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terça-feira, novembro 01, 2022

O grande Raminhos e o seu TOC

 


Volto à saúde mental. Uma expressão que muito me agrada é aquela de que o cérebro é a última fronteira. Nada sabemos do que o habita. Ou melhor, saber até sabemos. Mas não conhecemos inteiramente o que há para além do que se sabe. Isso não sabemos. E isso é muito.

  • Somos o que a nossa mente é? 
  • E a mente é o que o cérebro processa? Ou é o que é, independentemente das faculdades dos neurónios e das sinapses?
  • E se há ligações no cérebro que, por doença ou acidente, não estão a funcionar bem? Deixamos de ser quem, na verdade, somos?
  • É a nossa maneira de ser, a nossa personalidade, que se altera ou, simplesmente, há algo que tem que ser tratado?

Por felicidade minha -- felicidade ou sorte, não sei -- até hoje ainda não sofri de depressão, não sofro de distúrbios obsessivos compulsivos e, se sinto ansiedade, parece-me legítima e controlável. 

Mas conheço quem já tenha sofrido ou sofra destas perturbações. E sei como sofrem... Um sofrimento terrível, muitas vezes dúvidas sobre se alguma vez vão conseguir ter uma vida normal ou ser capazes de experimentar a felicidade. Ouço as pessoas falar: acordar já com ansiedade mesmo não sabendo exactamente porquê, ter medos, por vezes medos abstractos, indefinidos, medos incapacitantes. 

Ou ter ataques de pânico, crises que se confundem com quase-morte. 

Há algum tempo alguém me contava que tinha tido mais um ataque e que, estando em casa sozinho, com medo de estar sem ter quem o acudisse e medo que fosse um problema de saúde 'a sério', ataque cardíaco, por exemplo, saiu e foi para o carro. Assim, se sucumbisse, talvez alguém o visse e socorresse.

De pessoas que têm assiduamente problemas deste tipo, medos, ansiedades, crises que parecem mesmo de saúde física -- e não de foro "mental" [como se o 'foro mental' não fosse também de ordem física...] -- pode dizer-se que essa é a sua maneira de ser, uma maneira de ser depressiva ou ansiosa, ou são pessoas que apenas estão doentes e a necessitar de tratamento?

Conheço uma pessoa que é obsessiva compulsiva e que, por exemplo, se está na dúvida sobre se desligou o computador, pede-nos a nós que vamos verificar senão ele já sabe que lá terá que voltar umas três vezes a fazer essa verificação. Já se conhece bem, já identificou o seu problema e já consegue lidar com ele, verbalizando as suas dificuldades. Mas não o consegue ultrapassar. Conta que, por exemplo, já se programa para sair mais cedo de casa do que seria necessário pois sabe que é mais que certo que volte várias vezes a casa para verificar se fechou a porta ou se desligou o gás ou a água. Conta que sabe que é absurdo mas que, se não o fizer, a meio do caminho dá meia volta e vai a casa fazer essa verificação.

E tive um colega que, quando havia reunião, nos pedia para fazer a acta, mesmo que tal não fosse necessário. Levava três cadernos e algumas canetas, cada uma de sua cor. E, consoante o que lhe parecia ser o tema dominante, escrevia em seu caderno, usando canetas de cores com sentidos por ele pré-definidos. Raramente participava na conversa tão concentrado estava no registo do que se passava. Antes de começar a escrever, era como um ritual: colocava à frente dele, muito alinhados, os três cadernos e as canetas. Nunca ninguém quis saber daqueles apontamentos. Dizia que tinha estantes cheias de cadernos. Contudo não o dizia com orgulho. Era quase como se fosse uma penitência à qual não conseguia fugir. Dizíamos-lhe que não era preciso, que deixasse para lá, que não se preocupasse em escrever a acta. Qual quê. Parecia que tinha que ser, que era uma compulsão. Claro que era alvo de gozação pelas costas e pela frente. Mas não conseguia parar. Uma vez pediu para sair da empresa, queria negociar a saída. Saiu, claro. Depois disso já publicou vários livros que acho que ninguém deve ler. Dizem-me que são livros chatos, intragáveis, ilógicos. Deve continuar a escrever, certamente de forma muito sistemática, mesmo que que não exista um propósito. 

Ainda existem muitos estigmas sobre as doenças mentais. Quem as sofre teme ser visto como maluco. Para os outros, alguém que se trata em psiquiatras ou psicólogos pode ainda ser visto como um fraco ou como um perturbado, inapto para funções mais exigentes. Ou confunde-se a doença com traços de personalidade. Muito desconhecimento, muito preconceito.

E falo isto sem conhecimentos, apenas pelo que ouço, pelo que leio. 

O que sei é que geralmente quem tem este tipo de problemas sofre muito mais do que sofresse de gastrite, de enxaquecas, de angina de peito ou de rinite alérgica. É que, nestes casos, a doença é reconhecida facilmente como doença e não há pudor ou receio em tratar. Já no caso de uma doença mental não apenas não é ainda frequentemente reconhecida como doença como, sendo-o, há algum receio de tratar-se, receio de adquirir habituação aos medicamentos, receio de ficar com as faculdades limitadas, receio de ficar conotado com uma personalidade fraca ou disfuncional.

Por isso, é importante partilhar testemunhos. Quem sofre não é o único a sofrer. Quem sofre deve poder saber que há tratamento, que há uma saída.

No outro dia já aqui partilhei a entrevista de João Vieira de Almeida sobre a depressão. Hoje partilho a entrevista ao Raminhos sobre o seu transtorno obsessivo compulsivo, a dúvida metódica transformada em paroxismo, em inferno. Uma vez mais, trata-se de uma entrevista da série Labirinto do Observador. Muito sincero, muito lúcido, muito explícito. 

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Raminhos: “‘Eh pá, não penses nisso’ é o pior que se pode dizer a alguém que lida com ansiedade"

Sentiu logo o estigma quando lhe falaram em medicação: "é porque sou maluco". António Raminhos fala sobre o seu transtorno obsessivo-compulsivo, que chegou a impedi-lo de sair de casa, no 'Labirinto — Conversas Sobre Saúde Mental'.


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Esculturas de Bruno Walpoth na companhia de Joyce DiDonato com Lascia ch'io pianga

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Um bom dia feriado
Saúde. Serenidade. Paz.