresas, levam-nas à atrofia e, portanto, também à atrofia da economia e da sociedade.

Têm ainda outras características em comum: sendo fracos com os fortes, são, em geral, fortes com os fracos. Facilmente desprezam os outros, facilmente fecham os olhos perante a injustiça (e dirão, com auto-complacência, que injustiças sempre as houve e que é impossível agradar a gregos e troianos).

Gente assim é perigosa.

Se tiver que optar, ponho-me ao lado dos outros, dos que arriscam, dos que lutam por ideais mesmo que as suas vidas não possam ser referidas como 'casos de sucesso'. Para além do mais, não dispenso a nobreza de carácter.

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Talvez até nem faça grande sentido, neste contexto, o vídeo que agora aqui vou colocar Ou talvez faça, sei lá.

Russell Brand lê a carta que Che Guevara deixou à mulher para que os cinco filhos a lessem quando ele morresse (antevendo, pois, que morrecia cedo): 'cresçam como bons revolucionários'

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As fotografias mostram lugares que, em tempos, foram grandiosos. Também gosto de fotografar a decadência. Li que, mais do que ruína ou desistência, a decadência é sinónimo de resistência. Mas é também a prova da vulnerabilidade, de que a grandiosidade é vã, efémera.

Obtive-as no Bored Panda.
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Lá em cima o First Arabesque, de Claude Debussy, interpretado por Stephen Malinowski.

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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma quarta-feira muito feliz.

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